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Ensaio: Futebol, lusotropicalismo e continuidade histórica

    Num programa televisivo transmitido em 2017[1], o diretor do jornal A Bola, debruçando-se sobre…

Texto de Clara Amante

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    Num programa televisivo transmitido em 2017[1], o diretor do jornal A Bola, debruçando-se sobre a relação entre futebol e colonialismo, defendia que a “presença portuguesa pelo mundo fora”, tinha sido caracterizada por uma “tentativa de haver uma reunião de interesses, de culturas, uma troca de experiências, uma forma tolerante de entender as diferenças”. Reforçando esta tese, enfatizava ainda que essa “presença” fora radicalmente oposta à de outras nações europeias, marcada por uma “perspetiva meramente comercial e conquistadora, até agressiva nos territórios”. Este é apenas um dos muitos exemplos que mostram o modo como o lusotropicalismo, enquanto marca da identidade nacional, tem sido mobilizado a partir do contexto desportivo.

    Devido a um conjunto variado de fatores, o futebol, apesar de ser apenas uma modalidade desportiva, possui uma enorme capacidade de aglutinar as várias identidades, sejam elas locais, regionais ou nacionais. Lançando um breve olhar para a história do futebol mundial, percebe-se a forma complexa como essas identidades emergem. Ao nível dos clubes, são vários os casos que ilustram o modo como as questões de classe, raça, etnicidade e afiliação política se produzem e reproduzem nessas esferas.

    Essa extraordinária capacidade de produção de comunidades imaginadas diferenciadas conheceu um caso que se popularizou entre as culturas do futebol e que está relacionada com o início da guerra na antiga Jugoslávia. Em concreto, o jogo que opôs a equipa sérvia do Estrela Vermelha de Belgrado à dos croatas do Dínamo de Zagreb, terminou em violentos tumultos entre os adeptos das duas equipas, forças policiais e alguns atletas. A repercussão política destes tumultos foi de tal forma significativa, que, no entender de muitos observadores, terá sido ali que a guerra se iniciou, ainda que formalmente esse começo só se tenha dado alguns meses depois.

    Este caso ilustra a capacidade do futebol em redefinir os imaginários nacionais. De facto, a reprodução e contestação de ideologias, sejam elas dominantes ou contra-hegemónicas, têm acompanhado a história da modalidade. Também o contexto português tem sido, ocasionalmente, palco de disputa política. Um dos episódios mais relevantes ocorreu em 1969, numa final da Taça de Portugal, disputada entre o Benfica a Académica e no qual os jogadores conimbricenses se solidarizam com as lutas estudantis, transformando o jogo numa arena de contestação à ditadura. Estas reivindicações estavam sobretudo relacionadas com a forma como o regime concebia o ensino universitário e não tanto com uma crítica profunda ao sistema colonial.

    Acompanhando as orientações políticas que viriam a marcar as últimas décadas do fascismo português, os discursos produzidos a partir do futebol procuraram reivindicar o colonialismo “benevolente”, pretensamente multirracial e respeitador das culturas autóctones. Embora seja naturalmente necessário ter em conta que o país vivia num regime ditatorial e que, por isso, não fosse de estranhar que alguns dos jornais da época reproduzissem as narrativas dominantes, é interessante verificar o modo como as teses lusotropicais eram aplicadas no desporto.

    A primeira presença da seleção nacional de futebol no Campeonato do Mundo ocorreu em 1966, em Inglaterra. Nessa estreia, faziam parte da equipa vários jogadores africanos, designadamente Eusébio, Mário Coluna e Hilário. Importa relembrar que os futebolistas “ultramarinos” eram considerados “nacionais”. Assim, e contrariamente ao que sucedia com outros países colonizadores, a anunciada integração e o sucesso dos referidos atletas na seleção permitia a defesa dos ataques exteriores que acusavam o regime português de práticas racistas. Dito de outra forma, essa multirracialidade da seleção legitimava, em certa medida, a teoria lusotropical.

    Após a obtenção do terceiro lugar da competição, o jornal A Bola sublinhava que o futebol nacional, “com a unidade rácica de um país pluricontinental e plurirracial” era a “expressão acabada da conciliação do praticante dos trópicos, com a sua habilidade congénita, com o praticante europeu, mais inteligente e metódico” (04.08.1966, p.4). Apesar destas narrativas terem propagandeado a grandiosidade portuguesa e exaltarem a sua pretensa multirracialidade, a verdade é que a identidade nacional nunca assentou verdadeiramente em qualquer tipo de pressuposto multirracial, já que o estatuto dos jogadores negros foi quase sempre marcado por uma posição subalterna.

