*Esta é uma crónica do Benjamim, inicialmente publicada na Revista Gerador 39.
Não sei se ainda se lembram do «novo coronavírus», mas recentemente o mundo da baixa cultura itinerante – em que me insiro – sofreu, juntamente com os colegas feirantes, o revés de passar praticamente dois anos afastado dos palcos. Muitos trabalhadores de várias áreas da chamada estrada, desde músicos, técnicos de som e de luz, os que montam os sistemas de som, palcos e infra-estruturas essenciais para os concertos, roadies, agentes, etc., tiveram de reequacionar, readaptar e reinventar as suas vidas. Muitos deles desistiram da carreira, o que levou à actual situação de falta de pessoal para trabalhar nos concertos.
Alguns de nós receberam um subsídio da Segurança Social devido à substancial perda de rendimentos que a pandemia trouxe. Depois, também houve a iniciativa Garantir Cultura, a qual distribuiu, sem critério, dinheiro para se fazerem alguns projectos muito meritórios, alguns dos quais estive envolvido por convite e dos quais também beneficiei, apesar de nunca ter concorrido ao apoio. Foi preciso distribuir dinheiro pelo sector para o manter vivo, e isso alimentou muitas famílias e manteve alguns quadros técnicos e artísticos no activo.
Tal como se consegue observar através do caos que se tornou o sector da aviação com o despedimento desenfreado de pessoas qualificadas durante o pânico da pandemia, formar músicos, actores, criadores, bailarinos ou técnicos, tal como em qualquer outro ramo de actividade especializada, não é algo que se faça da noite para o dia – demora anos de dedicação e amor à camisola.
Manter viva uma orquestra que se dedica a preservar uma forma de música ancestral, ou uma companhia de bailado, não é menos importante do que manter um jardim público, um parque, uma praça de uma cidade ou um edifício histórico – garantir a existência da cultura viva é simultaneamente garantir que esta sobrevive e manter também vivas e alimentadas as pessoas que se dedicam a serem guardiões desse saber que passa de geração em geração.
No caso da música pop, o parente pobre do Ministério da Cultura no que toca a subsídios é provavelmente o maior contribuinte da área da cultura para o orçamento de Estado por direito próprio, através da sua comercialização enquanto produto cultural, e através de todas as actividades económicas que se desenvolvem à sua volta como concertos, festivais cheios de fãs alcoolizados e esfomeados que precisam de um sítio para dormir quando se deslocam pelo país, para não falar de todos os impostos associados a tais acontecimentos e o emprego gerado.
É verdade que são as câmaras que acabam por se chegar à frente com o dinheiro para a programação cultural e acabam por ser elas a assumir o preço de manter o país e as cidades vivas, de fazer chegar cultura às suas populações e também atrair pessoas para zonas menos mediáticas. Como se viu este Verão através do número de festas, feiras, concertos e eventos a abarrotar espalhados pelo país, a Cultura mexe. Para quem acha que o turismo é importante para a nossa economia, fica a nota para se reflectir um pouco sobre o facto de vermos cidades literalmente invadidas por multidões em eventos com cartazes compostos exclusivamente ou maioritariamente por artistas nacionais, para além dos tradicionais festivais de Verão.
Em relação ao título do texto, o que sucede é que o anterior Governo, através da tutela da anterior ministra, aprovou um Estatuto que, na prática, dizem as más-línguas, quer reaver o dinheiro dos subsídios que o Estado concedeu durante a pandemia e propõe agora uma nova contribuição obrigatória de 5,1 % sobre 70 % de cada cachê de cada concerto, pago pela «entidade beneficiária», ou seja, cada agência, independentemente de haver ou não algum músico a aderir ao novo Estatuto. A questão é que o dinheiro que a «entidade beneficiária» vai entregar ao Estado é, efectivamente, o cachê de cada músico. Uma agência não é a entidade empregadora, ela «simplesmente» vende os concertos, organiza logística e tira uma comissão – não vão inventar dinheiro extra para pagar esta despesa. Na prática, mesmo para quem não adere, isto traduz-se num efectivo aumento da carga fiscal. Já para não falar das burocracias impostas por este regime que obriga, como a obrigação do preenchimento de um formulário individual por cada trabalhador, por cada concerto. Uma equipa de estrada com dez pessoas e quatro concertos por mês terá de produzir o preenchimento de 40 formulários. Multiplicando pelo número de bandas que andam na estrada todas as semanas, quem é que vai pagar a este novo funcionário que terá de estar exclusivamente dedicado a preencher burocracia do Estado? Já para o trabalhador que deseje aderir voluntariamente ao estatuto, é como se um desempregado de outro sector de actividade tivesse de devolver o subsídio de desemprego ao fim de seis meses, por meio de uma nova taxa que irá dar à Segurança Social por cada recibo que passe. É uma espécie de pacote premium de uma rede social para termos música sem anúncios, que aumenta ainda mais as desigualdades dos trabalhadores da Cultura, um subsistema alimentado pelos próprios precários da Cultura num verdadeiro gueto de acção social. Quais as vantagens em aderir ao Estatuto de Profissional da Cultura? «Os profissionais da área da cultura passam a ter direito a protecção em caso de suspensão involuntária da actividade profissional (caso o trabalhador fique sem actividade durante um mês), em caso de doença, parentalidade, invalidez, velhice e morte.»
Perdemos direitos em relação aos outros sectores de actividade quando nos dizem que para conseguirmos protecção social igual temos de fazer uma espécie de cooperativa em que praticamos uma caridade sob supervisão do Ministério da Cultura e da cantina da Segurança Social. Para quando um tratamento justo para todos os trabalhadores independentes? Nós também contribuímos para que exista um fundo de desemprego e pagamos os subsídios dados à hotelaria, restauração e bancos, tal como qualquer outro cidadão.
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
- Sobre Benjamim -
É um escritor de canções, músico e produtor que gosta de dançar, apesar de assumir não ter muito jeito. Em 2020, lançou Vias de Extinção, um disco que começou na pista e acabou a ecoar no vazio que a pandemia criou, terceiro álbum depois de 1986 — disco bilingue a meias com Barnaby Keen lançado em 2018, — e Auto Rádio, em 2015. Como produtor, já trabalhou com nomes como Joana Espadinha, Cassete Pirata, Lena’Água, B Fachada, entre outros.