Um dos maiores dramas urbanos contemporâneos é o design dos letreiros, cartazes, flyers, menus, etc., com os quais somos atingidos diariamente em restaurantes, lojas ou outros espaços públicos. Com a desenfreada evolução das cidades, impulsionada pelo turismo e dinheiro estrangeiro que tem entrado, assistimos à renovação e, em alguns casos lamentáveis, à pura destruição de espaços antigos e a sua substituição por outros mais modernos. É óbvio que muitas renovações são bem-vindas, enquanto outras são facadas terríveis no nosso coração, com o desaparecimento de tantos sítios que amamos nas nossas cidades.
Este texto não é um manifesto saudosista, claro que as cidades estão em constante renovação – ainda bem que entra dinheiro –, nem sequer uma relevante crítica social, é apenas um lamento estético. Não me estou só a queixar de perder alguns dos meus sítios preferidos, estou a queixar-me da completa substituição da imagem das cidades, sem critério, associada a uma nova vaga de maus nomes – alguns dos quais nem sequer foram escolhidos pelo algoritmo surreal da empresa na hora. O problema tem-se agravado de forma séria, e passear pela cidade de Lisboa –perdoem-me o centralismo da perspectiva – tornou-se num pesadelo psicadélico.
Letreiros feitos em materiais de má qualidade, má tipografia, cores feias, a escala errada, normalmente com a informação aos berros. Lojas de souvenirs e restaurantes destinados a turistas estão, obviamente, no topo da lista de negócios cada vez mais indistintos uns dos outros. Tudo para nos lembrarmos de que estamos longe dos tempos de glória dos letreiros feitos de néon ou dos cuidados logótipos.
Passar no icónico café Gelo causa realmente arrepios na espinha, e não é do frio. Berço de lendárias conspirações como o regicídio, um dos mais antigos cafés de Lisboa e aquele que Aquilino Ribeiro considerou ser a sede informal da Carbonária. Agora forrado com painéis de fotografias a ilustrar exemplares de comida como a «muito típica» Gamba Tigre na Grelha ou o Costeletão à Gelo. Na esplanada, os menus acompanham o papel de parede do café, com mais fotografias de comida (uma das maiores pragas das ementas nacionais). Alguém comprou o Café Gelo, tudo bem. Mas não era preciso forrar o estabelecimento com o papel do menu.
No supermercado ao lado de minha casa, uma clássica loja familiar dos anos 70, alguém achou por bem acabar com a linda imagem de sempre, um antigo letreiro iluminado e transformá-la numa nova imagem genérica de cartão impresso em baixa resolução, apenas em nome de uma renovação vazia, sem mexer em nada dentro do estabelecimento. Ou seja, continua tudo na mesma com uma nova imagem pior. Repito, não é saudosismo, tenho a certeza de que seria possível renovar a imagem, e esta ser boa.
O pior exemplo? Cartazes de eventos das câmaras municipais que deviam zelar pela cultura visual dos seus cidadãos e que deviam ter o cuidado de recorrer a um serviço de um designer.
A democratização da tecnologia criativa é, sem dúvida, algo positivo. Que digam os músicos que agora podem gravar, editar e até distribuir música a partir do quarto, bastando para isso possuir um computador suficientemente potente, o que, nos dias que correm, são quase todos.
Infelizmente, muitos comerciantes descobriram as mesmas vantagens para propósitos menos artísticos e decidiram eles próprios começar a desenhar os letreiros das suas lojas. Ou, então, contratar amigos para fazer o trabalho. E isto leva-nos a falar de toda uma classe profissional que é passada a ferro – os designers –, e nem sequer vou entrar pelo debate da inteligência artificial – ameaça que anda a pairar sobre todas indústrias criativas, mas isso fica para outra crónica. Tantas vezes incompreendidos, nunca foi tão óbvio quanto precisamos deles. São eles os nossos grandes aliados para lutar contra a poluição visual cada vez mais desesperante. O preço do metro quadrado a subir vertiginosamente, a cidade a ficar cada vez mais descaracterizada.
Recentemente surgiu uma petição promovida pela Galeria Cristina Guerra, à qual se associaram outros galeristas e artistas, exigindo a retirada de umas esculturas (de facto, medonhas) que a Câmara Municipal de Lisboa tinha colocado na Praça do Município e em Belém, defendendo a criação de um regulamento para a colocação de obras de arte no espaço público, segundo notícia do Público. Este movimento levanta a velha questão da ditadura do gosto, mas não deixa de tocar preocupações fundamentais. Essa preocupação também existe na arquitetura e nas aprovações a que estão sujeitas as construções no espaço público. Não defendo mais burocracia, apenas alguma reflexão.
É curioso como a tecnologia tornou o processo artístico e/ou criativo mais acessível e deu-lhe deu novas e incríveis ferramentas para expandir o que consegue fazer. No geral, tornou-o, acima de tudo, mais barato e preguiçoso. Em vez de assistirmos a uma generalização de novas e sofisticadas formas de criação, ficamos apenas com a falta de critério. Obviamente que há excepções. Claro que sempre houve letreiros horríveis, mas é impossível não constatar que esta tendência está cada vez mais homogénea.
Estamos a pagar um preço alto pelo mau gosto, a baixar os nossos padrões de exigência, e isso reflecte-se em tudo o resto. A cultura visual é importante, e nós estamos a degradar seriamente a nossa. Já não se aguenta as imagens estilizadas do eléctrico, da costa do castelo ou do cristo-rei, impressas nas paredes dos cafés.
A maior ironia de todas é que as renovações das cidades impulsionadas pelo turismo apagaram muitas das imagens que, originalmente, atraíram os turistas, e agora trocámos os pastéis de nata nos balcões das pastelarias por pastelarias forradas a pastel de nata.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
- Sobre Benjamim -
É um escritor de canções, músico e produtor que gosta de dançar. Em 2020, lançou o seu terceiro álbum, Vias de Extinção, um disco que começou na pista e acabou a ecoar no vazio que a pandemia criou. Como produtor, já trabalhou com nomes como Joana Espadinha, Cassete Pirata, Lena D’Água, B Fachada.