Chove em Siena.
Limpa e leve, levanta-se a alma da terra nas gotas devolvidas ao céu. Chove de baixo para cima, as maçãs libertam-se dos juncos, fintam os troncos, rumam ao sol!
Que poder tem a chuva que revolve as entranhas do húmus, ara-me o solo da solidão, separa o trigo do joio e vem dar-mo à mão!
Aromas de incenso alfazema e alcatrão trazem-me Bruges e Roma de volta ao coração, bumerangues da saudade, demoram-se até mim como gôndolas e togas ao pôr-do-sol.
Cai a chuva e não tardam a sair as memórias dos respetivos esconderijos: vêm até mim como toupeiras perdidas, e eu abraço-as com insuportável carinho… E beijo-as, e pastoreio-as a todas, nem uma memória fica para trás!
Memória 1: Chove em Bruges, as gotas espessas descrevem cicatrizes de compasso na capa do rio. Chove em Bruges há oito anos. Acenam-me os canais onde circulam todas as minhas bisgas e escarretas!
Memória 2: Roma, eu tão grande, nove anos, os vendedores de rua a esticarem os brinquedos pegajosos e a atirarem-nos ao ar.
Memória 3: Gelado em Orvieto — três bolas polifónicas e a minha língua fresca a desfazer-se na gastronomia italiana: verde branco e vermelho, um delicioso gelado de alfazema, incenso e alcatrão!
(Alfazema Incenso Alcatrão //// Cheiros que, em dias de chuva, constituem a perfeitíssima trindade da sinestesia.)
Memória 4: Roma outra vez: O Papa, o Angelus da janela, um espectro branco a acenar — eu: quem será este gajo? — e o fórum e o coliseu sem interesse: o classicismo a valer a ponta dum chavelho ao lado dos porquinhos pegajosos; a melhor coisa do mundo os pega-monstros os cãezinhos de pilhas que miam aos saltinhos e as orelhinhas da Minnie cheias de luz roxa.
Memória 5: Gárgula em Bruxelas a ejacular toda a chuva do mundo, uma gárgula sim, não o menino mijão cujo pífio sexo finjo segurar na fotografia que tiro ao lado da minha irmã.
Azeitão — Memória 6 — casinha de férias, arremesso uma mão de calhaus que caem na piscina de uma atriz conhecida, nossa vizinha.
Ação: calhau na piscina.
Castigo: não piscina.
Memória 7 — tempo e sítio ? — Sentir cair nos meus ombros uma cascata de significados sem significante, espremer de angústias o meu oleado amarelo tão parco tão pesado, tão da cor dos school buses norte-americanos, e não sair nem uma gotinha.
Não chove no canal em Bruges como chove neste vale em Siena.
Memória 8 — agora — Siena: telheiro, cátedra.
Já não me ferem os pregos que metralham o mar já não me navalham as gotas que salgam o mar.
A chuva cai bem em Siena.