Não sei quando é que costumam ocorrer as vossas reflexões «do novo ano», mas as minhas acontecem mais ou menos por esta altura. As reflexões não costumam ser necessariamente sobre que projecto vou criar ou objetivos muito concretos sobre onde quero chegar, mas sim sobre os próprios movimentos activistas e que papel – ou com que lentes – é que acredito que vou acrescentar mais valor.
Acredito que é uma reflexão importante para todas as pessoas minimamente politizadas.
Atrasei-me na entrega desta crónica (obrigada, Gerador, pela paciência), porque mudei de tema à última hora e achei que era mesmo importante partilhar esta reflexão convosco.
Enquanto pessoa de esquerda, tenho-me debatido muito sobre a integração e o avanço das politicas identitárias vs. as políticas «colectivas». O problema está exactamente neste «vs.». Mesmo fazendo eu parte de comunidades de «política identitária» (ser mulher e LGBTQIA+, por exemplo), preocupa-me o espaço não-inclusivo que algumas destes movimentos têm ocupado. Preocupa-me quando, num extremo, se acredita a verdadeira solidariedade só pode existir quando alguém partilha exactamente a mesma «biografia» que nós.
O Combahee River Collective foi uma organização feminista negra ativa em Boston de 1974 a 1980, liderada por Barbara Smith. Um dos marcos do trabalho que produziram foi terem escrito a «Declaração do Coletivo Combahee River», um documento essencial na história do feminismo negro contemporâneo e no desenvolvimento dos conceitos de identidade.
Nessa declaração, podemos ler:
Nós percebemos que as únicas pessoas que se importam connosco o suficiente para trabalhar conscientemente pela nossa libertação somos nós. Acreditamos que a política mais profunda e potencialmente mais radical vem directamente da nossa própria identidade em oposição a trabalhar contra a opressão de outrem. [tradução de Daniel Oliveira durante o seu podcast "Perguntar Não Ofende"]
Mesmo não rejeitando a solidariedade com os homens na luta contra o racismo, esta declaração criava um «muro de incompreensão», reforçando a ideia de «somos nós a lutar por nós porque os outros não compreendem a 100 % a nossa opressão».
E é verdade que não compreendem. Concordo que essa incompreensão pode ser perigosa, mas também acredito que deve ser trabalhada e não assumir um papel de total de exclusão.
Acho perigosa esta ideia de que a luta pelos direitos dos outros, diferentes de nós, não é nossa. É perigosa esta ideia de que a consciência política nasce – somente – de uma experiência pessoal, e não da adesão a uma ideia (mesmo que abstracta).
A luta pelos direitos dos outros diferentes de nós, é nossa também. Podemos (e devemos) é ter consciência de qual é o nosso papel nessa luta.
Esta lógica pode parecer óbvia, mas talvez se torne mais desconfortável quando aplicada na prática. Por exemplo, significa, sim, que devo juntar-me a uma mulher negra com ideias homofóbicas na sua luta anti-racista, mesmo que ela não «aceite» a minha identidade (pertencer à comunidade LGBTQ). Isto não é o mesmo que dizer que oprimido e opressor devem dar as mãos em nome de «um bem maior» – claro que cada caso é um caso –, mas, num cenário compreensivo da luta anti-racista, é importante a solidariedade e mobilização geral, aceitando que nem todas as pessoas que sofrem aquela opressão entendem todas as minhas camadas de identidade.
A solidariedade é exactamente o querer fazer parte da solução tendo empatia por uma realidade que não é necessariamente a minha. Sinto que, desde há uns anos, alguns movimentos se têm definido mais por aquilo que excluem do que por ideias de empoderamento colectivo. Isto leva a um enfraquecimento das lutas.
Historicamente, num caminho que nunca é perfeito, a luta de classes veio estimular outras lutas (como a igualdade de género), bem como a luta pela igualdade de género veio impulsionar conquistas na luta pelos direitos LGBTQ+. A solidariedade colectiva nunca empoderou uma só pessoa, na sua biografia individual e muito específica.
Queremos ser ouvidas, e trabalhar na visibilidade de toda esta pluralidade é essencial para se construir uma mudança sustentada a longo prazo. Mas também é importante aceitarmos que não é sobre mim, é sobre nós.
Neste momento em que vos escrevo, acredito com muita força que – se queremos construir maiorias sociais – um desafio importante do próximo ano será, nunca deixando a nossa identidade em casa, conseguirmos trabalhar – colectivamente – na união e cooperação entre as nossas lutas.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
-Sobre a Carolina Pereira-
É ativista na área dos direitos humanos, feminismo e media, tanto no terreno, como fazendo uso das histórias para motivar a mudança e organizar movimentos grassroot. É fundadora da HUMAN (dontskiphumanity.com) –, centrada em mobilizar e capacitar uma nova geração de ativistas através de impact storytelling, e co-directora da Sathyam Project (Índia) – trabalhando na educação de raparigas para quebrar ciclos de pobreza nas suas famílias.