Volto a um tema que já abordei anteriormente, o mérito, para vos apresentar um ponto de vista estrutural e, no mínimo, curioso, sobre a dificuldade que todos nós temos, enquanto espécie, de combater as alterações climáticas. Vou saltar por cima de qualquer dúvida ou legitimidade sobre a necessidade desse combate e focar-me na imensa maioria que compreende e aceita esse desafio, mas que ainda não foi capaz de lhe dirigir a atenção e o empenho desejável.
Começo esta narrativa pela ideia do Humanismo. Ao longo dos anos, desde o aparecimento deste conceito por alturas do Renascimento, que o significado de Humanismo tem vindo a aperaltar-se, estacionando hoje numa ideia mais ligada aos direitos humanos, ao bem-estar, à liberdade e ao progresso. Mas, o sentido principal, resiliente ao longo de todos os movimentos intelectuais que foram atualizando a noção de Humanismo, é o de colocar os humanos como ponto de partida para uma discussão moral. No fundo, de uma forma simplista, os humanos como Sol, sendo tudo o resto os seus satélites.
Estamos acostumados a ouvir determinadas expressões elogiosas que remetem para este conceito: “Este senhor é um grande humanista”, “a primazia da vida humana”, “as políticas favorecem os direitos humanos”. Estas afirmações são um produto derivado da importância do Humanismo e na nossa absoluta crença, pelo menos para o mundo ocidental, da sua verdade incontestável.
Será, no entanto, mesmo assim? Na perspetiva da natureza, no olhar puramente biológico e científico, terá a vida humana maior valor do que qualquer outra vida? É difícil sustentar esse enunciado. Então, como chegámos aqui? Como temos a certeza da nossa primazia?
Óbvio que a religião teve um papel muito relevante na construção do Homem como o centro de tudo. Principalmente de um Homem masculino, branco e heterossexual na igreja ocidental. Mas, na minha inocente opinião, boa parte da razão actual está na ideia de mérito.
À luz da meritocracia, estamos disponíveis para entregar o poder de decisão social, político e económico, a quem está no topo da cadeia. Isso é possível porque acreditamos que os que ocupam essas cadeiras cimeiras o merecem, pelo seu talento, pela sua competência, pelo seu legado. E aceitamos, enquanto sociedade, que quem não tem essas características possa ser relegado para segundo plano, possa ter um acesso mais dificultado a uma vida completa, possa, até, não ter opinião sobre os nossos destinos. Ou, na verdade, sobre os seus próprios destinos.
Ora, no topo da cadeia da natureza, olhando para todas as espécies existentes, está a espécie humana, claro. A única capaz de pensar e de imaginar. Por isso, por ser a melhor, tem o direito de decidir. E nós decidimos que somos a centralidade do mundo, porque merecemos. Somos mais competentes do que um caracol, mais talentosos do que um alecrim, mais inteligentes do que um mosquito. O mérito legitima a realidade antropocêntrica.
O grande problema da consciencialização ecológica reside numa visão meritocrática, leia-se, humanista, da natureza. É difícil darmos importância ao destino de um caracol, de um alecrim ou de um mosquito quando estamos certos da nossa superioridade e de que, portanto, a nossa vida mais vale mais do que a deles.
À semelhança do que devemos procurar para a nossa sociedade, temos de encontrar uma solução para que todos tenham o mesmo direito, todos tenham a mesma primazia. Só com uma alteração significativa da nossa mentalidade nesse sentido, conseguiremos evitar o desastre ecológico que se adivinha.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre Tiago Sigorelho-
Formado em comunicação empresarial, esteve ligado durante 15 anos ao setor das telecomunicações, onde chegou a Diretor de Estratégia de Marca do Grupo PT, com responsabilidades das marcas nacionais e internacionais e da investigação e estudos de mercado. Em 2014 criou o Gerador e tem sido o presidente da direção desde a sua fundação. Tem continuamente criado novas iniciativas relevantes para aproximar as pessoas à cultura, arte, jornalismo e educação, como a Revista Gerador, o Trampolim Gerador, o Barómetro da Cultura, o Festival Descobre o Teu Interior, a Ignição Gerador ou o Festival Cidades Resilientes. Nos últimos 10 anos tem sido convidado regularmente para ensinar num conjunto de escolas e universidades do país e já publicou mais de 50 textos na sua coluna quinzenal no site Gerador, abordando os principais temas relacionados com o progresso da sociedade.