Este ano, 12 cidades de Portugal voltam a receber a quarta edição do RHI — Revolution, Hope, Imagination, iniciativa do Arte Institute, entre os dias 17 e 24 de junho. O evento reúne artistas, programadores culturais e o público em geral, promovendo palestras e workshops para debater o futuro da cultura nacional e promover a independência das artes.
Radicada em Nova Iorque, sede do instituto, Ana Ventura Miranda veio a Portugal para a organização dos encontros. Dois anos depois da sua última entrevista ao Gerador, a idealizadora do projeto analisa, numa conversa telefónica, os avanços que o setor apresentou e os passos que ficaram por dar no período da pandemia. A conclusão é clara: é sempre tempo de divulgar as artes nacionais e as propostas são muitas — se soubermos onde procurar.
Gerador (G.) — Depois de 11 anos de trabalho com o Arte Institute, que dizes ter fundado também para romper com essa ideia de que, em Portugal, não se produz arte de qualidade, vês uma maior valorização da nossa cultura?
Ana Ventura Miranda (A. V. N.) — Onze anos depois, o que nós vimos é que os artistas portugueses, os seus trabalhos e as áreas em que se movem, são conteúdos que interessam no mundo inteiro.
Mesmo com a pandemia, nunca deixámos parar a nossa atividade. A música conseguiu adaptar-se melhor a estas novas condições e houve muitos festivais internacionais. Mesmo que as pessoas não pudessem, fisicamente, dar os concertos porque não podiam viajar, continuámos a receber pedidos de outros países para filmar as apresentações. Passámos a gravar em teatros de cidades parceiras, algumas delas do RHI, e enviávamos esses conteúdos, que depois passariam não só online, mas também de forma híbrida. Por exemplo, no caso de Macau, podiam estar no sítio físico e ver os concertos projetados.
Houve muitas modalidades [de trabalho] nesses 11 anos, e a coisa que se viu é que realmente continua a haver interesse nos artistas portugueses, e não só nos mais conhecidos, porque procuramos promover artistas emergentes. A qualidade dos artistas destaca-se. Se os trabalhos dos artistas portugueses não despertassem interesse, não continuávamos a receber pedidos de outras organizações de todo o mundo.
G. — E a nível nacional? Achas que o interesse dos portugueses pela própria cultura também cresceu?
A. V. N. — Eu falo mais do internacional porque o nosso objetivo é sempre a internacionalização e dar a conhecer os nossos artistas lá fora, é o que temos mais dados. Mas temos percebido, durante o RHI, que há interesse, quando levamos programadores de regiões portuguesas que vão ver artistas de outras cidades, em conhecer mais do que se faz em Portugal. Também começo a ver uns festivais que são muito direcionados para os emergentes. Isso mostra uma vontade do próprio país dar a conhecer aqueles que ainda não são conhecidos e abrir portas.
G. — Na tua primeira entrevista ao Gerador, em 2020, comentaste que existia, em Portugal, uma dificuldade de olhar “o mundo do espetáculo” como uma área de negócio, como no resto do mundo. De lá para cá, vês alguma evolução nesse sentido?
A. V. N. — Já há alguma evolução, mas ainda a passos muito lentos. Com a pandemia, as pessoas tiveram mesmo de se refugiar em outros tipos de apoios e fundos mais estatais, portanto, não deu para trabalhar bem esta parte, principalmente a ligação com as empresas. O que está a acontecer neste momento, na minha opinião, é que, com tantas questões que a pandemia levantou, a ação social passou a ser parte integrante das agendas das empresas. Realmente há necessidade de haver um investimento nessa área, porque há famílias que estão a passar dificuldades muito grandes. A cultura tem de ter uma abordagem em que também começa a alinhar os seus programas à vertente da ação social, senão corremos o risco de ser cada vez mais difícil que as empresas nos apoiem.
Eu já chamava a atenção para a educação, uma área com a qual a cultura devia ter sempre uma declinação. Imaginemos uma peça de teatro. Mesmo que o projeto não fosse só para as escolas, que fosse para adultos, com a apresentação numa casa de espetáculos normal, devia haver sempre uma parte do projeto que as escolas pudessem aproveitar para ajudar a sustentar o espetáculo principal – porque, às vezes, é mais fácil vender um espetáculo educacional.
A nível de ir buscar financiamento às empresas, há que olhar para as outras áreas da sociedade, com as quais a arte tem essa característica e grande vantagem de se poder misturar, e ver que novas estratégias se podem criar.
