*Esta é uma crónica do Carlos Manuel Pereira, inicialmente publicada na Revista Gerador 37.
Aprendi tarde, mas em boa hora que nem tudo na vida tem de fazer sentido, e à conta disso, enquanto pensava no tema para este texto, veio até mim uma certeza, independentemente do tema iria iniciá-lo a falar da manga. Primeiro, porque posso. Depois, porque é uma fruta que aprecio muito, mas não o suficiente para dedicar todo um texto.
Cá vamos nós: há dias, enquanto comia uma manga, não consegui deixar de reparar em como aquilo parece uma espécie de cabelo com sabor. Da próxima vez que comerem uma tenham em atenção como aquilo se desfia e enfia nos vossos dentes. Sinto-me sempre a comer uma espécie de cabelo que foi embalado por quem percebe do assunto. E se existem preservativos com sabor, e há quem os leve à boca, não vejo porque não se começa a investir realmente em cabelos com sabor, deem-lhe o nome de «carabelo» (um infeliz trocadilho com caramelo), ou sei lá, «bêlo doce».
A verdade é que enquanto comia o tal «bêlo doce», dei por mim a pensar em como não há vantagem nenhuma em falecer. Nenhuma. Quem morre tem de viver para sempre com isso, não sei como são capazes. E como pode alguém escolher passar o resto da vida, perdão, da morte, deitado numa caixa (não sei de quem foi a ideia, mas chamar «caixão» a algo cujo volume não acompanha, é de desconfiar), de olhos fechados e braços cruzados ao peito, como se estivesse a pousar para um póster da Remax, ou como se estivesse a fazer uma birra? Morrer é chato, acreditem em mim que não morri – e jamais o farei. Cesariny no filme Autografia, quando questionado sobre para o que é que serve isto da vida, responde – «serve para foder que é muito bom, serve para amar, e serve para morrer. Pronto.» Não sei se concordo. Concordo com os dois primeiros argumentos, o último já não. Morrer é uma maçada. É uma lotaria. Tenho medo de morrer e que me vistam uma top de tamanho S apenas para fazer pouco com a desculpa de que por ser humorista talvez fosse gostar da graça, ou que me pintem as unhas, e me façam tranças, convencidos de que para o sítio onde se vai depois de morrer também existem progressistas. Temo que não exista, por isso é que é importante lutar por um mundo melhor enquanto somos vivos. Cheira-me que só exista ecoponto neste nosso planeta. Morrer é chato até por isto.
Costuma-se dizer que quando se morre acaba tudo. Falso. Começa tudo. O sofrimento de quem fica e a claustrofobia de quem vai. Talvez seja por isso que há quem viva sem nunca pensar na morte e há quem morra sem nunca ter pensado na vida.
Já deram conta de como o funeral é a única cerimónia em que nos convidam descaradamente para chorar. Acho isso desagradável e de mau gosto. Eu, por exemplo, nunca tive facilidade em ter uma lágrima no canto do olho, como cantou o Bonga, e à conta disso, a primeira vez que marquei presença num funeral, fiz-me acompanhar por três cebolas, uma tábua e uma faca. Pareceu-me boa ideia, mas veio a confirmar-se uma péssima ideia, isto porque um dos familiares do falecido levou a mal. De longe parecia que eu tinha ido fazer um refogado para o funeral da sua falecida mulher. Houve quem me dissesse, de dedo em riste, que se tinha o tacho ao lume não devia abandoná-lo e ir picar cebolas para um funeral. Os humanos e as suas estranhas prioridades. O que importa é que chorei e adiantei o almoço. Mas se querem que vos diga, nunca percebi porque é que no casamento se atira arroz, mas é de mau tom picar cebolas num velório. E já agora, porque é que num se atira arroz e flores, noutro apenas flores, como se os mortos não precisassem de comer. Mais uma razão para escolhermos continuar vivos.
Quando nos morre alguém, recebemos uma mensagem ou um telefonema, em que nos dizem: «Os meus sentimentos.» Nunca percebi porque é que não especificam. Mas estamos perante que tipo de sentimento? Tristeza, presumo. Mas digam as coisas. As palavras existem para serem usadas. Não chega dizerem «meus sentimentos». Agora desemerda-te a adivinhar. Nós já estamos a sofrer não precisamos de mais. A ideia que fica é que desistiram de nós. Parece sempre que ficam a meio caminho, parece que se esquecem no momento de avançar. Gustavo, os meus sentimentos… Ah, porra, esqueci-me. Já volto!» Morrer é chato também por isto. E no dia em que percebi que a morte significa o desaparecimento físico permanente de alguém, tudo se tornou mais chato para mim. Isto porque sempre que via alguém partir, o que me passava pela cabeça é que essa pessoa tinha pedido um time-out, como num jogo de futsal, e ia descansar, para, mais tarde, voltar.
Sim, durante grande parte da infância acreditei que o processo da morte se desenrolava desta forma. As pessoas quando se sentiam cansadas, ou simplesmente fartas do que as rodeava, faziam um sinal e era-lhes concedido um período de descanso, daí nunca ter estranhado frases como aquelas que lemos nas lápides: «Descanse em paz.» E findo esse período de descanso, era-lhes dada a oportunidade de regressar, mas não para o mesmo lugar, passavam a desempenhar novas tarefas. Tal como um funcionário que é destacado para trabalhar longe de casa. Quem outrora foi tia, doravante passava a ser irmã de um outro alguém, e quem outrora foi pai, surge no papel de uma avó ou avô de um outro alguém. Sempre achei que em matéria de reciclagem a natureza estava a anos-luz de nós humanos. A mesma natureza que sabe embalar como ninguém o cabelo com sabor, de seu nome manga. Morrer é chato, se puderem, não morram, ou morram, a vida é vossa. E, pelos vistos, a morte também.
-Sobre o Carlos Manuel Pereira-
É um estafeta do humor. Entrega piadas em forma de texto, vídeo e áudio. Tem uma rubrica de humor na RDP África - "Na corda bamba" -, faz coisas para o 5 para a meia-noite, já atuou no palco comédia do NOS ALIVE enquanto o AGIR fazia soundcheck no palco principal. E agora escreve aqui.
Tem 29 anos e assina com três nomes para fingir ser, entre os amigos, um pequeno burguês. É o autor da crónica "Caderno de encargos".