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Entrevista a Catarina Valença Gonçalves: «O património cultural, nas suas várias manifestações, é um dos exemplos mais antigos e consistentes das práticas de sustentabilidade»

Doutorada em História de Arte Contemporânea pela Universidade Nova de Lisboa, Catarina Valença Gonçalves iniciou…

Texto de Gerador

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Doutorada em História de Arte Contemporânea pela Universidade Nova de Lisboa, Catarina Valença Gonçalves iniciou a sua actividade profissional no GECoRPA, colaborando em projectos como a Rota do Fresco ou o Inventário do Património Arquitectónico da Direcção-Geral dos Monumentos Nacionais. Em 2007, fundou a Spira, uma empresa de revitalização patrimonial, especializada em projectos relacionados com o património cultural em Portugal, na qual desempenha funções de directora-geral.

Sediada no terceiro concelho mais pequeno do país — Alvito, no Alentejo —, a empresa emprega 12 pessoas formadas em áreas distintas, desde o design, à gestão, turismo ou conservação e restauro. Em 2013, a Spira criou a Feira do Património que, ao fundir-se com a Bienal de la Restauración y Gestión del Patrimonio AR&PA, que acontecia em Valladolid desde 1998, se passou a chamar Bienal Ibérica de Património Cultural. Com um carácter itinerante (muda de localização em cada edição), este ano a Bienal decorre em Loulé, nos dias 11, 12 e 13 de Outubro, para aquela que será a maior e mais internacional edição de sempre.

A propósito da chegada da Bienal, Catarina Valença Gonçalves recebe-nos em Campo de Ourique, no espaço da Spira em Lisboa, para uma conversa acerca da Bienal Ibérica, que a Spira promove, mas também para falar de educação patrimonial — da sua importância e do seu papel —, de políticas públicas de promoção do património cultural, e daquele que é o tema desta edição da Bienal: a sustentabilidade.

Gerador (G.) – Começo por lhe perguntar o que é a Spira e qual é para si e para a Spira a importância de um evento como a Bienal Ibérica de Património Cultural?

Catarina Valença Gonçalves (C. V. G.) – A Spira é uma empresa singular, aqui em Portugal, porque Portugal não tem empresas que actuem na área do património cultural, por um motivo: o património cultural ainda é percepcionado como um monopólio estatal, por várias razões. Uma delas é ainda haver um enorme preconceito na gestão da cultura. Considera-se que, assim que há dinheiro associado à cultura, a cultura deixa de ser cultura per se, se quiser, confundindo aquilo que é o bem com aquilo que é o serviço em relação a esse bem, ou a exploração desse bem. O que era importante era haver empresas que criassem melhores condições para a cultura chegar a mais pessoas e é isso que a Spira faz na área do património cultural. Já o faz há 12 anos, apesar da empresa estar baseada num outro projecto, que fez 20 anos em 2018 e que foi a primeira rota de turismo cultural em Portugal — a Rota do Fresco. Portanto, a filosofia da Spira é: «o património é de todos e não importa a origem social, geográfica e económica». Simultaneamente, é convicção da Spira que, quanto mais se sabe, mais responsabilidade se tem na partilha desse saber. Portanto, compete aos historiadores e a quem teve o privilégio de ter uma formação mais completa encontrar a forma certa de apresentar o património ao comum dos mortais, se quiser.