G. — Também mencionaste que a pandemia poderia, por um lado, ter um efeito positivo e obrigar o setor cultural a ser menos dependente de apoios estatais. Achas que isso se concretizou?
A. V. N. — Infelizmente, acho que essa parte não se concretizou. Foram tantas coisas e a pandemia durou tanto tempo que mudou muito as empresas, como na questão que eu acabei de falar. Também é, muitas vezes, na área do marketing que se vão cortar os orçamentos, e a cultura está muito associada a isto.
[A pandemia] podia ter sido uma oportunidade. Na área da cultura, o Estado podia ter tido outro tipo de abordagens. Por exemplo, haver formações pagas para os artistas sobre coisas que passaram a ser muito importantes, como apresentar um concerto nas redes sociais ou fazer um vídeo low budget que pudesse promover o seu trabalho. Claro que já não estamos nessa fase, mas é preciso ver que áreas em que ainda há dificuldades por parte do setor artístico e passar a dar formações pagas, em vez de se estar a basear apenas em subsídios. Sendo pagas, essas formações capacitam os artistas e proporcionam a ajuda que eles precisam.
Houve também uma altura com um grande apoio aos meios de comunicação, de um investimento por parte do Estado, que podia ter sido utilizado, por exemplo, para mais publicidade institucional em canais públicos. Acho que são coisas que se podiam ter explorado. Mas não é tarde e estamos sempre a tempo de rever essas situações. Foi, realmente, um período que apanhou toda a gente desprevenida e que se tentou fazer tudo o que era possível na altura.
Por mais que as pessoas se queiram capacitar que estamos no fim disto, ainda não acabou. Nós continuamos a ter espetáculos em que já comprámos as viagens para pessoas e, um dia antes de embarcar, as pessoas não vão porque estão com covid. Ainda estamos longe de que isso deixe de ser uma normalidade. Agora, com dois anos, já temos de olhar para isso de outra maneira. Não é a mesma coisa de quando começou, pelo menos não deveria ser.
G. — Como as formações pagas, por exemplo, poderiam ser implementadas?
A. V. N. — É uma medida que devia ser posta em prática juntamente com o IEFP e o Ministério do Trabalho. Há alguns anos, antes do boom do turismo, também houve um grande investimento em formações de hotelaria. Isso não é nada novo, já foi feito, e depois vimos que houve um crescimento do setor turístico.
G. — Agora que já estamos com a crise sanitária mais controlada, como é possível aproveitar a relação da cultura com o turismo e construir uma retoma lucrativa para ambos?
A. V. N. — O crescimento do turismo é sempre uma boa notícia para a cultura, porque as pessoas não vêm só fazer praia, beber vinho e comer a Portugal. Temos de aprender a trabalhar mais a proximidade com o turismo, principalmente nas zonas fora de Lisboa e Porto, em que as pessoas acabam por ir visitar as cidades e encontram pouca oferta cultural durante a semana. Se calhar, se houver algum espetáculo ou algo que esteja integrado com os hotéis ou com os restaurantes, consegue-se que os artistas tenham outras fontes de rendimento e coisas mais certas durante o ano.
Uma das coisas que o RHI também fala muito é nesse diálogo. Há maneiras tão simples de realmente implementar isso e são medidas válidas principalmente nessas zonas onde as pessoas normalmente vão só fazer uma viagem de um dia para conhecer a cidade. Óbidos é um bom exemplo: eles têm tantos eventos e as pessoas vão àqueles festivais, mas depois vão embora. Se houver outros tipos de atividades, workshops, espetáculos, coisas que se possam ir ligando fora desses festivais que já chamam muita gente, consegue-se que as pessoas fiquem mais um dia ou dois nas cidades, e isso é importante também para o turismo local.
G. — Num dos projetos do Arte Institute, falas sobre como é importante fortalecer a “marca ‘Portugal’”. Acreditas que uma estratégia nacional de place branding seria benéfica para o setor cultural?
A. V. N. — Sim. Nós vamos ter um projeto, em Washington, a partir de setembro, em que conseguimos dois locais de destaque para colocar artistas portugueses da parte das artes plásticas, e no qual estamos a associar as regiões do país. Ou seja, através dos artistas, estamos a dar a conhecer os sítios em Portugal que as pessoas podem visitar. Quando falamos sobre o artista que fez aquela obra, aproveitamos para dizer que o artista nasceu em tal sítio, e essa cidade é na região de tal. A partir daí, temos um QR code que direciona para coisas que as pessoas podem ver sobre os locais. Isto é uma maneira de nós levarmos o país inteiro. Com o tema das artes plásticas e com duas exposições, acabamos por conseguir divulgar a marca Portugal.
