O Alentejo de Portugal é um país vasto, ingrato, e a sua gente é dura, nobre e meritoriamente orgulhosa. As planícies cobrem-se de flores na primavera, os campos vestem-se de ouro no verão e o chão despe-se no outono e no inverno. Por cima, coroa-o um céu imenso onde reina o sol. Chamo-me Almeida e num dia qualquer de abril, regressei à casa dos meus tios alentejanos, os únicos parentes vivos. Após muitos anos na capital, o meu reencontro foi o palco de contrastes violentos. Seriam verdadeiras as minhas recordações de tenra idade, questionei-me? O que permaneceu inalterado nas gentes e no espírito do lugar? O que foi corrompido pelo esquecimento ou pelo ressentimento? Suspenso entre dois mundos e duas vidas, eu procurei no meu coração a chave que abrisse, talvez, a porta da minha casa, a minha casa na aldeia. Neste meu diário de viagem, eu evoco o nosso almoço Pascoal. Era o dia do ensopado de borrego.
Recebi, muito agradecido e comovido, a minha porção de ensopado de borrego. Adivinhava-se a alvura do prato de sopa por debaixo do molho que humedecia a meia fatia de pão rústico, na qual repousava um osso de borrego com um naco de carne, ladeado por duas batatas, lascas de cenoura e uma folha de louro. O borrego era magro. Seria aquela a obra da avareza dos meus orgulhosos anfitriões, poupados no manjar generosamente presenteado, mas magro, ou a prova consumada da virtude da sua santa frugalidade? Comemos em silêncio, com devoção; a refeição era uma oração. Ao redor de mim, vi mãos calejadas que manuseavam, destramente e sem elegância, a broa e a colher. Os rostos sulcados por rugas profundas revelavam a história das suas vidas, gravadas no pergaminho da pele. Ali ao lado, o tacho ficou vazio, a secar. Acabou-se o vinho. Nem uma gota nos copos. Compreendi então que a sua singela frugalidade não era a avareza ostensiva nem uma penitência sem sentido, sentida. Era tão somente o fruto de uma sapiência visceral e anciã, a erudição sem conhecimento do valor de cada migalha que as mãos levavam à boca, às suas e às das crianças. Sábios, eles entendiam-no bem melhor do que nós, que o desperdício ronda a abundância, que a gula corrompe a prudência de quem poupa e resguarda os bens e os alimentos para os tempos vindouros, que bem podem ser de fartura ou de fome. Veio o café. Âmbar cor de carvão, brumas de bruxas, um remoinho de espuma na caneca e o sabor forte na boca. Umas broas, uma garrafa de licor com o vidro baço. A poção que eu bebi deslizou pela minha garganta e acendeu uma chama no meu estômago. Senti os olhos pesados, era o corpo a pedir-me ternura. Sentados ao redor do pátio, à sombra de laranjeiras centenárias talvez, com os seus troncos e ramos a lembrar oliveiras milenares, as ramadas pesadas de laranjas ali mesmo ao alcance das mãos, se os braços não tivessem sucumbido ao feitiço de torpor que a tarde nos lançou. Dormitei. Nos meus sonhos rápidos, eu corria pela margem de uma ribeira de águas cristalinas e profundas. No meu sonho, eu despi-me e lancei-me à água. Estremeci e acordei estremunhado. Era a hora do crepúsculo. O céu em chamas. Estava sozinho. Quanto tempo teria estado adormecido? Onde estavam todas as pessoas?
Regressei a Lisboa na manhã seguinte. A Carreira partiu cedo, ainda a noite dormitava nas sombras dos vales profundos onde corria a ribeira com que eu sonhara. Afinal era verdade. Eu mergulhara mesmo nas suas águas, fazia tanto tempo! Levei abraços, uma merenda e, quando a curva da estrada ocultou os telhados do casario, eu senti como que se me arrancassem a pele. Eu partia nu, em carne viva. Havia de retornar e ficar. Bem-aventurado o homem que reencontrou o seu lar.
Continua…