Num fim de tarde que não parecia de inverno, a praça do Intendente enchia-se de gente em esplanadas ou simplesmente de passagem. Na Casa Independente, as portas já estavam abertas e convidavam a entrar, através de um néon, forte o suficiente para dar a entender que para ali todos estavam convocados. Tínhamos entrevista marcada com Batida, que durante o mês de fevereiro ocupa esta casa como se fosse sua, numa residência artística que, como acabámos por perceber mais tarde, vive do encontro com os outros.
Da entrada até ao último andar, seguimos a luz de néon por entre peças que assumimos fazerem parte da exposição de Batida na residência. “Neon-Colonialismo” interpela-nos e, sem querer, esbarramos em Pedro Coquenão, que se perde na conversa com dois visitantes intrigados com a instalação do último andar. “Vou só levar uma t-shirt ao Karlon e já conversamos na esplanada, pode ser?”, pergunta.
Pedro Coquenão é Batida, já foi Mpula e Fazuma. É por aí que começamos a conversa: pela importância de ter um nome diferente para vários projetos, e a pertinência de manter o mesmo nome para atuar em diversas frentes. “Os nomes têm uma necessidade filosófica e poética, mas às vezes também são uma questão de identidade muito forte. E há alguns que funcionam para nós e não funcionam para mais ninguém. Às vezes, servem para explorares melhor sem estares limitado pela coerência ou por corresponder a expectativas e, ao fim de um tempo, podem esgotar-se ou entrar em contradição. É aí que eu salto para outro.”.
Batida é o nome que “tem durado mais tempo” e o que imediatamente fica no ouvido de quem o ouve. A multiplicidade de significados que lhe podem ser atribuídos confere-lhe um caráter que agrada a Pedro Coquenão: “Batida é tudo o que fiz até agora; é quase uma defesa da minha timidez e de alguma fobia social, de usar sempre uma representação minha e não necessariamente a minha pessoa. Um dia, se calhar, vou só usar Pedro Coquenão, mas para já Batida é o que faz mais sentido para mim.”
“O que eu quero passar é mais importante do que eu próprio. É alimentado por mim, mas não é sobre mim” – aí percebemos, às claras, o que é que significa, afinal, ser Batida.
O ativismo começa por contagiar quem está ao nosso lado
Se andássemos pelo Alojamento Artístico Local sem conhecermos o autor das suas peças, rapidamente acabávamos por descobrir. Junto a cada peça, encontramos um pequeno contexto e o nome “Batida”. O motivo, que o artista não esconde, é “se alguém não conhecer, ter a oportunidade de encontrar mais coisas quando pesquisar pelo nome”. Para si, dar contexto é urgente, para que nenhuma ideia ou possível discussão fique perdida pelo caminho. “Se eu sou só o lançamento de conversa e perguntas, tipo à artista modernaço? Não. Nos dias que correm, não podes só lançar questões ambíguas”, explica.
Juntar pessoas para partilhar ideias é um dos princípios que logo reconhecemos na obra de Batida e que, dois dedos de conversa depois, percebemos que são também a sua base na vida. “Ser eu também é aceitar que de mim fazem parte outras pessoas”, diz entre sorrisos. De si fazem parte tanto os que lhe são próximos como os que, por algum motivo, estão no seu caminho. Luaty Beirão, ou Ikonoklasta, é uma dessas pessoas, e a cumplicidade entre os dois é partilhada com todos na Casa Independente, através do musical IKOQWE, que integra Alojamento Artístico Local.
Sem que tivéssemos de perguntar como ou porquê, Batida explicou como se conheceram: “O Luaty ouviu o meu programa de rádio, enviou-me uma mensagem, e eu acabei por responder depois de ter ouvido um CD em que a minha faixa favorita era a que ele entrava. Conhecemo-nos por sermos pessoas que não tinham problemas em conhecer-se, adorámo-nos e tornámo-nos irmãos, já em adultos. A primeira vez que nos encontrámos foi simplesmente para conversar sobre música, cultura, a vida; o que não é algo muito comum de acontecer hoje em dia. Ficámos próximos porque temos muita coisa em comum ao nível da ética, do caráter, da moral.”