    Mesmo os casos de glorificação de atletas africanos que ingressaram nas equipas portuguesas, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, devem ser lidos com bastante cautela, já que essa celebração não era plena, mas sim condicional, obedecendo a algumas premissas. Assim, a aceitação e eventual inclusão na nação estava largamente dependente da capacidade em assimilar a cultura portuguesa, os seus usos e costumes, bem como o domínio da língua. Numa entrevista concedida no âmbito de uma investigação que realizei, um desses jogadores confidenciou que esse tratamento diferenciado se fazia notar em determinadas ocasiões, nomeadamente na forma como algumas pessoas se dirigiam aos atletas africanos, “falando-lhes num português rudimentar, como que dizendo ‘só este português é que ele pode compreender’”.

    Estas palavras lembram a pertinência das observações que Frantz Fanon havia feito em relação à forma como os franceses agiam perante os negros: “um branco ao falar a um negro comporta-se exatamente com um adulto com uma criança, e é vê-lo então fazendo boquinhas, murmurando, gracejando, amimando”[2]. Embora os aspetos relativos à questão da linguagem assumam, na contemporaneidade, outros contornos, a verdade é que o uso considerado correto da língua continua a funcionar como um dos múltiplos mecanismos de exclusão.

    Hoje, tal como acontecia no período colonial, há corpos que são naturalmente vistos como sendo mesmo portugueses e outros cuja integração na nação assenta em bases muito mais frágeis, que requerem, portanto, uma permanente negociação. Para além dos inúmeros casos de racismo no futebol português, que se sucedem há décadas e em todas as divisões, basta recordar os discursos dirigidos a jogadores como Renato Sanches ou a outros atletas percebidos como “não assimilados”. No caso de Renato, os acontecimentos desde a criação da falsa polémica em torno da sua idade até ao tão recorrente insulto “vai prá tua terra!”, mostram que o imaginário colonial continua impregnado nas estruturas mentais da sociedade portuguesa.

    Apesar da realidade demostrar que o racismo do passado e do presente é muito mais estrutural do que ocasional, muitos daqueles que detêm o poder e o privilégio não só não o reconhecem, como persistem em reproduzir um discurso que aclama a “irmandade racial que ainda hoje perdura”, tal como afirmou um antigo Secretário de Estado do Desporto, aquando do falecimento de Eusébio. Esta narrativa, que resgata e reatualiza a excecionalidade colonial portuguesa, tem sido mobilizada em vários outros momentos. Recorde-se, por exemplo, o Campeonato Mundial de 2010, realizado na África do Sul, insistentemente pautado por um discurso colonial saudosista por parte da generalidade dos media. Entre outros aspetos, o uso recorrente de expressões como “descobrimentos”, “navegadores” ou “expedição a África” serviu, novamente, para celebrar o colonialismo português e os seus “feitos”.

    Passados treze anos, o lusotropicalismo permanece hegemónico. Prova disso, foi o facto das palavras do futebolista Diogo Dalot não terem despoletado praticamente nenhum tipo de reação na sociedade portuguesa. Na sua conta do Twitter, o jogador, aludindo à sua chamada para o Mundial do Catar, escreveu recentemente: “Carregaremos a história de Portugal connosco. Somos de uma terra que explorou, descobriu, conquistou e espalhou a sua cultura nos 4 cantos do mundo”.

    Note-se que a brutalidade que decorre da opressão colonial não faz parte da autorrepresentação da identidade nacional, uma vez que o colonialismo foi concebido como uma missão civilizadora. De qualquer forma, não deixa de ser sui generis que essa glorificação possa conviver pacificamente com a negação do racismo estrutural. A questão do não-reconhecimento do lugar que o racismo ocupa na sociedade portuguesa contemporânea é um dos produtos do lusotropicalismo e dos seus defensores, que se recusam a compreender “que uma nação que coloniza, que uma civilização que justifica a colonização – portanto, a força - é já uma civilização doente”[3].


[1] Programa emitido pela “A Bola TV”, intitulado “Quinta da Bola”, exibido a 20 de abril de 2017.

[2] Frantz Fanon (1975), Pele Negra, Máscaras Brancas. Porto: Paisagem, p.45.

[3] Aimé Césaire (1978), Discurso sobre o Colonialismo. Lisboa: Sá da Costa Editora, p.21.

- Sobre Pedro Sousa de Almeida -

Pedro Sousa de Almeida é investigador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), onde desenvolve pesquisas sobre as questões raciais. Foi coordenador do projeto ‘Racismo e Xenofobia em Portugal: a normalização dos discursos de ódio no espaço público da internet’, financiado pela FCT. Doutorado em “Democracia no Século XXI” pela Universidade de Coimbra (2019), licenciou-se em Antropologia (2001) pela mesma instituição. Realizou o Mestrado (2004) no Instituto Superior Miguel Torga de Coimbra. Partindo da ideia de que o desporto é um campo altamente privilegiado para a análise crítica da realidade social, o seu trabalho de investigação tem-se centrado nas relações entre futebol, raça, racismo, pós-colonialismo e produção das identidades nacionais nas sociedades contemporâneas.

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