Das muitas capacidades que são apontadas como definidoras da unicidade do ser humano, uma das que mais me agrada é, sem dúvida, a proposta por Daniel Gilbert. Afirma o psicólogo norte-americano que é a nossa particular aptidão para pensar sobre o futuro aquilo que mais nos distingue enquanto espécie. Nas palavras do próprio, «experimentar o mundo como não é e como nunca foi, mas sim como poderá ser» [1]. Gilbert refere-se, claro, ao que chamamos vulgarmente de imaginação. Mas trata-se de uma imaginação que precisa de criatividade para se revelar consequente. É esse binómio ímpar e improvável que nos permite moldar o presente num futuro intencional, em vez de sermos forçados a aceitar, passivamente, o futuro inevitável que o passar do tempo assegura.
Mesmo quando não se propõe a olhar, em específico, para o amanhã, a actividade artístico-cultural é um dos indícios mais claros deste ímpeto que impele o ser humano a questionar o seu lugar no mundo e a intervir activamente sobre o contínuo temporal que o dirige. O artista-criador é, pois, figura maior na rebeldia contra a ditadura de um destino passivo. É isso que, antes de mais, celebramos no palco do teatro, que contemplamos na parede do museu ou que admiramos no verso do poema. A Cultura recorda-nos, com ritmos, cores e rimas, que a vida pode ser conquistada, não apenas sobrevivida.
Não nos devemos esquecer, contudo, que mesmo sem exuberância igual à que encontramos no mundo das artes, a criatividade e a imaginação são recursos humanos universais, imprescindíveis a qualquer domínio de actividade que pretenda ir além do instinto e da rotina. Das humanidades às engenharias, das ciências económicas às ciências políticas, da inovação tecnológica transformativa à simples gestão empresarial diária, a resolução de problemas é desafio comum, se não a todas, à maioria das chamadas áreas do saber. E, genericamente, os problemas resolvem-se, claro, com criatividade. É verdade que, no geral, não se trata do género de criatividade anunciada com a cativante dimensão artística que encontramos num bailado ou numa pintura. Em muitos casos, não só é a criatividade invisível, como nem sequer chega a ser identificada como tal. Não obstante, mesmo que sem impetuosidade artística, mesmo que sem a espectacularização pública e mesmo que sem reconhecimento consciente, toda a criatividade é manifestação dessa originalidade humana que nos distancia dos restantes inquilinos do planeta. A originalidade humana que, com ímpeto compulsivo, cumpre a imaginação de Gilbert. E, assim, é, pois, legítimo perguntar: será a Cultura apenas outra expressão desta particular aptidão humana ou algo mais?
A Cultura e o espírito dos terceiros lugares
No final da década de 1980, o sociólogo norte-americano Ray Oldenburg cunhou o termo terceiros lugares, referindo-se aos locais informais da vida pública — os pontos de encontro além da casa (o primeiro lugar) e do escritório (o segundo lugar). De acordo com Oldenburg, esses espaços interactivos de partilha, geralmente vistos como lugares de escape momentâneo ao tédio da vida, eram, na verdade, mediadores ignorados de um pulsar criativo positivo. Era ali, no encontro informal de olhares díspares, que a história das novas ideias se introduzia. Era ali, na troca social de experiências distintas, que se semeavam os frutos de uma imaginação partilhada. Era ali, enfim, que relações improváveis se materializavam em energia criativa consequente.
Na sua interpretação literal — aquela que Oldenburg desenvolveu —, os terceiros lugares são um argumento atraente para a organização do espaço público: admitindo a importância da criatividade na realização do potencial individual e no progresso da sociedade, é do interesse de qualquer cidade fomentar tais lugares de partilha acidental. A este nível, será tão importante a instituição cultural, como o jardim público ou qualquer espaço de lazer informal — que papel não terá tido A Brasileira, e as famosas tertúlias lá promovidas, na obra de Fernando Pessoa ou de Almada Negreiros?
