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Dulce Pontes: “Não gosto nunca de ensaiar os fados”

Habituada a levar Portugal na voz, Dulce Pontes já disse ter sentido falta do público…

Texto de Sofia Craveiro

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Habituada a levar Portugal na voz, Dulce Pontes já disse ter sentido falta do público que a viu evoluir. Cinco anos após o lançamento de Peregrinação, a artista regressa com Perfil, um trabalho eclético que tem tanto de Dulce como de referências que a mesma insiste em divulgar. Fado, folclore e “canções” menos classificáveis, mas que indubitavelmente transmitem o seu "ADN português”.

O lançamento deste novo trabalho marca, segundo a própria, uma nova viragem na carreira, com o regresso a uma major, a editora Universal Music Portugal, que o lança com a prestigiada Decca Records. “Precisava de ter uma estrutura que me ajudasse, que me motivasse”, explica, em entrevista ao Gerador.

Amapola e Língua das Canções são as primeiras amostras deste disco de 11 faixas, coproduzido com João Magalhães, que teve também a cargo a mistura, gravação e masterização.


Gerador (G.) – Este novo trabalho é intitulado Perfil. O nome reflete um pouco aquilo que o seu trabalho representa no panorama musical nacional? Digo isto pois este álbum tem tanto de originais como de temas emblemáticos...

Dulce Pontes (D. P.) – Exato. E, independentemente disso, tem um ADN português. É esse o perfil, através da minha forma de ver, de sentir, mas recorrendo, sem dúvida, aos quatro pilares do fado, porque a minha ideia foi homenageá-los e dá-los a conhecer. A Amália não precisa, obviamente, mas Hermínia Silva, Fernando Maurício, Alfredo Marceneiro, com todas as características que todos eles possuem enquanto fadistas, a forma como o fizeram avançar... sobretudo o Alfredo Marceneiro, que é mais do que um pilar, é um portal mesmo [risos], um gigante. Quem é não cantou os fados dele?

Eu quis contar essas histórias. Contar que ele também era marceneiro, que fez uma casinha, a casa da Mariquinhas... contar essas coisas lá fora. E não sei se, até mesmo cá em Portugal, as novas gerações conhecem Hermínia Silva, que é uma perda. É engraçadíssimo porque ela teve uma carreira internacional também, mas depois, a dada altura, não quis continuar porque odiava andar de avião e não gostava nada da comida – o que eu percebo perfeitamente [risos], percebo mesmo.

Portanto, [o álbum foi feito] com essa vontade. Mas também duvidei. Por exemplo, quando compus o meu Língua das Canções, pensei “hum, isto é só piano. É um tema instrumental, não é para cantar” [...]. Depois falo com o Tiago [Torres da Silva], ele ouve o tema e diz que estava já a ouvir as palavras. Eu respondi: "ainda bem, porque eu não estou a ouvir mesmo nadinha" [risos].

Portanto, de certa forma, só acreditei naquela música como canção depois do Tiago ter, digamos, “parido” aquele poema de uma forma tão rápida, em quinze dias ou coisa assim.

G. – Precisamente nesse tema a Dulce surge a dançar, no vídeo. Sei que já disse anteriormente que esta foi a sua “segunda paixão”...

D. P. – Não, essa foi a minha primeira! Eu não pensava sequer ser cantora. Eu queria dançar. Comecei na minha adolescência... ao ponto em que depois dava aulas. Vinha para Lisboa, para a academia de dança Armando Jorge. Ia fazendo... enfim, especializações, sempre tentando acompanhar quem estava lá no meio. Havia lá bailarinos da Companhia Nacional, da Gulbenkian, por aí fora, e estava lá uma menina pequenina do Montijo, que era eu, uma trinca-espinhas [risos].

Mas foi muito bom [ter esta nova experiência]. O Gonçalo Claro realmente conseguiu-me desbugar, porque eu tive anos sem conseguir [dançar]. Não quer dizer que eu não associasse sempre o movimento e a música. Está tudo associado, até mesmo com a própria poesia. Está tudo ligado umas coisas às outras... até a própria respiração [...].