A Bienal é só mais uma das acções que nós fazemos no quadro desta filosofia da empresa e começou como quase tudo o que a Spira faz: infelizmente, começou por ser uma coisa nova, porque tudo o que fazemos é novo. É uma chatice. Tem piada na primeira vez, mas não tem piada na quarta, quinta, sexta vez, continuar a perceber que é a primeira vez que se faz, porque é sintomático também do enquadramento do sector a nível nacional. Nós éramos o único país europeu que não tinha uma feira do património, que não tinha uma feira do sector, e nós tivemos a sorte, de facto, de andar a ver várias coisas pela Europa fora. Percebemos que Portugal tinha essas condições e propusemo-nos a realizar essa feira. Tivemos sorte e arranjámos bons parceiros. Começámos em 2013. Hoje, em 2019, não é um Feira de Património, é uma Bienal Ibérica, porque fundimo-nos com o evento espanhol, que é organizado pela entidade pública que tem essa competência em Espanha, e é mesmo um evento internacional, como esta edição de Loulé deixa bem claro, porque teremos em Loulé a presença de países como a Áustria, Itália, Brasil, Holanda e Marrocos, como país convidado. Portanto, a Bienal é uma celebração de 3 dias, que fazemos de 2 em 2 anos aqui em Portugal e nos anos pares em Espanha, para mostrar a todos o que são estes bastidores do património cultural e levar mais pessoas a curtir o património cultural.

Como disse, a Bienal começou como Feira do Património em 2013, nesse ano em Lisboa. Porquê a descentralização nos anos seguintes?

C. V. G. – Sempre esteve prevista. Nós estamos aqui a falar neste coração de Lisboa, em Campo de Ourique, mas, de facto, a Spira está sediada em Alvito — que é o terceiro concelho mais pequeno do país, tem 2500 pessoas, e fica entre Beja e Évora. É de lá que nós imaginamos tudo o que fazemos. Lisboa veio por acréscimo, já numa fase posterior, a partir de 2013. A empresa é de 2007, e a Rota do Fresco nasceu lá, em 1998, imagine. Portanto, nós vemos o país um bocadinho ao contrário. Aquela expressão «Portugal é Lisboa e Porto, e o resto é paisagem» para nós é ao contrário — «Portugal é o seu imenso interior, e Lisboa e Porto é que são paisagem». O recurso património cultural é um recurso muito bem distribuído pelo país, com especificidades em cada região. Pelas características do país, de ser muito pequeno, e por causa desta coisa fantástica que foram as auto-estradas dos vários governos que fomos tendo, mas também das vias férreas e de outras formas de locomoção, é muito fácil circular, ao contrário de outros países europeus, portanto, fazia todo o sentido que, não podendo o património mexer-se, a Bienal fosse, no fundo, uma oportunidade para, em torno do património cultural, mostrar as actividades nessa matéria, desde empresas, instituições, projectos, dinâmicas culturais, em diferentes locais do país. Portanto, começámos em Lisboa, depois fomos para Guimarães, depois para Coimbra, depois para Amarante, e agora Loulé, procurando sempre reunir vários equipamentos culturais e monumentos, o que não é fácil, porque os monumentos não estão preparados para ter um evento deste tipo. Cada vez vai crescendo mais. Começou no Museu de Arte Popular, em Lisboa. Agora em Loulé, no próximo fim-de-semana, é um evento que cobre a totalidade do concelho e que ocupa mais de 7 equipamentos.

Mas se Lisboa veio por acréscimo, porquê ter começado em Lisboa?

C. V. G. – Porque Lisboa é a capital. Nós somos idealistas, mas também realistas. Lisboa é a capital e se, já de si, fazer uma Feira de Património era uma coisa nova, uma Feira de Património, que é um monopólio estatal, promovida por uma empresa privada era uma segunda dificuldade. Se a fizéssemos num sítio que não Lisboa ou Porto estávamos a acrescentar uma terceira dificuldade. Portanto, fizemos num equipamento que até é gerido pelo Ministério da Cultura e também porque o Museu de Arte Popular é um local emblemático — resulta da exposição de 1940. Na altura, nós dizíamos que era um sítio com imenso potencial e, aparentemente, agora está a ter essa intervenção, finalmente. Portanto, era inevitável fazer em Lisboa na primeira vez.

O facto de o evento ser itinerante causa algumas dificuldades particulares no planeamento?

