O aborto será sempre um assunto sujeito a polémica. As controvérsias que surgem à sua volta associam-se à forma como se sente e vive a sexualidade, a intimidade e a vida privada, mas sobretudo à importância e papel que as mulheres têm na sociedade. Papel igualmente importante têm os diferendos entre códigos morais, éticos e religiosos e o direito de cada pessoa decidir por si, nos assuntos da sexualidade e direitos reprodutivos, um direito que deve estar presente nas sociedades democráticas.
As mulheres conseguiram ver reconhecidos, no século XX, o direito à contracepção, contudo, os limites existem. Verifica-se que não é possível deixar de considerar o aborto, para responder ao desejo de cada mulher. Com o referendo vitorioso de 11 de fevereiro de 2007, as mulheres portuguesas ganharam o direito à legalidade, com o fim do aborto clandestino, que tinha riscos para a sua saúde e também para a sua liberdade, já que estavam sujeitas pela lei existente, a uma condenação. Foi, enfim, para todas as mulheres, a conquista de um direito civilizacional, um passo na afirmação da sua dignidade.
Durante a campanha do referendo, vivemos um período provavelmente único entre os acontecimentos políticos em Portugal. Movimentos de cidadãos, que extravasavam as organizações políticas e feministas, juntaram-se em unidade na ação, com extrema criatividade e com solidariedade entre todos. O movimento “Juntos pelo SIM” juntou gente de muitos quadrantes políticos ou sem pertença política, que partilhava este princípio de não deixar passar a oportunidade de finalmente possibilitar que as mulheres pudessem escolher. O debate com os grupos anti-escolha foi muito duro e obrigou a grande preparação. Convenceram muitas e muitos para quem o conceito de “direito ao corpo” - uma velha reivindicação feminista - não dizia muito, nem mobilizava.
O grupo “Médicos pela Escolha”, ao qual me orgulho de ter pertencido e dinamizado, foi muito importante porque permitiu, pela primeira vez, encontrar um espaço de discussão e de intervenção entre profissionais de saúde de várias especialidades e de vários grupos etários. Foi possível explicar que o SNS daria resposta aos pedidos de IVG - como deu – e implementar o aborto em ambulatório sem grande sobrecarga para os hospitais.
Portugal beneficiou de toda a experiência dos países europeus que, desde 1988 (em França), tinham iniciado o aborto médico. Em 2005, a OMS incluiu a associação de Mifepristona/Misoprostol para uso no aborto médico na sua lista de fármacos essenciais em Medicina, tornando-se possível e sem riscos o uso destes para interromper uma gestação em ambulatório até às 9 semanas.
As vantagens do aborto médico sobre o cirúrgico residem no facto de ser um método que não necessita de internamento ou anestesia para a sua realização, tornando-o possível em ambulatório. O aborto médico é mais barato, não requer treino cirúrgico é menos invasivo do que o aborto cirúrgico e simula uma situação natural. Estes factos permitem que a mulher se integre de forma diferente na sua situação, podendo melhor controlar o processo.
Esta técnica permite também que outros profissionais, enfermeiros(as) possam seguir e ocupar-se do aborto medicamentoso, com a aplicação das guidelines que são internacionais, havendo a possibilidade de médicos reduzirem a sua participação no processo à realização da ecografia inicial. A eficácia deste método é superior a 95%, sendo importante uma avaliação posterior. O aborto cirúrgico deve estar sempre disponível nas instituições para a resposta a pessoas que o preferem, para ser usado em caso de falha do aborto médico e também de contra-indicações.
Pela avaliação anual que tem sido publicada pela Direção Geral de Saúde (DGS) verifica-se, desde 2014, uma redução do número de IVGs. O aborto não se banalizou, contradizendo muitos que o afirmavam. Temos uma atitude respeitosa para com as mulheres, com obrigatoriedade de os profissionais ou os hospitais onde há objetores de consciência as encaminharem para outro local onde o pedido possa ser satisfeito.
Temos também uma prática contracetiva mais segura, com maior utilização de métodos menos falíveis, o que deita por terra a ideia de que as mulheres iriam fazer do aborto um método contracetivo. Portanto, o SNS tem sido capaz de responder à maioria das situações, com um número muito reduzido de complicações, sendo enviadas para centros privados as situações de hospitais em que os seus elementos são todos objetores de consciência.
Quinze anos depois da implementação da lei, quais deverão ser as preocupações neste momento?
São essencialmente o envolvimento de novas equipas que refresquem as existentes. Após estes 15 anos, verificamos que a maior parte das equipas médicas estão próximas da reforma, e que é necessária formação e treino, que deverá ser um esforço nacional da responsabilidade da DGS para os próximos anos. Em algumas regiões, parece haver um divórcio dos cuidados primários face ao aborto. Alguns centros deixaram de realizar IVG, nomeadamente no Alentejo e Açores, e verificam-se algumas dificuldades em equipas, em termos da disponibilidade dos profissionais.
Portanto, quando celebramos 15 anos de Aborto Seguro em Portugal, temos que assinalar sempre que ele salva vidas e não pode ser, como está a acontecer nalguns países, objeto de restrições, pondo em causa a saúde das mulheres.
A formação sobre direitos e saúde sexual e reprodutiva deve obrigatoriamente ser um ponto curricular importante nas escolas médicas e de enfermagem. Dentro dos direitos reprodutivos deve constar sempre o direito ao aborto.
Está em curso uma reflexão sobre algumas atualizações da lei, que a prática mostrou serem obsoletas, mas aqui e em todo o lado, perante mudanças políticas que possam existir, é preciso considerar como ponto assente que não pode ser possível retroceder neste direito reprodutivo.
- Sobre Ana Campos -
Ana Campos é especialista em Ginecologia e Obstetrícia, associada e membro da Assembleia Geral da Associação de Planeamento Familiar. Integrou o movimento Médicos pela Escolha, que defendeu a votação pelo “sim” no referendo relativo à interrupção voluntária da gravidez realizado em 2007. Foi diretora clínica adjunta da Maternidade Alfredo da Costa.