Depois o Tiago pôs-me à vontade... eu nunca mais tinha voltado ali, àquele sítio, e foi bom. Tive muita vergonha quando vi o Yonel [Serrano], bailarino da companhia da minha querida Olga Roriz. Somos amigas de longa data, mas o Yonel também me transmitiu muita segurança e foi muito bom. Foi como um voo que eu não fazia há muito tempo, um voo pequenininho, porque a pessoa também vai fazendo anos.

G. – Mas isto é algo que pretende continuar a explorar?

D. P. – Pretendo, para mim. No futuro até poderia associar isso [a outra coisa]. Eu gostaria muito de voltar a ser professora – não de dança, obviamente –, mas de técnica vocal e, mais tarde, interpretação. Digamos que considero várias vertentes, que eu acho que são complementares e essenciais à arte do canto. Gostava de ter esse tempo também, mais tarde (se houver mais tarde).

G. – Este trabalho, que lança agora com a Universal e a Decca Records, surge depois de ter vários álbuns lançados sob a sua chancela, a sua própria editora [Ondeia Música]. Este regresso a uma major representa uma viragem na sua carreira?

D. P. – Sim, sem dúvida, porque, para além de ter agora o apoio, tenho também a liberdade.

G. – Não tinha essa liberdade anteriormente?

D. P. – Quer dizer, eu antes [de editar de forma independente] estava assinada com a Universal Holanda e – para ter uma ideia – quando o Ennio [Morricone] me propôs gravarmos o Focus , a pessoa responsável achava que não era boa ideia, que o melhor era fazer mais um álbum a solo (como se o Ennio tivesse todo o tempo do mundo para estar ali à espera [risos]).

Isto era uma coisa que eu já tinha falado logo quando fizemos assinatura do contrato e depois tivemos uma reunião aqui – ainda era o Tozé Brito que estava na direção da Universal em Portugal –, e lá convencemos o senhor que era mesmo errado aquele fechamento que ele estava a fazer.

Há até um detalhe: eu comprei um foguete.

G. – Um foguete?

D. P. – Sim, um foguete. Era para, quando aquilo se resolvesse por fim... pumba! Deitava o foguete. Demorou tanto tempo que o foguete se estragou e tive de chamar os bombeiros para o retirarem [risos].

G. – Foi então esse tipo de divergências – digamos assim – que a levaram a abandonar a editora?

D. P. – Exatamente. A Universal Holanda não foi uma boa experiência de todo.

G. – Mas durante este tempo que se seguiu teve o total controlo criativo e artístico... Agora regressa [a uma grande editora]. Por que motivo? Algum fator em particular levou a esta mudança?

D. P. – Primeiro porque, a partir de uma certa altura, uma pessoa começa a pensar: como é que eu vou conseguir continuar com toda esta sobrecarga? Não é possível. Eu não sou descendente de ninguém nobre nem nada - quer dizer sim, muita nobreza de alma, mas nesse aspeto de ser imensamente rico e essas coisas que às vezes as pessoas imaginam, não. É difícil uma pessoa estar continuamente a financiar os álbuns e dar-lhes continuidade. Fisicamente é impossível, a partir de certa altura, continuar a produzir os álbuns fisicamente e nem sequer compensa. Sozinha é complicado. Consegue-se na mesma e faz-se, está provado. Eu fiz portanto... Mas realmente precisava de ter uma estrutura que me ajudasse, que me motivasse, [ter] pessoas participativas. E está a ser ótimo. Estou a adorar.

G. – Como encara o contexto do mercado atual, em que os lançamentos são feitos muito através das plataformas digitais, a promoção é nos meios online, redes sociais. Sente que isto retira alguma autenticidade ao processo?