C. V. G. – (risos) Isso é uma pergunta, certamente, de alguém que já montou alguma coisa. Sim, claro. Temos de começar sempre do zero, portanto todas as mais-valias que resultam de conhecer bem o território, parceiros, etc, não há. Nós temos duas maneiras de ver isso: ou lamentar-nos ou então ver todas as coisas boas que podem surgir daí. Nós em 5 anos já conhecemos vários sítios e, de facto, há uma grande diferença entre os sítios e isso para nós é óptimo, não é um problema. Além disso, temos os espanhóis e, a partir deste ano, também os italianos e os austríacos, porque celebrámos uma rede europeia de feiras do património. Candidatámos um projecto, aliás à Europa Criativa, e ganhámos. Portanto, sim, traz mais dificuldades, mas nós não somos de todo uma equipa que olhe para as coisas nessa perspectiva, olhamos sempre como um desafio.

Porquê a escolha de Loulé para a edição deste ano?

C. V. G. – Por dois motivos: primeiro, nós queríamos muito fazer a sul. O sul, ocupando uma tão grande parte do país — o Alentejo e o Algarve, sobretudo o Alentejo, que é a maior região do país —, não é muito tido em conta nestas acções estruturantes. Não é tido em conta por Lisboa, Porto e companhia, pela intelligentsia, mas também eles próprios não se têm muito em conta como promotores deste tipo de acções. É um casamento feliz: a intelligentsia acha que eles servem para outra coisa e eles próprios habituaram-se a achar que servem para outra coisa. A nossa visão não é essa. Encontrámos em Loulé uma equipa, nomeadamente o senhor Presidente da Câmara e a directora de cultura Dália Paulo — pessoas com quem foi muito fácil falar, num registo muito semelhante ao nosso do ponto de vista de fluidez de parcerias —, apresentámos a ideia, e passado uma semana disseram que sim. Tem sido um prazer trabalhar com a equipa de Loulé, que é chefiada pela Dália Paulo, que é uma pessoa que, como nós, vê as oportunidades e não as dificuldades. Isso faz toda a diferença num projecto com esta abrangência e com este número de parceiros envolvidos.

Que balanço faz da programação desta edição, relativamente a edições anteriores?

C. V. G. – Esta edição furou todos os scores. Para nós, a Bienal é um instrumento de intervenção no território, ancorado no património cultural. Nós não nos limitamos a fazer o evento durante os 3 dias, nós fazemos todo um programa de educação patrimonial no ano que antecede a Bienal com os miúdos da escola e acabamos por nos envolver bastante com o território. Também nesse sentido, passámos de um equipamento como o Museu de Arte Popular para uma fábrica, que tinha sido reconvertida no âmbito da Capital Europeia da Cultura Guimarães 2012 (e já utilizámos 2 equipamentos nessa edição em 2014). Depois, no Mosteiro de Santa Clara-a-Velha de Coimbra, utilizámos 3 espaços: o próprio mosteiro, criámos uma tenda e utilizámos o centro interpretativo. Em Amarante, trabalhámos o centro histórico, portanto, sempre cada vez com eventos mais extensos. Finalmente, em Loulé cobrimos o concelho todo, temos actividades nas freguesias todas. Isso para nós é importante, porque é a mesma lógica, se quiser, de não achar que Portugal é Lisboa e Porto e o resto é paisagem. Essa mecânica aplica-se também na esfera de concelhia, e se calhar aplica-se também noutras esferas. Nós quisemos perceber se havia ali uma harmonia cultural (pontuada pela diversidade, claro), que fosse possível de estar plasmada na programação.