Batida e Luaty Beirão começaram, inevitavelmente, a criar juntos
A relação que tem com Ikonoklasta ou com Karlon, MC dos Nigga Poison com quem estava antes da entrevista com o Gerador, baseia-se “na tolerância, em falar de igual para igual”, “sem máscaras”. “Acho que todos nós nos sentimos muito solitários às vezes, e se calhar mais ainda quando nos esforçamos para sermos parecidos com os outros. Se fores um pato no meio de um grupo de cisnes, é normal que queiras ser um cisne, mas vais acabar por perceber que esse não é o caminho. E se não semeares muito aquilo que não és, provavelmente vais encontrar pessoas que estão no mesmo comprimento de onda que tu – e que podem ser patos ou outra coisa qualquer.”
Antes de levar o questionamento da tolerância para o seu trabalho e contagiar os mais distantes com as suas ideias, Batida começa por partilhar o que tem com os que o rodeiam. “Quando falamos em ativismo, o mais importante é contagiarmos as pessoas com o que temos para dar”, começa por dizer, “temos de começar por ser reais e verdadeiros com que está ao pé de nós, para também podermos pôr à prova o que pensamos, as teorias que vemos como nossas”.
Olhar por dentro para, depois, questionar
Há uma relação profunda entre a música e as vivências de Batida, entre os assuntos que traz ao de cima e a realidade dos que lhe são próximos. Pedro nasceu no Huambo, em Angola, e cresceu em Lisboa num período onde o pós-colonialismo só era assunto para os que se viam obrigados a regressar (ou a mudar-se) para Portugal. Hoje sabe ao certo que debater o colonialismo é uma das suas lutas, mas o desconforto com a memória colonial não é de agora.
“Lembro-me de crescer num contexto em que se falava muito de colonos, e até se chamar isso aos meus familiares. Esta conversa faz parte do meu crescimento, e todos os adultos só falavam disto, não havia outro assunto: o ultramar, as ex-colónias, Moçambique… mas depois misturou-se tudo quando cá chegámos. As pessoas foram colocadas todas a monte e, de repente, tinhas pessoas que vinham de sítios diferentes a serem colocadas postas num cenário comum, que não é. Moçambique não é igual a Angola, tal como não é igual à Guiné. E desde pequeno que me apercebi de que algo não estava bem, quando via pessoas a serem estigmatizadas pela cor de pele, pelo sotaque ou a serem chamadas de ‘selvagens’ porque vinham de África”, recorda Batida.
Crescer neste limbo moldou os traços da sua personalidade e, confuso com o “ser daqui ou não ser”, tornou essa visão que está tanto dentro como forma a base do seu trabalho criativo. “Todos passamos pela fase de tentarmos encaixar. Houve uma altura em que percebi que em vez de samplar o James Brown pela milésima vez podia samplar uma percussão angolana, porque foi isso que sempre ouvi.”
No trabalho de Batida, a história reenquadra-se
“Há sons que me tocam e que me dão arrepios. Normalmente são dados importantes na vida: se há alguma coisa que te arrepia ou te deixa com lágrimas nos olhos, deves tê-la em conta”, explica com o sorriso genuíno que ainda não deixou cair. Através da música, da rádio ou das artes plásticas, Batida eleva o que o arrepia, sem se esquecer em algum momento de dar contexto.
Filho dos heróis da independência angolana e das múltiplas vozes da revolução de abril, vê o pós-colonialismo como um fim de relação “em que é importante conversar” e “pedir as desculpas que têm de ser pedidas”. Para simplificar, cria um pequeno diálogo ilustrativo, enquanto, na esplanada da Casa Independente, a noite já cai:
– Realmente foi um bocado estranho, vamos ficar por aqui.
– Já passou, não se fala mais nisso.
– Mas tu agrediste-me.
– São tempos passados, deixa estar.
Ignorar “tempos passados” não é solução. Não se passa por cima da história e não se apaga a memória. Batida fala dessa memória impossível de apagar porque “ainda há conversas a ter” e usa a arte como ponto de partida para essas reflexões.
