Estamos a chegar ao fim do Verão, preocupou-nos os incêndios em Odemira, este ano os mais devastadores no país – este lugar onde um território a arder já pouco nos surpreende. Ouvimos sobre as cheias nos países nórdicos. Também aqui choveu, nos últimos dias, muito, em algumas cidades portuguesas. Há poucos dias as inundações na Grécia causaram vítimas mortais, depois de um Verão muito quente, debaixo de fogos que mantiveram a paisagem escurecida e enfumarada. Acompanhei estes relatos maioritariamente desde Portalegre, cidade onde atualmente vivo e desde a qual trabalho. Apesar das altas temperaturas e de algumas ocorrências ao nível dos fogos (acredito que a mais próxima e de maiores dimensões terá sido o fogo que assolou Castelo Branco) o território é protegido, sobretudo o parque natural, por patrulhas muito regulares que antecipam a chegada do fogo. A geografia é, sem dúvida, uma das dimensões que mais marca este território.
Além dos acontecimentos ambientais, o Verão costuma ser marcado por festivais e praia – que não existem no interior, “obviamente”, pensa-se. No entanto, existem barragens (com inúmeras atividades) e oferta cultural. Gostaria de vos enumerar algumas das ofertas que fruí nos últimos meses, com o objetivo de desmistificar o preconceito de que vivemos “isolados” num “interior onde não existe nada”.
Primeiramente aconteceu o Junho em Cena, um investimento do CAEP – Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre, cuja programação de música, teatro e cinema é regular. Esta mostra de teatro contou com apresentações semanais às Sextas e Sábados na sala principal e aos Domingos, numa parceria com a Associação Cultural UMCOLETIVO, onde trabalho, aconteceu a programação dedicada a famílias no nosso espaço de trabalho, o Convento de Santa Clara.
Seguindo por ordem cronológica, no final de Julho, aconteceu o Festival Internacional de Música de Marvão, provavelmente o mais elitista desta “lista”: acesso a grandes obras clássicas, orquestras e músicos internacionalmente relevantes, com uma programação dita de excelência. Elitista pois em termos empíricos, considerei o facto do valor do bilhete de cada espetáculo ser exagerado e grande parte do público não ser português ou local um indicativo de baixa acessibilidade, atraindo antes alguns espanhóis entre outras nacionalidades.
Em Agosto, em simultâneo, aconteceu a 11º Edição do Periferias – Festival Internacional de Cinema de Marvão e Valencia de Alcántara em vários lugares do lado de cá e de lá da fronteira e uma das primeiras edições do VIDE – Festival de artes pela rua, em Castelo de Vide e Póvoa e Meadas. O primeiro, na sua décima primeira edição, conta com grande diversidade de público que acompanha os diversos lugares onde a programação é feita, incluindo a população local e outro público mais especializado e fidelizado ao festival. O mesmo aconteceu com o VIDE, embora em menor escala. Sobre o Periferias, não posso deixar de destacar uma programação versátil e atual, preocupada não só com questões estéticas como éticas. Enfatizo a predisposição para preocupações sociais e a dedicação de um dia à causa da emancipação do povo Curdo, à qual também já dediquei uma crónica, dando destaque a dois filmes produzidos pela Comuna de Cinema de Rojava em plena revolução, contextualizados numa conversa histórico-política com o coletivo de solidariedade ao povo curdo de Madrid. O VIDE, por sua vez, trouxe-nos várias peças de criadores nacionais e internacionais, no âmbito das artes performativas. Exemplifico com a programação do Ciclo Anti-princesas de Cláudia Gaiolas que nos trouxe a Carolina Beatriz Ângelo ao Castelo de Castelo de Vide.
Finalmente, ainda em Setembro continuam a existir dinamizações culturais como será o Bolina – Festival Internacional de Palhaças. Assim, deixei alguns dos exemplos da fruição cultural que tivemos durante o Verão no Alto Alentejo, projetos que podemos ver muitas vezes como “missionários” face às necessidades das populações no interior mas que, pelo contrário, nascem dessas e com essas próprias necessidades. Posso inclusivamente dar o exemplo do Festival A Salto, de base comunitária, que invadiu Elvas durante sete anos e que nasceu da necessidade que a equipa do UMCOLETIVO tinha de consumir mais criação artística na cidade. Considero que beneficiamos de estarmos num lugar transfronteiriço, onde a maior parte dos moradores falam castelhano como segunda língua e a fronteira dilui-se num quotidiano que se faz entre cá e lá. Assim, os eventos aconteceram com um público diverso.
Com isto, não posso romantizar a vivência no interior, sobretudo naquilo que tem de pior. As lacunas culturais vão sendo colmatadas por quem se vai fixando, habitando, conhecendo e mesclando – tanta gente que nos últimos tempos tem fugido de Lisboa, “daquilo que todos fugiram” como reiterou um colega num encontro que fizemos de estruturas culturais da zona em Castelo de Vide, ficando implícito os motivos que o levaram a afastar-se da grande cidade: o tempo que corre, a pressão que aumenta, a saúde mental que se degrada, a poluição que sente, a repetição dos mesmos problemas sociais e económicos. A isto acrescento uma criação artística de nicho, pouco diversificada e quase monotemática com apresentações regulares porém dirigidas sempre a um público-colega. Afinal, quem fora da área artística vemos a consumir cultura em Lisboa?
Concluímos com o que de pior se continua a encontrar no interior: falta de serviços, nomeadamente no que toca a transportes públicos e saúde. Quando a nossa viagem é para Lisboa até nos “desenrascamos” com um autocarro da Rede Expressos. No entanto, se quisermos ir para qualquer outra cidade é impossível sem demorarmos sensivelmente três vezes mais do que de carro. Praticamente comboios nem autocarros disponíveis para as cidades que nos rodeiam: Elvas, Évora, Castelo Branco, Badajoz, Mérida, Cáceres, já para não falar de todas as aldeias onde não existe um único autocarro apesar da densidade populacional, dou o exemplo de Póvoa e Meadas, porque lá vivi e encontrava a população, desde jovens a crianças, adultos e idosos: Nas ruas, nos cafés, no teatro, sem um único autocarro. Por sua vez, a saúde também tem uma infraestrutura debilitada, apesar de termos hospital em Portalegre, é o único para uma grande zona e os serviços são reduzidos tendo que transferir regularmente os pacientes para outras unidades. Assim vamos deixando ir o Verão num dos interiores de Portugal, ao lado de Espanha, das barragens, dos festivais.
-Sobre a Raquel Pedro-
Raquel nasceu e cresceu numa aldeia, onde firmou a sua relação com a natureza e os animais. Tocou percussão numa banda filarmónica e passou por inúmeras atividades extra-curriculares. Aos 15 anos começou a estudar artes na Escola Artística António Arroio, onde se especializou em Realização Plástica do Espetáculo e aos 21 concluiu a Licenciatura em Estudos Comparatistas - Arte e Literatura Comparada, oferecida pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve trabalhos de ilustração e aprofunda a investigação e escrita de artigos nas áreas da literatura e arte, a partir de uma perspetiva feminista e pós-colonial.