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Não dava muito pela versão de estúdio, mas agora já é adequada ao Festival da Canção

André Malhado, socio-musicólogo, fala-nos sobre o Festival da Canção.

©Bogomil Mihaylov via Unsplash

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Na edição 2023 do Festival da Canção achei que seria um exercício interessante ir ouvir as músicas no canal oficial do Youtube ao mesmo tempo que lia os comentários dos espetadores. Sei bem que o Festival não é um espaço exclusivo dos cantores virtuosos e, mais do que isso, quem gosta do evento procura outras qualidades para além da técnica. Mas se há uma coisa que noto é que há uma exigência da parte dos espetadores para que as pessoas que cantam não estejam sozinhas em palco. No regulamento do Festival é dito explicitamente que só as vozes é que interpretam ao vivo, todos os outros instrumentos são, na verdade adereços (pois é, instrumentistas deste país…). É-me bastante penoso considerar que uma ‘canção’, o objeto central do Festival, seja feita e julgada apenas pela sua voz, e tudo o resto que ouvimos é o resultado de um estúdio. Mas vamos esquecer esse detalhe e focar-nos no que interessa.

Assumamos então que é a voz a verdadeira estrela da atuação. Então, por que razão várias das vozes tecnicamente mais competentes, ágeis, bem colocadas e afinadas nas duas semifinais, não passaram? Teresinha LandeiroBolhaLara Li, para nomear algumas das que mais me impressionaram, nem sequer foram à final, sendo ultrapassadas por outras menos conseguidas. Tenho uma teoria na verdade, é que apesar de ser um festival de canções, é talvez mais do que isso, um festival de experiências visuais. Recordo-me de um estudo de Andrew Goodwin sobre a música da década de 1970 no Reino Unido. Nessa época, surgiu um movimento chamado “New Pop”, que depois inspira o que se faz na MTV, em que se incorporava todas as técnicas do estúdio de gravação e da cenografia, ao serviço da música. É nesta época que a moda do “lypsynch”, ou karaoke se o quisermos chamar assim, entra em cena. Era comum as atuações ditas ‘ao vivo’ não serem realmente ‘ao vivo’ na sua totalidade. Em parte, haviam faixas de música transmitidas nos altifalantes do palco, as pessoas fingiam cantar e tocar instrumentos e os seus públicos sabiam disso.

Posso estar a parecer algo injusto quando faço esta comparação, mas ela tem uma razão de ser. É que, como Goodwin diz, a consequência deste movimento foi que à medida que os ouvintes gostavam cada vez mais deste tipo de música, percebiam que, e cito o autor, a “pop performance era uma experiência visual”. O Festival da Canção tem muitas pessoas qualificadas, competentes e interessantes, mas tem outros que nem tanto. E um tema central que vejo no Youtube, é que se houver simplicidade no palco, e se parece que não acontece nada, a música ‘não presta’. Não podemos apenas ouvir a atuação de Lara Li, por hipótese, porque depois muitos espetadores dizem que ‘falta gente no palco’ ou sentem que ela ‘está sozinha’. Mesmo quando existem coisas a acontecer perto das cantoras, também há quem diga que se não há conceito ‘a atuação parece perdida’, ‘aleatória’, ou que ‘não precisa das dançarinas nem dos instrumentos musicais’.

Não quero com isto dizer que fãs do Festival da Canção não valorizam a música que ouvem, destaco apenas que exigem um certo equilibrio. Diria até que há uma contradição, porque saímos de uma apreciação exclusivamente musical para a exigência de ‘ação sincronizada em palco’, é como se o concerto fosse julgado enquanto cinema de aventura em que as personagens necessitam fazer mais do que dialogar. Agora, como se explica que as duas músicas votadas pelo público este ano tenham sido no âmbito do rock? DAPUNKSPORTIF e “World Needs Therapy” é um rock bastante simples, bem executado e sem grande soberba vocal. O “Endless World” de Neon Soho, com uma vocalidade belíssima, pode não parecer mas é claramente outra faixa de rock. Aliás, ninguém me tira da ideia de que foi inspirada no “Wicked Game” do músico Chris Isaak. Acho que as duas escolhas dizem-nos um pouco sobre quais são as preferências de uma fatia dos espetadores portugueses hoje, e vale refletir se o gosto não poderá estar a transformar-se.

Tudo isto é interessantíssimo quando consideramos que, se para as regras do Festival da Canção os instrumentos musicais são apenas adereços, as músicas do rock são apenas as suas vozes? Fica a pergunta no ar, não vou tentar responder. Mas face aos últimos anos, e às tendências que se verificam nesta edição de 2023, há duas conclusões a retirar (não nos esqueçamos que estou a falar da minha análise da receção que sinto no público, não é uma opinião pessoal): primeiro, é que as músicas com ritmos dinâmicos e enérgicos, aliadas à diversão e boa disposição de quem está em palco, são fortes candidatos à vitória; segundo, as atuações com conceitos fortes, cheias de pormenores que se unem à música para fornecer um espetáculo audiovisual coeso e impactante, são outra forte aposta.

Em síntese, boas vozes em estúdio, ou ao vivo, não garantem uma ressonância com o público. Por isso é tão comum ouvir e ler pessoas que dizem: não dava muito pela versão de estúdio, mas agora já é adequada ao Festival da Canção!

- Sobre André Malhado -
Socio-musicólogo, músico e acafã de ciberpunk.

Texto de André Malhado, publicado inicialmente na esQrever
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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