Sabem quando assistimos a três minutos de uma performance magnífica que nos faz recordar o bom que é sermos portugueses? O regalo de ouvirmos a nossa língua entoada, nas oscilações entre um ser e um estar fraternos, com movimentos que identificamos como estimadamente nossos? E, portanto, a expectativa de que cheguemos longe com as valorosas propriedades daquilo que produzimos? Foi tudo isto que senti ao ter testemunhado a vitória de Ai Coração da Mimicat na final do Festival da Canção 2023.
A música da Mimicat interpela-nos através de uma portugalidade com que estamos familiarizados, mas, ao mesmo tempo, chegamos a desconhecer. O apelo ao coração e, portanto, à invocação das emoções nas nossas práticas, a conjugação colorida entre um negro-místico e um vermelho-existência, a sonoridade tradicional de cariz igualmente folclórico e elegante são características da nossa marca identitária. Portugal é o que esta canção transmite: uma ambivalência capaz de sentir saudades das coisas nunca havidas e uma esperança quanto a um futuro alegre e vívido.
O que não é ambivalente, contudo, é a qualidade deste presente que a artista nos ofereceu. Ritmo, organização, colocações diferentes da voz, poder, presença. As reações estrangeiras que tenho visto a partir dos comentários deixados nos vídeos relativos à nossa música têm sido imensas e extremamente positivas: elogiam-nos por encararmos a Eurovisão para lá de mais um show de um pop já esgotado e por trazermos mais um produto cultural diferente; valorizam o pendor étnico da canção e a aptidão vocal da cantora; chamam a esta música de vencedora. Estes são fenómenos que não podemos ignorar, mas antes reconhecer e disseminar para que Portugal seja visto como um país com grande mérito na originalidade artística.
Para além disso, a Mimicat vê-se a si mesma como uma underdog, admitindo que vem “de um registo em que não há público.” Tal é confirmado e, mais importante, ultrapassado a partir do momento em que a artista, pouco conhecida, é a primeira de sempre a triunfar com uma música enviada em regime de livre submissão. Este feito desfaz o hábito elitista que tínhamos de eleger a nossa representação com base em autores convidados, livrando-nos de quaisquer amarras e permitindo-nos sonhar com muito sucesso em breve.
Ouçam e reoiçam a canção nas próximas semanas para que a letra fique no ouvido e alcance a consciência. Se poucos sabíamos quem era Mimicat é tempo de nos redimirmos dessa desfeita. Para que em maio, no coração musical da Europa, façamos novamente história. Ai coração, ai Portugal! Obrigado, Mimicat.