O conceito de marca moderna é, em grande parte, um dos muitos subprodutos da Revolução Industrial. A era do ferro, da fábrica e da máquina a vapor trouxe consigo o aumento da capacidade produtiva e o alargamento geográfico dos mercados. Não menos relevante, impulsionou um período de crescimento económico sustentado e transversal, até aí nunca experimentado pela população como um todo. Com mais produtos a circular e um mercado cada vez mais dilatado, as empresas viram-se, então, obrigadas a criar instrumentos de identificação e distinção da sua oferta, e, mais tarde, a evoluir esses mesmos instrumentos para unidades de significação simbólica. Começava, assim, o caminho de afirmação das marcas comerciais no novo mundo da economia de mercado.
Este processo, que fez das marcas um dos activos de maior estatuto na gestão empresarial, não foi, naturalmente, instantâneo. Foi, sim, uma viagem de descoberta, com capítulos errantes e andamentos distintos, de acordo com a maturidade de cada empresa, de cada sector e de cada país. Se formos honestos, chegou ao século xxi ainda em mutação e com muitas críticas, suspeitas e receios à mistura. Não obstante, uma vez iniciado, já não teria retorno. Mais importante, não se limitaria ao mundo da economia. Na verdade, foi precisamente a infiltração na orgânica da sociedade, para lá da dimensão económica estrita, que consolidou a importância das marcas junto das próprias organizações comerciais. E seria esse mesmo salto social que as haveria de catapultar, também, muito além do circuito comercial que as criou.
Hoje, reconhecemos às marcas uma dimensão psicológica e antropológica que as tornou também úteis, valiosas e inevitáveis além do espectro do grande consumo. De facto, ultrapassadas aquelas que seriam, à partida, as suas fronteiras naturais, as marcas afirmaram-se, por fim, em quase todos os domínios de actividade, como elo central na relação entre organizações e respectivos públicos. Na educação, no turismo, no desporto, na moda ou na geografia, sem esquecer a saúde, as organizações sem fins lucrativos ou os programas de voluntariado. No fundo, praticamente todas as áreas com necessidade de relacionar pessoas, de relacionar pessoas com organizações ou de relacionar pessoas com ideias. E é assim que podemos afirmar com segurança que há, também, marcas na Cultura.
Mas porquê falar de marcas na Cultura?
Embora a expansão territorial das marcas tenha ocorrido sem revolução aguda, foi, ainda assim, recebida com relutância assumida no mundo da Cultura. E é fácil de encontrar razões legítimas para tal. Em primeiro lugar, o facto de terem começado por ser trabalhadas pela publicidade e pelo marketing, com tácticas nem sempre imaculadas, deixou cicatrizes públicas e sociais difíceis de sarar. Não é forçado assumir que a aura turva que ainda hoje as escolta colide frontalmente com o ideal humanista que é, de forma abstracta, promessa última da Cultura. Apesar de ser defensor convicto de que as marcas compreendem um imenso potencial positivo, reconheço que, face à pesada herança que carregam, há ainda muito trabalho a fazer para cumprir tal desígnio. Ironicamente, a alma da Cultura é, acredito, um dos melhores elixires para contrariar tais preconceitos.
Por outro lado, não obstante a amplitude dilatada do conceito de marca, é evidente que é no mundo comercial — o mundo dos produtos e dos serviços de grande consumo — que ele tem expressão mais vincada. Ora, para um domínio como o da Cultura, que vive numa tensão sensível entre a tradicional necessidade de financiamento externo e o desejo de autonomia criativa, a lógica das marcas comerciais — a face visível de um mercantilismo impiedoso, que tende a sobrepor o resultado económico a qualquer outra consideração possível — é, claro, uma visão assombrosa. Deste prisma, a repulsa é compreensível. Não obstante, existe aqui um claro equívoco, que, embora seja hoje menos pronunciado, importa desfazer, a bem da própria afirmação social da actividade cultural.
Não tenho dúvidas que os mecanismos do mercado são desadequados ao desenvolvimento da iniciativa cultural. O retorno da Cultura não pode ser apenas medido em números, numa desapaixonada folha de cálculo. Mas sei também que a agressividade comercial que as instituições culturais atribuem às marcas é, sobretudo, um reflexo do próprio mercado, não uma característica a elas intrínseca. Por outras palavras, as marcas comerciais são economicamente aguerridas porque o mercado em que operam assim o exige. Quando consideradas no âmbito da Cultura, a sua definição tem necessariamente contornos distintos, de acordo com as prerrogativas próprias da Cultura. Princípio igual encontramos, por exemplo, nas marcas de turismo, de saúde ou de educação.
Quer isto dizer que pensar numa instituição cultural como uma marca não é transformá-la numa empresa cuja actividade se define, unicamente, em função dos resultados económicos. É, pelo contrário, pensar a instituição de acordo com os desígnios humanistas que a determinam, recorrendo, para os afirmar, a um conjunto de princípios, códigos e matrizes partilhado de forma abrangente pela sociedade. Um conjunto de princípios, códigos e matrizes a que cada um de nós recorre, instintivamente, para fazer sentido do mundo. Enfim, um conjunto de princípios, códigos e matrizes que é inevitavelmente procurado — e desejado — pelo público, quer seja trabalhado deliberadamente ou não pela instituição.
Hesitar, evitar ou, simplesmente, ignorar a gestão de marca na Cultura é, ironicamente, contrariar uma das razões existenciais mais profundas da actividade cultural: a relação com o espectador. Como perceberam primeiro as empresas comerciais, o público relaciona-se com as organizações muito para lá da dimensão funcional dos seus produtos. E é precisamente a partir desse aprofundamento que são construídos os significados mais íntimos e mais gratificantes. Os significados que, em retorno, dão verdadeiro sentido a cada produto na esfera pessoal do indivíduo. É justamente como repositório abstracto dessa significação simbólica que as marcas têm valor, independentemente da área em que habitem — também com alguma ironia, esta ponte particular com o mundo sensível do público-consumidor é, provavelmente, das melhores lições que o mercado deixa ao mundo das artes.
Ora, na Cultura, o ponto de partida — a oferta cultural — é já, na sua essência, uma expressão marcada de simbolismo e de emoção. Extinguir essa chama além da tela, do palco, do verso escrito é, mais do que um desperdício, uma irresponsabilidade tremenda. A diferença é simples: uma instituição identifica-se pelo nome, uma marca abre o caminho para o coração.
Marcas como o mínimo denominador comum ou o epílogo incompleto
Porque a Cultura não vive isolada no seu mundo, deixo uma última nota — um epílogo incompleto, se quisermos — a este respeito. Assumir que na delicada relação entre instituições culturais e empresas privadas estamos a falar de uma parceria entre marcas — um co-branding, como se diz na gíria do marketing — tem vantagens nada menosprezáveis. Afinal, trata-se de uma afirmação implícita de que os benefícios são mútuos, não unilaterais. Mesmo no campo da semântica, é um argumento carregado de significado. Mas, para tal, temos de admitir primeiro: também há marcas na Cultura.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
– Sobre João Campos –
É director criativo do Estúdio João Campos, onde colabora com marcas comerciais e instituições culturais, e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019). Dá aulas de branding no ISCSP-ULisboa e no IADE. Acredita que a Cultura, pelo seu potencial humano e social, é um dos melhores companheiros de viagem para as marcas de hoje e, sobretudo, para as marcas do futuro. É sobre isso que escreve no Gerador.