Tenho o privilégio de dividir o meu tempo entre marcas comerciais e instituições culturais. Da prateleira do supermercado ao palco do teatro. É verdade que são realidades que raramente se sobrepõem na agenda, mas cruzam-se, inevitavelmente, no pensamento. E dessa intersecção não planeada, nem sancionada, resulta um olhar positivamente contaminado: não vejo a Cultura desligada da lógica do mercado, nem o mercado desvinculado do potencial da Cultura. A exacta medida em que esta equação singular pode ser operacionalizada é, claro, diversa e, em grande parte, elusiva. Mas a convergência de órbitas, mesmo quando espontânea e improvisada — ou, até, inconsciente —, é um exercício com resultados nada menosprezáveis. E disso, sou testemunha fervorosa.
Infelizmente, fora do estúdio — para lá do meu mundo de infinitas possibilidades —, a realidade é pouco dada a sinergias que não se provem com tangibilidades instantâneas. Queiramos ou não, são hoje poucos os quadrantes imunes à lógica de urgência em que opera o mercado. Ora, não ignorando o prazer imediato que lhe é inerente, a Cultura produz os seus efeitos mais profundos numa escala temporal alargada e nem sempre evidente. Suspeito, por exemplo, que, à data da invenção da prensa móvel que imortalizou Gutenberg, fosse difícil imaginar que o livro impresso viria a ter o papel fundamental que assumiu na transição da Idade Média para o Renascimento (não deixa de ser, por isso, irónico — além de preocupante — que se opte cada vez mais por consumir informação em formato de tweet, em detrimento da página de papel).
Este efeito retardado, chamemos-lhe assim, é, num primeiro momento, lesivo sobretudo para a afirmação do valor da Cultura e para a sua consequente capacidade de atrair investimento. O dinheiro é palpável e quantificável no imediato; o que a Cultura devolve — o valor humano e social — tende a ser imaterial, abstracto e materializado em tempo incerto. Nesse sentido, não surpreende que quando o destino coloca marcas comerciais na órbita do sector cultural tradicional, a troca de benefícios aparente uma tendência unilateral. Afinal, para lá da reputação, qualquer retorno sobre o investimento privado na Cultura parece não ir além de uma mera gratificação simbólica ou residual. Mesmo a ideia de reputação, já agora, é por definição uma noção pouco concreta. Este desequilíbrio enganador atira a Cultura para a castradora posição de subserviência em que a encontramos usualmente, por exemplo, no contexto do mecenato. E, de um modo mais profundo, impede que o investimento cultural gere verdadeiro valor positivo. Para as marcas e, claro, para a sociedade como um todo. É nesse sentido que, perante a evidente dissonância temporal entre o ritmo do mercado e o andamento da Cultura, vale a pena, então, fazer a pergunta: que tempos são estes, afinal? E, para começarmos a olhar para o desafiante paradigma que coloca as marcas comerciais na senda do sector cultural, nada melhor do que uma analogia espacial: o velho binómio centro-periferia que tão caro é à sociologia das artes.
Centro e periferia, o espaço e o tempo
Numa leitura ligeira, o chamado centro — que facilmente associamos ao domínio do mercado e das marcas comerciais — é o lugar idílico das possibilidades, dos recursos e das certezas tangíveis. Em sentido contrário, na periferia — a geografia metafórica da Cultura — escasseiam oportunidades e materialidades. O desafio à sobrevivência é uma inevitabilidade estruturalmente aceite (e talvez celebrada com orgulho excessivo).
Diante da simplificação do problema a estas premissas primárias, a solução para a articulação dos dois domínios parece evidente: deslocar a actividade cultural da periferia para o centro. Isto é, vergar a Cultura à lógica do mercado. E a suportar tal argumento, ajuda que a dimensão do entretenimento forneça provas claras da capacidade da Cultura em operar de acordo com os preceitos do mercado, gerando ecossistemas económicos rentáveis. A título de exemplo, não é por filantropia que as maiores marcas nacionais emprestam os seus nomes aos chamados festivais de verão — trata-se, claro, de uma decisão de negócio, facilmente fundamentada na folha de cálculo mais tecnocrata. Mas será este nivelamento a única solução possível ou, até, a mais desejável?
Regressando à ideia de centro, desta feita com olhar atento, é evidente que o tal admirável mundo de oportunidades assenta numa dinâmica de urgência, de velocidade, de efemeridade. Nele, o risco e a experimentação, o aprofundamento e a minúcia tendem a ser suplantados pela aposta segura e pelo resultado instantâneo. Não ignorando as óbvias vantagens da agilidade de passo acelerado — às quais a periferia não deve ser alheia —, é importante reconhecer que essa mesma agilidade contribui, igualmente, para um processo progressivo de homogeneização, de nivelamento pelo superficial. Um passar de olhos pela monotonia visual que preenche as prateleiras de supermercado é um exercício tenebrosamente elucidativo. Mas indiscutivelmente mais grave, importa sublinhar, as questões que hoje desagregam o tecido social — das fakes news ao racismo, da desigualdade de género aos populismos extremistas — são, também, um subproduto de uma sociedade submetida à condição de mercado nos seus vectores mais essenciais. Uma sociedade a ceder, perigosamente, à reflexão simplista e apressada. Enfim, uma sociedade que tanto se afasta do ideal humano, como da teia social que suporta as marcas.
Ora, ultrapassado o preconceito do atraso, é precisamente na periferia que encontramos o contraponto para esta espiral viciosa. Lá, a uma distância saudável da pressão do centro, encontra-se o espaço e o tempo necessários a uma leitura do mundo ponderada; a um espírito crítico independente, informado e libertador; a uma criatividade impulsionadora de inovação. No fundo, a uma dimensão humana tradicionalmente subestimada pelo ímpeto convulso do mercado, mas que tanta falta lhe faz. E, assim, o que parece ser uma geografia dependente e subdesenvolvida é, com efeito, o território de um saber complementar, de valor indispensável e absolutamente essencial.
Com mais ou menos relutância, é genericamente aceite que, para existir, a Cultura precisa do mercado. Em sentido inverso, ainda que menos evidente, acredito convictamente que o mercado urge pela Cultura para se libertar das suas próprias limitações. É este eixo de dependência recíproca que, sem guião fixo, me proponho aqui a explorar, neste espaço de crónica que hoje lançamos. Porque mais do que dois tempos a nivelar, estes são dois tempos a respeitar. Apenas assim poderão aprender um com o outro aquilo que, de certeza, o futuro lhes vai exigir. Os tempos assim o ditam.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
- Sobre João Campos -
É director criativo do Estúdio João Campos, onde colabora com marcas comerciais e instituições culturais, e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019). Dá aulas de branding no ISCSP-ULisboa e no IADE. Acredita que a Cultura, pelo seu potencial humano e social, é um dos melhores companheiros de viagem para as marcas de hoje e, sobretudo, para as marcas do futuro. É sobre isso que escreve no Gerador.