Se houvesse uma estratégia mais concertada de diplomacia cultural e económica, principalmente lá fora, seria benéfico para o país, porque as pessoas investem mais no lugar que conhecem. Antes da pandemia, já estávamos com 23 milhões de turistas a entrar em Portugal. Já somos um destino turístico, mas não um destino turístico e cultural, e é aqui que eu acho que tem de se apostar. É preciso nós também darmos a conhecer o país que somos e a cultura tem esse poder de promover um local. Basta ver o caso do Brasil, que, como sabemos, tem vários problemas, mas a primeira coisa que vai à cabeça de qualquer pessoa é a alegria, o samba, são as coisas positivas. E o que é que fez com que o Brasil se tornasse tão conhecido a nível mundial? As telenovelas, a música, a literatura, o cinema. Com a arte, “vende-se” o país de uma forma natural, porque a pessoa começa a amar a cultura e depois é muito mais fácil gostar do lugar. Daí querer ligar-se, trazer uma empresa ou fazer um investimento imobiliário.
G. — Essa estratégia não corre o risco de ser limitante para o que vai ser ou não considerado parte da cultura de um local?
A. V. N. — Não, porque há tantos artistas e a qualidade do trabalho em Portugal é muito variada, apesar de sermos um país relativamente pequeno. Há tanta diversidade aqui que eu acho que há sempre alguma coisa que alguém vai gostar. Há pessoas que vêm mais atrás do fado, que é normalmente a bandeira que se leva para fora, e que eu também acho que é importantíssimo. Mas temos outras coisas, há muita oferta para o contemporâneo, e é isso que nós, com esses 11 anos, temos tentado levar. Obviamente que também temos programas que envolvem o fado, mas tentamos sempre levar estas coisas diferentes. E também não acho, em termos criativos, que haja alguma limitação, porque não estamos a dizer para os artistas mudarem o seu trabalho criativo, estamos a dizer para o ajustarem de maneira a que ele possa chegar a mais pessoas e a públicos diferentes.
G. — Nesse mesmo pronunciamento, mencionas a importância do trabalho conjunto entre artistas nacionais para a produção cultural do país. Como vês o trabalho de colaboração nas artes em Portugal?
A. V. N. — Dentro das próprias áreas, há umas que são mais abertas à colaboração do que outras. Depois há uma coisa que eu gosto muito que é a multidisciplinaridade. Nós, no RHI, até tivemos uma call for arts em que um dos únicos requisitos era ter mais do que uma área artística. Cada vez mais, com as novas tecnologias, a cabeça das pessoas já está formatada para conseguir perceber mais informação. Acho mesmo que é importante, e para o setor artístico também é crucial, que cada vez mais haja estas pontes e projetos multidisciplinares, porque saem coisas muito interessantes e inovadoras, e também porque é uma troca espetacular entre os artistas, em que todos ganham. Se calhar, uma pessoa só vem por uma banda musical, mas esse projeto tem uma componente de um escritor que a pessoa conhece pouco. Ajudam-se todos a conhecer uns aos outros. Há outra pessoa que veio pelo escritor, e não pelo grupo de música. As pessoas acabam por promover vários outros artistas quando promovem essa integração.
Eu acredito muito que quanto mais trabalharmos em conjunto e mais estratégias conjuntas houver, não só na área artística, mas enquanto país, envolvendo o turismo, a economia e a cultura, Portugal ganha muito. Quando um artista português ganha, ganham todos. É sempre bom para a marca Portugal que haja alguém que vença lá fora ou que apresente o seu trabalho e corra bem, ajuda a que as pessoas tenham curiosidade de conhecer mais sobre o país e os seus artistas.
G. — E é nesse incentivo aos artistas que foca o RHI?
A. V. N. — Exato. No RHI, fazemos questão de trazer sempre programadores internacionais, para ter a certeza de que andam pelo país inteiro a ver artistas emergentes. Isso é uma parte muito importante da iniciativa, exatamente porque temos conseguido que as pessoas, que, de outra maneira, muito dificilmente entrariam em determinadas programações, apresentem o seu espetáculo. Quando estamos a trazer um programador, acabamos por estar a acionar uma rede, porque, entre nós, para programar, falamos com algumas pessoas para pedir sugestões novas. Nunca é só para os espetáculos onde eles programam, é para a networking inteira do curador.