Portanto, do ponto de vista de extensão territorial, a programação cobre a totalidade do município, nomeadamente com roteiros pela Serra, pelo Barrocal, e roteiros que vão também à zona costeira. Depois há roteiros urbanos, temáticos, em parceria com a Universidade do Algarve, 3 concertos, video-mapping (duas noites), na Festa do Património, um conjunto imenso de ateliers para as pessoas poderem participar... nós acreditamos muito que uma das formas de perceber o património é tocando nele, mexendo, que é o oposto das nossas visitas a museus, com as mãos atrás das costas, sem poder fazer nada, e bem... mas deviam ser criadas mecânicas paralelas, para as pessoas poderem interagir. Portanto, é uma programação que tem em todos os dias várias coisas a acontecer em simultâneo e em vários sítios, de modo que as pessoas têm de escolher aquilo que querem fazer. Pelo nível de inscrições que temos, vamos ter, não é a casa cheia, mas overbooking, se quiser. Isso agrada-nos muito. A programação tem vindo a densificar-se no sentido geográfico, mas também em quantidade e em termos de público-alvo. Nós cada vez temos uma programação melhor direcionada para o público adulto e depois uma grande componente para famílias e miúdos.

A sustentabilidade é o tema da edição deste ano, que é um tema que tem sido muito discutido e que parece ser cada vez mais importante. De que modo é que a Bienal vem contribuir para a conversa?

C. V. G. – Nós pegámos no tema da sustentabilidade justamente por ser um tema que está aí na crista da onda, mas, quando escolhemos sustentabilidade, escolhemos sustentabilidade aplicada ao património cultural. Dito de outra maneira: se há recurso endógeno que é um excelente exemplo de sustentabilidade é o património cultural. Um castelo que é construído há 1100 anos, com um propósito defensivo e de ataque, e que depois é reconvertido para quartel militar, depois para pousada, depois para atracção turística, não é mais do que um excelente exemplo de reutilização, de reaproveitamento, de reciclagem permanente, de adaptação às novas funções. E sempre com os materiais que o constituem, que normalmente são materiais que existem na natureza, sem ter, portanto, de se adicionar materiais que danifiquem de alguma forma aquilo que é o nosso território. Quer do ponto de vista de património edificado, como exemplo de renovação, de reciclagem, de reutilização, quer na dimensão, por exemplo, das práticas culturais do património material — por exemplo, na dimensão das artes e ofícios, que é uma área que está muito bem retratada na Bienal este ano. Nós fizemos um projecto com 1000 crianças do 3º ciclo, chamado “Empreita-te!”, que tem como objectivo dinamizar a técnica da empreita. A empreita é uma técnica que vai buscar uma folha de palma, que é uma palmeira anã que existe no Algarve. Seca-se as folhas e depois entrelaça-se e faz-se cestas e outros materiais. No caso das cestas (a cesta de empreita é uma cesta que dura anos e anos), neste combate que existe aos sacos de plástico no supermercado, a cesta de empreita dá 10 a 0 a todas as campanhas e a toda esta promoção que temos tido nesse sentido. A cesta de empreita sempre o fez, com a utilização de recursos naturais, de uma forma sustentável, reaproveitando, reutilizando, e até com uma dimensão cultural, no sentido do domínio da técnica. Nós é que não olhamos para estas artes e ofícios nesta perspectiva da sustentabilidade. Portanto, nós fomos buscar o tema da sustentabilidade para tentar deixar claro que o património cultural, nas suas várias manifestações, é um dos exemplos mais antigos e consistentes das práticas de sustentabilidade.

Porquê a escolha de Marrocos como o país convidado?

C. V. G. – Nós tivemos já um primeiro país convidado, que foi os Emirados Árabes Unidos, em 2015. A nossa linha de países convidados é a linha de países com património de expressão portuguesa, porque é isso que nos diferencia de outros países concorrentes no mercado internacional do património cultural. Nós temos uma relação com um conjunto de países, justamente pela nossa história, e, por isso, queremos, através dessa história comum, no presente, tentar estabelecer parcerias para trabalhos e projectos em conjunto que possamos desenvolver, de vários tipos: desde a parte de investigação e desenvolvimento, à parte da conservação e restauro, à parte da mediação cultural ou da revitalização e dinamização do património. No caso das artes e ofícios, por exemplo, Marrocos dá-nos 10 a 0 nesse campo. Podíamos aprender com eles que programas é que eles têm — como é que eles têm miúdos com orgulho nas artes e ofícios, que vêm de geração em geração, quando nós estamos numa situação exactamente oposta —, que caminho é que eles fizeram, como é que o fizeram, assim como nós também podemos ser úteis para eles nesta dinâmica de revitalização do património que se vive hoje em Portugal. Portanto, a lógica é essa, tendo sempre por base esta história comum.