Não é, também, por acaso que empresas como a Google, cujo maior capital é a criatividade humana, reproduzam a orgânica dos encontros casuais dos terceiros lugares nos seus próprios campus, criando espaços de socialização fortuita: cafés, restaurantes ou até mesmo elevadores lentos. Por seu lado, Steve Jobs, talvez a figura da nossa era que mais se destacou a capitalizar os labirintos da criatividade, insistiu que os escritórios da Pixar tivessem apenas casas de banho no átrio principal do edifício. A ideia era simples: forçar encontros inesperados, criar relações improváveis.
Apesar de cativante na sua lógica original, para desenharmos um argumento particular em nome da Cultura sobre a hipótese de Oldenburg, precisamos, contudo, de extrapolar o seu sentido de fisicalidade, e pensar os terceiros lugares como espaços mentais afastados da rotina cerebral regular. Explica-nos a investigação recente no campo da criatividade que, longe da ideia romântica de epifania divina, os processos cerebrais que conduzem a ideias novas podem, na verdade, ser mapeados. Neles, um aspecto dominante é o ponto de descontração mental, situado entre a procura activa e o alheamento total, que permite associar, recombinar ou sobrepor ideias até então arquivadas ordenadamente pelo cérebro. Por outras palavras, um terceiro lugar neural onde se criam relações improváveis. Ora, é precisamente aí que a Cultura tem, com destacada singularidade, os seus efeitos mais positivos sobre a criatividade humana. Em primeiro lugar, porque é propagadora, por excelência, de um fluxo contínuo de ideias, talvez dispersas e aparentemente inúteis, que acabamos por depositar no tal arquivo dormente do cérebro. Tudo quanto absorvemos da representação cultural é matéria potencial para os encontros acidentais que geram as ideias transformadoras. Em segundo lugar, mais importante, além da fruição consciente, é o estímulo inconsciente que melhor nos transporta para o terceiro lugar neural, onde as ideias são agitadas e a criatividade acontece. Sem pretensão deliberada, a Cultura é a compulsão que coloca em marcha o ímpeto criativo que nos faz reconsiderar o mundo.
Pensar a Cultura para lá da reputação institucional
Porque não existe sem partilha, sem exposição, sem crítica, a Cultura será sempre mais do que um reflexo passivo do génio criativo humano. Para lá do ciclo normal de produção e fruição — que concentra, de forma míope, o monopólio dos méritos atribuídos à manifestação artística —, o impulso cultural é uma força de contágio da própria energia que o cria. Um agente multiplicador que opera, inevitavelmente, sobre a dimensão criativa de cada espectador. Ora, se dúvidas houver, além da evidente dimensão humana e social, este é, também, um claro argumento económico a favor do investimento privado na Cultura. Por simplicidade de exposição ou facilitismo de pensamento, é habitual resumir-se o retorno do mecenato cultural numa qualquer ideia genérica de reputação institucional. Embora não conteste tal princípio, sou da opinião que ele ignora várias das externalidades positivas que a Cultura produz. A criatividade, e o seu papel enquanto estímulo económico, é apenas uma delas. Uma sociedade mais criativa é, sem dúvida, uma sociedade mais próspera economicamente. Para tal é, pois, vital construir e alimentar esses terceiros lugares onde as relações improváveis têm origem.
[1] Gilbert, D. (2007). Stumbling on Happiness. New York: Vintage Books. Tradução livre.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
– Sobre João Campos –
É director criativo do Estúdio João Campos, onde colabora com marcas comerciais e instituições culturais, e autor do livro Marca Positiva (Influência, 2019). Dá aulas de branding no ISCSP-ULisboa e no IADE. Acredita que a Cultura, pelo seu potencial humano e social, é um dos melhores companheiros de viagem para as marcas de hoje e, sobretudo, para as marcas do futuro. É sobre isso que escreve no Gerador.