D. P. – Sinto que espartilha bastante. Por outro lado, também há outras coisas engraçadas a acontecer a esse nível, de comunicação nas redes. O que eu não acho muito saudável é às vezes aquela dependência que as pessoas têm. Eu noto que, por exemplo, se estou ali um ou dois dias sem aparecer – acontece imensas vezes aliás – as pessoas ficam preocupadas, logo a achar que aconteceu alguma coisa. Isso eu não acho muito normal. Já há ali uma dependência, parecida com a rosa d’O Principezinho. Não é boa ideia.

G. – No fundo acha que estamos demasiado dependentes dos meios digitais?

D. P. – Acho. E também da TV. Acho que podíamos começar a ser cada vez mais paralelos. É certo que funcionam assim de uma forma... Em todo o lado, as regras vão sendo as mesmas, mas está tudo muito diferente. Ainda não estou a perceber muito bem. E há diferenças entre Portugal e o estrangeiro. Ainda estou a perceber isso.

G. – Foi por isso que disse, numa outra entrevista, que acha que a constante exposição mediática dos artistas em Portugal “roça o ridículo”?

D. P. – Eu não disse isso assim, ipsis verbis. Se quiseres levar para aí diretamente também podes, mas eu não ia fazer uma afirmação desse tipo. Nem era com relação à exposição em concreto, era em relação ao culto do ego, de uma certa mística que envolve determinada pessoa, como se esta estivesse no monte Olimpo. Era a isso eu me referia e isso, sim, é ridículo, porque nós somos todos efémeros, obviamente.

G. – Em Portugal, há até aquela ideia que, se não houver uma presença mediática, o artista está parado ou não desenvolve trabalho.

D. P. – É. Isto até era caso para se fazer um estudo de antropologia, ou que outras pessoas que percebessem destas coisas pudessem apurar porque é que está assim. [Perceber] se foi uma coisa que levou a outra... não sei. Não consigo perceber, mas eu noto essa diferença porque, em Portugal, normalmente quando fazia um trabalho – já o senti antes, agora não porque a exposição é maior naturalmente, com a ajuda da Universal – e quando estava sozinha, fazia entrevistas, tinha promo, tudo isso, mas as pessoas, às vezes, só dois anos depois é que percebiam que aquele disco tinha saído. Há um delay gigante. Eu ia ali a Espanha, Itália ou à Grécia e as pessoas sabiam exatamente [disso] e vinham com o último álbum na mão, aos concertos. Aquilo fazia-me uma confusão desgraçada, durante um certo tempo. Eu acho que é muito porque as pessoas consomem aquilo que está logo ali à mão de semear e que lhes é plantado à frente da cara, porque também não têm muito tempo para andar ali às voltas. Enfim...

G. – Será por isso, que esteve... não quero dizer ausente, porque sei que esteve a desenvolver outro tipo de trabalho...

D. P. – Não foi outro tipo de trabalho. Na verdade foi a continuação deste trabalho, com exceção do que fiz nos últimos anos e em anos anteriores também, as turnês com o Ennio ou alguma coisa em particular, como os concertos de homenagem a Mikis Theodorakis... Coisas assim pontuais que não tinham que ver com a nossa cultura, mas que eu também punha logo lá um pezinho [...].

Para além dos concertos [relativos ao álbum lançado em 2017, Peregrinação], tive de conjugar com os concertos da turnê do Ennio. Sendo que a última, The Last Ever Tour, matava uma pessoa! Jesus... nem podia olhar para aqueles pósteres.

G. – Não gostava do nome?

D. P. – Eu entendo o nome, mas era tão duro ler!

G. – É duro encarar um fim de uma carreira que não sente que...

D. P. – É muito duro. Muito duro sobretudo quando estamos com a pessoa, quando temos uma relação que transcende, já há muitos anos, amizade, carinho e estima recíproca... e de entendimento também, porque a gente nem precisava de falar. Para nos entendermos, não precisávamos de falar muito e tínhamos uma comunicação imediata a nível musical. Às vezes bastava um olhar, e eu já sabia exatamente o que é que ele queria. Eu tentava levar a coisa para um determinado lugar, depois ele começava a pensar. Às vezes discordava e depois [dizia] “não, estás certa”... coisas assim. Ou então ao contrário: “Que tal isto?”. Tudo isto me levou a aprender muitíssimo com ele. E também, na última turnê foi complicado... Foi muito complicado. Cheguei a uma altura em que, no meu corpo, nada funcionava [risos].