E como é que vê a preservação do património em Portugal (por exemplo, em termos de financiamento público, interesse das pessoas, etc)?

C. V. G. – Em relação ao financiamento público, eu não faço parte do clube que diz «1% para a cultura». Não estou interessada nesse discurso, acho que não leva a lado nenhum. Não gosto da atitude e acho que não leva a lado nenhum, portanto, não gosto duplamente. Estou muito mais interessada em saber o que é que eu posso fazer para que isto funcione melhor. E há imensas coisas que se pode fazer e que não têm nada a ver com dinheiro, com ter mais dinheiro disponível. As políticas públicas deviam estar centradas em políticas de educação patrimonial. Hoje em dia, já há o Programa das Artes, em que a parte patrimonial não ocupa assim uma dimensão tão grande, mas eu presumo que o que importa é começar, depois os programas aperfeiçoam-se. Devia haver um programa onde as visitas de estudo fossem obrigatórias. Isso mudava logo, num horizonte de 15/20 anos, o número de portugueses que consome património cultural, que é muito baixo. Todo este momento bom que vivemos é à custa dos estrangeiros. Nenhum deles vem a Portugal sem visitar pelo menos um monumento, enquanto que os portugueses visitam pouquíssimos monumentos, porque não faz parte do seu mapa mental, como sendo, sobretudo, uma coisa deles. Eu diria que o que seria preciso mudarmos é as políticas públicas, porque não há mais ninguém que o possa fazer, portanto tem de ser o Estado a fazê-lo. Ou seja, é preciso introduzir o património cultural como um fio condutor dos currículos escolares, nos vários níveis de ensino, sem excluir nenhum nível de ensino. Todos os miúdos, com uma idade ou outra, têm capacidade e interesse pelo património cultural se a forma de mediação for a correcta. Isso levava-nos depois a perceber se temos as escolas preparadas e os professores preparados para isso, mas então aí há muito trabalho que associações e empresas podem fazer, nesse campo de apoio às escolas e aos professores. Eu diria que isso é o que faz falta nas políticas públicas e é a única coisa que tem de ser o Estado a fazer, não pode ser um agente privado a fazê-lo. No caso dos cidadãos, quando isso suceder, as coisas mudam. Até lá, era óptimo que houvesse um programa de televisão de divulgação do património cultural, dirigido ao comum dos mortais e não dirigido àqueles que já consomem património cultural, que normalmente é o que sucede. As pessoas que são formadas na minha área são formadas para falar da forma mais esdrúxula possível, para que ninguém perceba, e assim ninguém faz perguntas, assim ninguém põe em causa. Talvez pela minha formação francesa, que é muito uma formação de questionar, eu acho exactamente o oposto: eu tenho de falar da forma mais clara possível, para que toda a gente me perceba e para que aquele que não me perceba se sinta à vontade para perguntar. Até porque, como trabalho com um bem que é de todos (o património cultural), nem pode ser de outra maneira. Eu penso que falta um bocadinho esta ideia de serviço público e isso torna mais difícil que os cidadãos se associem ao património, mas pode haver uma campanha de publicidade.