G. — O Instituto também já promoveu residências artísticas em Portugal. Que lições têm aprenderam a partir do intercâmbio com artistas de fora?
A. V. N. — Uma coisa superimportante para a marca Portugal e para a nossa promoção é serem os artistas estrangeiros a virem cá desenvolver o seu trabalho e depois apresentá-lo. Quando eles apresentam o que foi desenvolvido aqui, o nome de Portugal vai sempre. É muito mais fácil ser o trabalho dos artistas a falar em Portugal do que nós próprios a dizer que Portugal é espetacular.
É importantíssimo também essa troca de conhecimento entre as criações dos nossos artistas nacionais e estrangeiros. Muitas vezes, desses encontros e networking, nascem novos projetos e os nossos artistas acabam por ir lá fora apresentar.
G. — Vocês também têm, como já deixaste claro, um foco especial no trabalho de artistas emergentes. Qual é, na tua opinião, a maior barreira que os novos artistas em Portugal enfrentam e no que precisam de mais suporte?
A. V. N. — Uma coisa que eu gosto de ver nos artistas emergentes é que já tentam fazer de outra maneira. Já percebem que muito dificilmente vão ter um agente que pode fazer tudo por eles e, portanto, começam a procurar outras maneiras de abordar a profissão, o que eu acho muito importante.
Os desafios ainda são muitos, dependem da área, e existem sempre, o importante é nós focarmos em como os ultrapassar. Começar é o mais difícil, mas também vejo que há mais concursos promovidos pelas autarquias, por exemplo. Notamos pelas 12 [parceiras] do RHI, que estão sempre dispostas a ajudar numa viagem ou na publicação de um catálogo, um livro. Sabem quem são os artistas locais e é o próprio setor cultural das Câmaras que nos indicam os artistas para os nossos showcases.
G. — A parceria com universidades é uma alternativa que também já manifestaste acreditar ser interessante. Quais são as vantagens de divulgar a cultura no meio académico?
A. V. N. — Os novos artistas estão agora a acabar de se formar. Essas gerações têm de ser, antes de entrarem no mercado de trabalho, sensibilizadas de que o meio cultural é difícil, mas não impossível. Quanto mais informações tiverem, novas ferramentas, novas ideias, mais fácil será para eles, que estão mais permeáveis ao novo, de implementarem ou tentarem seguir novos modelos de negócio, ao contrário de quem já está nisso há 20 ou 30 anos e só vê uma maneira de fazer as coisas.
Nós, muitas vezes, só estamos a dar ideias baseadas na nossa prática, a partilhar o nosso know-how. É óbvio que está sempre tudo a mudar e, quanto mais a tecnologia avançar, mais nós temos de andar a correr atrás disto tudo. Essas pessoas hão de levar essas ideias para sítios melhores que nós ainda nem sequer pensamos. É importante trabalhar com a nova massa de artistas e agentes culturais para evitar que entrem num mercado viciado numa só perspetiva.
G. — Até a data da tua última conversa connosco, não tinhas sido procurada por entidades portuguesas para aconselhar na construção de novas estratégias culturais. Já tiveste a chance de orientar algo nesse sentido?
A. V. N. — Já há dois anos que faço parte do Conselho do presidente Marcelo, o Grupo de Reflexão sobre o Futuro de Portugal. Tenho tido a oportunidade de levantar algumas opiniões e na próxima semana tenho reunião marcada com o novo ministro. Vamos apresentar o nosso trabalho e também explicar algumas destas ideias, principalmente a que falei há pouco, de formação paga para os artistas.
G. — Por fim, o que esperar da próxima edição do RHI? Que novidades propõe o programa deste ano?
A. V. N. — Queremos continuar a promover uma maior ligação da parte cultural com as empresas e com o turismo e, principalmente, dar ferramentas aos artistas para que eles possam abordar a profissão com novos recursos. As últimas edições foram muito focadas no ambiente da pandemia e agora estamos a sair um bocadinho deste tema. Vamos debater novas ideias e por onde seguir no setor cultural. Uma das questões que nós queremos abordar é esse ponto da ação social que falei há pouco.
Este ano também há um enfoque maior no Brasil, na África e nos países de língua oficial portuguesa. Há muitos espetáculos só em português e, às vezes, é difícil internacionalizar esses artistas para os Estados Unidos ou para países de língua oficial inglesa, então queremos tentar abrir mais as portas também para este mundo CPLP.