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Caderno de encargos: Muito

Na Revista Gerador 40, na crónica Cadernos de encargos, que agora partilhamos contigo, Carlos Manuel Pereira fala-nos acerca de aprender sobre o amor.

Texto de Redação

©portuguesegravity

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Há dias, a filha que não tenho, Maria Celeste, perguntou-me o que era o amor. Para contextualizar, estava no escritório a trabalhar numa peça de teatro sobre o amor, para a qual ainda não tenho nome e enquanto trabalhava fazia-me companhia a minha filha que não tenho, a Maria, e o Benji, o cão que me acompanha já há muitos anos. Antes de a Maria nascer era o Benji que me mostrava como funcionava isto do amor e da fidelidade. Sou uma cabeça dura e temo não ter aprendido em condições tudo o que ele me ensinou, portanto, daqui em diante seria a Maria, a filha que não tenho, a minha nova professora. Coitada. Tão nova e com um peso tão grande nos ombros.

A Maria tem seis anos. Não falo da sua beleza porque interessa pouco. Prefiro falar da forma atenta como observa tudo à sua volta. Deve ter saído ao pai e, ao contrário de mim, espero que ela consiga reter a informação que absorve e não tenha de estar sempre a apontar tudo. A Maria é ágil, curiosa e o mais inconformado ser que conheço. Agora que vocês já sabem quem é a Maria, a filha que não tenho, voltemos à sua pergunta: «Pai, o que é o amor?» Quando a ouvi não tive reação e limitei-me a olhar para ela, como se estivéssemos a jogar ao jogo do sério. Corriam em mim vários pensamentos: a) Porque é que com esta idade ela está a pensar sobre isto do amor? b) Então ser pai é isto, ser apanhado na curva? c) Porquê eu, porque é que não foste perguntar à tua mãe?

A Maria bate-me na perna, tentando desligar-me do meu estado inerte e, novamente: «Pai, o que é o amor?» «Não sei», respondi eu acreditando que fôssemos ficar por ali. «Então quem é que sabe, pai?» – Raio da miúda que nunca desiste – «Também não sei», respondi tranquilamente. As crianças sentem a nossa impaciência e, se não tivermos cuidado, vamos fazer delas adultos traumatizados, e eu não quero isso para a minha Maria, mas ela não me facilita a vida. «Fogo, pai! Também nunca sabes nada!», disse-me ela com um ar triste. Percebi naquele momento que aquela criança depositava demasiadas esperanças em mim. A Maria tem o dom de me deixar muitas vezes sem respostas, tal como tem o dom de me fazer perguntas para as quais eu não tenho resposta. Nos seus olhos, vi tristeza, nos meus, ela terá visto desilusão porque é assim que me sinto por ter falhado com ela. Mal ela sabe que conto que seja ela a dar-me respostas sobre as perguntas que tenho sobre o amor e sobre amar. No entanto, a Maria não desistiu. Aliás, dificilmente desiste à primeira. «Pai, amas-me?», perguntou-me. «Claro que sim, filha!», respondi. «Como é que tu, que nunca sabes nada, sabes que me amas?» Fui apanhado. Raio da criança. Ela tem razão. Ela precisa de ver em mim assertividade em relação ao mundo, mas como posso eu ter esta assertividade e certezas se, ao longo da vida, sempre tive mais dúvidas do que certezas? E em relação à pergunta da Maria se a amava, lembrei-me do dia em que, já na idade adulta, perguntei à minha mãe se ela gostava de mim, ela desatou a chorar e diz-me até os dias de hoje que eu lhe ter perguntado aquilo foi a maior desfeita que ela teve na vida e que irá morrer com esse desgosto no peito. Porque apesar de nunca ter verbalizado, tudo aquilo que a minha mãe fez tinha um único objetivo: dar-me amor, e cabia-me saber interpretar isso. Fui aprendendo com o tempo a ler os sinais, portanto tinha sido uma pergunta inocente a minha, já a da Maria foi um desafio. Ela adora expor as minhas falhas, deixar-me vulnerável. E de cada vez que eu não tenho respostas para lhe dar fico pequeno por dentro, ao contrário dela, que se envaidece por derrubar um ser humano com o dobro do seu tamanho. Tenho pena de não ter tido a ousadia de perguntar à minha mãe se ela me amava mais cedo, talvez não pude fazê-lo por ela raramente estar em casa, mas sim a trabalhar várias horas seguidas para que hoje possa estar fechado no escritório a escrever precisamente sobre esse amor que nunca me foi dito, apenas mostrado e nunca tive os olhos certos para vê-lo chegar.

Quando a Maria me sente a perder-me nos meus pensamentos, puxa-me para o mundo dela com perguntas que me desmontam por dentro. «Pai!» – «Sim, filha.» – «Amas a mãe?» – «Amo. Mas não sempre.» Li algures que temos de dizer sempre a verdade às crianças. «Porque é que não amas a mãe todos os dias?» – «Porque é assim no mundo dos adultos, filha.» «E a mim, pai, amas todos os dias?» – «Sim, filha.» «E quando for adulta vais deixar de me amar todos os dias?» – «Não, filha.» – «Porquê» – «Porque é isso que os pais fazem, amam os filhos sempre. E muito.» – «Então, ouve pai, a avó amava-te. Porque é isso que os pais fazem. Amam os filhos sempre. E muito.»

E foi assim que a Maria, a filha que não tenho, ensinou-me mais qualquer coisa sobre o amor. E decidi naquele momento que a peça que estava a escrever ia se chamar: Muito. Obrigado, filha.

-Sobre o Carlos Manuel Pereira-

É um estafeta do humor. Entrega piadas em forma de texto, vídeo e áudio. Tem uma rubrica de humor na RDP África - "Na corda bamba" -, faz coisas para o 5 para a meia-noite, já atuou no palco comédia do NOS ALIVE enquanto o AGIR fazia soundcheck no palco principal. E agora escreve aqui.
Tem 29 anos e assina com três nomes para fingir ser, entre os amigos, um pequeno burguês. É o autor da crónica "Caderno de encargos".

Texto de Carlos Manuel Pereira
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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