Existem cerca de 35 mil monumentos em Portugal. Era só dizer às pessoas que, quando nascem, são donas. Cada um de nós é dono de 35 mil monumentos. Bastava dizer isto logo no início para as pessoas terem uma relação com esse bem diferente. É um bem colectivo de cada um de nós, não é um bem do Estado. As pessoas que estão a gerir no Estado este bem estão a fazê-lo ao serviço dos cidadãos, nós não estamos ao serviço deles. Mas há toda esta perversão que faz com que os cidadãos fiquem muito quietinhos, à espera que alguém decida. Possivelmente, também vem da nossa história recente. Depois, quem lá está obviamente, como qualquer ser humano, habitua-se a poder fazer tudo e acaba por ser, outra vez, um casamento feliz entre ambas as partes. Portanto, eu penso que isso só se rompe com uma política de educação patrimonial e, para aqueles que já são adultos, era preciso uma campanha de aproximação das pessoas ao património cultural. Até lá, os agentes que actuam no sector devem ter trabalho na área da mediação e, por exemplo, eventos como a Bienal contribuem certamente para isto. A entrada é gratuita, toda a gente pode participar, toda a gente pode mexer, toda a gente pode fazer perguntas, não há pré-requisitos. Toda a gente se pode misturar e eu penso que isso contribui para haver esse sentimento de propriedade, no melhor sentido da palavra, do património cultural. Só quando isso mudar, como acontece em França e em Inglaterra, em que é evidente que é de todos, é que os nossos concidadãos terão uma relação diferente com o património cultural.

Que futuro antevê para a Bienal e para a Spira?

C. V. G. – Para a Bienal, acho que não se deve falar em causa própria, mas acredito que presta um serviço interessante ao sector do património cultural, na área profissional, mas também ao cidadão. E ao país, porque com esta dimensão internacional, de facto, é um evento que contribui para a valorização do património cultural, de quem trabalha nesta área, e para esta ideia da sensibilização patrimonial para os cidadãos nacionais e para os cidadãos que cá vivem, independentemente de serem nacionais ou não. Eu espero que ela continue a poder ter essa função, cada vez mais consistente. Foi um evento que cresceu muito rápido, em 5 anos, e, portanto, é um evento que nos enche sempre de satisfação. Espero que continue e que continue a poder ser itinerante. O desafio máximo seria fazê-la nos Açores (risos). Acho que poderia ser divertido, vamos ver. Estão sempre a dizer-nos que tudo o que não seja em Lisboa não devemos fazer. Também nos disseram que é muito difícil a sul... vamos ver o que acontece nestes 3 dias e quantas pessoas vamos ter. Mas desejo que continue a crescer e que se reforce esta ideia de instrumento.

Para a Spira, espero que continue o seu caminho. Já somos crescidos, portanto espero que sigamos um caminho de consolidação. Continuamos com projectos. Há um compromisso meu com a equipa de não lançar mais novas ideias, mas é um compromisso que todos os anos não cumpro. Mas, de facto, já começamos a ter um catálogo muito significativo. Espero que as pessoas continuem a sentir-se bem a trabalhar aqui e, outra vez, que continue a ser um instrumento ao serviço da sociedade. Há esta ideia muito clara da nossa parte de que não é por ser uma empresa que não é um elemento transformador da sociedade, trabalhando na área do património cultural. Uma empresa que trabalha na área do património cultural tem o dever de tomar bem conta do património, claro, mas também tem o direito de ser um agente transformador. Essa percepção de que os cidadãos reunidos na forma de empresa não têm direito a actuar no património cultural é uma coisa que, de facto, continuo a ouvir — porque são exploradores, capitalistas e outras coisas do género, automaticamente — e é uma ideia muito perversa, de alguma forma destrutiva de uma nova geração que possa querer trabalhar nesta área. A Spira tem uma média de idades muito baixa, vai buscar pessoas a vários quadrantes, e eu espero que possamos continuar a fazer isso. Nesse sentido, tenho muito orgulho por poder ter pessoas a trabalhar aqui formadas em áreas similares à minha, ou em áreas que aparentemente não teriam muitas saídas, e de mostrar que é possível uma empresa também ter essa função social.

Podes consultar aqui o programa da Bienal Ibérica do Património Cultural 2019.

*texto escrito segundo o Acordo Ortográfico de 1945

Texto de Francisco Cambim
Fotografia de Nuno Marques disponível via site Parques de Sintra
O Gerador é parceiro da Bienal Ibérica de Património Cultural

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