G. – Em que sentido? Por causa do cansaço?

D. P. – Cansaço emocional, porque foi ali uma coisa muito estranha. Era um luto musical, ao mesmo tempo. Não era o luto da pessoa, obviamente, mas musicalmente era e... foi complicado. Fui um diazinho ao hospital, depois resolveu-se tudo e continuei. Estava toda bloqueadinha. O sistema nervoso bloqueou-me tudo: estômago, intestinos, fiquei completamente bugada (é o termo).

G. – Como é que definiria o seu processo criativo?

D. P. – É muito de impulsos. Depois sim, é pensado, maturado. Quando tem de ser (às vezes nem é). Depende muito daquilo que se trata. Se é um tema que vive por si mesmo, da frescura que tem, não vai estar a tentar encontrar o porquê de uma coisa que não tem porquê, que é como é na sua forma simples.

Mas é muito por instinto, muito intuitivo, muito imediato. Eu não gosto de estar a repetir muitas vezes. Então com fado ainda pior. Com fado é terrível. Repetir fado é um horror.

G. – Repetir em que sentido?

D. P. – Repetir várias vezes, vários takes, repetir, repetir. O fado sai uma vez, duas vezes por dia no máximo, e já vamos com sorte. Eu não gosto nunca de ensaiar os fados, porque o fado vive muito, absolutamente – à semelhança do blues e do flamenco e de outras músicas de alma, chamemos-lhes assim – do momento. E o mesmo poema pode ter um significado, pode-se conseguir dar uma determinada profundidade ou uma outra perspetiva em momentos distintos. Por exemplo, se eu não tiver vontade de cantar um fado que estiver no alinhamento, por muito que esteja para ser ouvido, eu retiro-o.

G. – Retira-o naquele momento?

D. P. – Retiro. Fiz isso com o Lágrima durante anos. Já o tinha cantado tantas e tantas vezes que depois já não tinha vontade de cantar e então tirei. E aconteceu-me com outros temas também. Depois voltam e, quando voltam, já vêm com outra frescura, com outra vontade, com amor outra vez. Quando é aquela repetição porque tem de ser, eu não consigo.

G. – Isso já não acontece quando ouve outros artistas a interpretar as suas canções?

D. P. – Não.

G. – Disse, numa outra entrevista, que este álbum surge porque sentiu estar em dívida com as pessoas que amam o fado. Porém, este não é o único género aqui incluído...

D. P. – Sim. Mais concretamente tem seis fados e depois outro tipo de melodias. Em concreto, a “Laranjinha”, que é de Idanha-a-Nova. Um tema popular, do nosso folclore e que eu faço uma adaptação (não está ipsis verbis como o original).

Depois temos o tema do Ricardo Ribeiro, com poema de Pedro Homem de Mello que, pela característica do arranjo, também tem obviamente linguagem do nosso folclore, que eu gosto sempre de defender e aliás faço questão. E apresento-o agora como aliás o tive desde o início, se formos a pensar... desde o Lágrimas (que eu considero o meu início). [...].

Depois temos também a Amapola, que tem uma transposição, digamos, possível, para o fado na harmonia, mas não é um fado. Sem dúvida que não é um fado. A Língua das Canções, como o próprio nome indica... é uma canção [risos]. E o Dulce Caravela, que foi um fado – atrevo-me a chamar-lhe fado pela estrutura, pela composição, pelo poema – que eu compus para a Kátia Guerreiro há muitos anos. Eu gravei e disse-lhe: “Vai sem título e tu é que vais escolher.” E pumba, ela pôs “Dulce Caravela”. Para a próxima, tenho de batizar logo para não correr este tipo de risco [risos].

Texto de Sofia Craveiro
Fotografias de Gonçalo Claro

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