Não há muito tempo, numa aula de pós-graduação, um aluno lançou-me uma questão curiosa: «que marca mais admiras?», atirou. Fui apanhado de surpresa. Não pela pergunta em si, perfeitamente normal — expectável, diria — naquele contexto particular. Fui apanhado de surpresa por não ter sido capaz de lhe responder. Ensaiei argumentos improvisados e deambulei por ideias vagas, numa espécie de sumário introdutório à desejada resposta. Mas, no final, acabei por não me comprometer convictamente. Eu, pelo menos, não fiquei convencido. E duvido que algum dos presentes tenha ficado. Terminei a sessão algo divertido com a ironia da situação. Afinal, é sobre o universo das marcas que orbita a minha vida profissional — era de esperar uma resposta definitiva na ponta da língua. Porém, a persistência de tal incapacidade para lá do imediatismo da aula começou a intrigar-me. Seria apenas ironia ou sintoma de um mal maior?
De um ponto de vista meramente técnico, a gestão de marca é uma área bem apetrechada de bons exemplos. Um olhar fugaz por dois ou três livros sobre o tema não só o comprova, como ajuda a identificar, pela repetição de aparições, as marcas que mais e melhor se distinguem. Por aí, encontrar uma resposta satisfatória estava longe de ser um problema. Porém, e acredito que de forma deliberada, a pergunta falava em admiração, não propriamente de um reconhecimento técnico. E a admiração, porque aponta aos valores pessoais, baralha a equação da resposta académica.
Como tenho vindo a defender insistentemente, sou da opinião que o consumidor-cidadão — o tal humano-consumidor interessado no mundo para lá do imediatismo e da privatização do consumo — tem um papel imprescindível no desenho de um modelo capitalista mais consciente e, consequentemente, de uma sociedade mais justa e mais equilibrada. Tal premissa resulta do reconhecimento de que, de um modo geral, enquanto consumidores, procuramos marcas que se alinhem com os nossos valores pessoais — pelo que, quanto mais nobres eles forem, maiores serão as exigências que fazemos às marcas que elegemos. Por aqui, percebe-se, a admiração tem um lugar vincado na minha filosofia particular de marca. Diria até que é um dos impulsos que melhor a alimenta. Mas, devo confessar, nunca me tinha colocado de forma tão autoconsciente nos sapatos deste meu consumidor-cidadão. Nunca tinha feito o exercício, sem rede, de pessoalização da teoria, como me obrigava agora tão bem formulada questão. E se a surpresa me levou, primeiro, à ironia, a reflexão por ela motivada transformou-se, rapidamente, numa preocupação muito particular: seria o meu idealismo apenas impraticado ou, pior, impraticável?
Do idealismo à exigência
Quando entramos no domínio do idealismo — lugar que me é bastante familiar, reconheço —, torna-se claro que uma certa aura utópica não pode ser dele descolada. E a utopia, como sabemos, traz consigo o espectro da impossibilidade. Parece-me legítimo assumir, na verdade, que a minha incapacidade em nomear convictamente uma marca admirável, sobretudo num contexto trivial de aula, não é, senão, uma prova concreta desta proverbial impossibilidade utópica. O ponto fraco do idealismo que o arrisca à inconsequência. Mas se assim é — e eu admito que o seja —, qual então o sentido de elevar expectativas ao limiar da impraticabilidade? Para quê reivindicar para as marcas territórios de ocupação improvável? Porquê apostar, ou apenas acreditar, numa doutrinação positiva para lá das áreas que, como a Cultura, já o são intrinsecamente?
Curiosamente, embora mais complexas, estas perguntas têm uma resposta francamente simples: porque há possibilidades pelas quais vale a pena lutar. Mesmo que, aparentemente, inatingíveis. O simples movimento de aproximação é, em si, um catalisador de mudança positiva. O cineasta argentino Fernando Birri comparava a utopia à linha do horizonte: por mais que caminhemos, nunca a alcançaremos. Mas existe — está lá —, defendia, para que nunca deixemos de caminhar. Ora, porque deste percurso de Birri em direcção ao horizonte utópico — a que poderíamos muito bem chamar de rota dos idealistas — tenderão a resultar melhorias incrementais, estaremos, então, mais próximos de construir o que o futurista norte-americano Kevin Kelly chamou de protopia: um caminho realista, e efectivo, para uma civilização melhor, não necessariamente perfeita.
Admito que o vazio da minha não-resposta seja uma profunda injustiça para com tantos esforços meritórios, que, muito justamente, podiam ter sido nomeados. Mas essa é, talvez, uma prerrogativa incontornável da insatisfação idealista que, assim, aceito com naturalidade. Afinal, parece-me, é no idealismo — impraticado ou impraticável — que se funda, e renova, a exigência. E eu, enquanto profissional de marca, e enquanto consumidor-cidadão, não estou disposto a abdicar dela. Mesmo que, pelo caminho, fique sem resposta a perguntas simples.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
– Sobre João Campos –
É director criativo do Estúdio João Campos, onde colabora com marcas comerciais e instituições culturais, e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019). Dá aulas de branding no ISCSP-ULisboa e no IADE. Acredita que a Cultura, pelo seu potencial humano e social, é um dos melhores companheiros de viagem para as marcas de hoje e, sobretudo, para as marcas do futuro. É sobre isso que escreve no Gerador.