“Em 2020, temos deputados na assembleia que diariamente incorrem em crimes de descriminação, e não está em causa a liberdade de expressão. E tudo o que tem que ver com racismo normalmente não dá em condenação. Nos últimos dias, deu-se um crescimento no debate sobre o tema, mas se repararmos o debate público, nos órgãos de comunicação social, é feito sempre pelas mesmas pessoas – maioritariamente homens brancos, é um facto. Vejo poucos africanos a serem representados e poucos artistas africanos a terem a presença intelectual e a legitimidade formal que outros têm.”
A cultura como desbloqueador de preconceitos
Ao contrário da presença nos órgãos de comunicação social, a cultura africana tem tido um crescimento nos lugares que ocupa em Portugal – ainda que, por vezes, não seja suficiente. “Há claramente coisas a acontecer e pessoas que elaboraram por cima desta Nova Lisboa, com uma ideia de música de subúrbio. O perigo destas coisas é depois ficarem ensimesmadas e criarem uma nova formulação de identidade que acabe por as distanciar”, explica.
Na banda sonora da Casa Independente, ouve-se a Rádio Normal a um volume suficientemente alto para a sentirmos, mas que não se impõe nas conversas de esplanada. Das novas editoras focadas centradas nos subúrbios rapidamente saltamos para a presença do crioulo na rádio portuguesa e da frequência com que se dança kuduro em qualquer clube. “As pessoas gostam de kuduro, mas é o kuduro exótico, que se manda para o chão. Se tiver uma adaptação mais liricista e interessante, como faz o Bruno M ou o Rey Panda, em Luanda, e que muita gente desconhece, o cenário muda. Há uma reformulação da música africana em Portugal, sim, mas é a música que dá para abanar a anca, para ‘gingar’; a música que vai ‘bater bué’. E para alguém ser angolano não tem que de “‘gingar” ’ nem dizer ‘aiuê’.”
Para Batida, a aceitação “desta cultura” ainda não se fez na totalidade, e é preciso pensar “até que ponto o crioulo passar na rádio é um assumir das coisas de coração aberto”. Ainda assim, acredita que essa será “a consequência natural, porque as pessoas começam a libertar-se”. Além disso, “há um trabalho de contexto a ser feito na rádio”.
“Como é que o Bonga demorou tanto tempo a ser posto no lugar em que está? E, mesmo assim, acaba por ser um lugar do engraçado e do folclórico, quando o senhor é muito mais do que isso”, questiona Batida.
Do seu lado esquerdo, a parede que antes era branca está pintada com as palavras “Azul Marega”. Batida cruza o olhar com elas e explica: “hoje, achei que devia criar algum desconforto aqui". Dias antes, o jogador de futebol Moussa Marega tinha abandonado o jogo entre o Futebol Clube do Porto, equipa que integra, e o Vitória de Guimarães, após os adeptos da equipa adversária lhe terem dirigido comentários racistas.
“Eu falo sobre estes assuntos porque não aguento. Quando tens amigos que passam por isso, ou simplesmente és humano e não suportas ver algumas coisas a acontecer; tens de fazer alguma coisa.”
Bonga é uma das grandes referências da música africana e atuou recentemente no Micro Clima
Em cada parte deste Alojamento Local, que se mantém na Casa Independente até ao fim do mês de fevereiro, estão fragmentos de tudo o que Batida já foi e continua a ser – sempre em construção. Desta experiência em que pôde pensar com tempo e aguardar que visitantes mais ou menos óbvios se encontrassem consigo, leva o “privilégio de poder fazer o que quer sem a pressão de ter de dar tudo a toda a hora”.
Rodeado por uma equipa composta “maioritariamente por mulheres”, na qual sente “uma energia de transformação”, construiu um projeto que tal como tudo no seu trabalho está em constante mutação. Com “Neon-Colonialismo”, troca as voltas aos conceitos de alta e baixa cultura, com IKOQWE celebra a palavra, com a Rádio Normal obriga-nos a sentir os momentos; com todas, questiona o mundo em que vivemos.
Quando deixámos a Casa Independente, Batida ficou por lá. Um “até já” chegou; sabemos que quem cria porque tem mesmo de ser, havemos de encontrar novamente por aí.
Hoje, dia 28 de fevereiro, e amanhã, 29, são as duas últimas oportunidades para viver o Alojamento Artístico Local na Casa Independente. Às 23h00, há IKOQWE e, quem sabe, um encontro informal com o artista que conversa com quem quer que seja de igual para igual.