Nos dias de hoje, a Inteligência Artificial (IA) é ainda para muitos marketeers um cruzamento entre os filmes “Her” e “Ex Machina”. De um lado, uma paixão entre um humano e a IA e a forma como esta responde às emoções humanas de uma forma indistinguível, e como tal um sonho para quem quer criar experiências de marketing cada vez mais personalizadas e envolventes. Do outro lado, a ideia de que as máquinas podem pensar melhor que os humanos, e o perigo que seria se a IA nos conseguisse manipular.
Curioso que foi o Bard da Google que me deu estes dois filmes como analogia à forma como os marketeers vêem o tema da IA. E ele não está errado. O sentimento que atualmente os profissionais de marketing sentem sobre a IA está muito relacionado com a paixão pelas oportunidades que podem ser criadas, e pelo desconhecimento sobre o que ele pode fazer sozinho.
A discussão da “Ética na IA”, e os pedidos para que se regule a sua utilização, estão a ganhar cada vez mais força. Muito provavelmente, no caminho do 8 para o 80, ainda vai demorar alguns anos para que se defina qual o ponto certo para parar e definir a linha vermelha geral. Mas no marketing será que é assim tão difícil definir essa linha vermelha? No final do dia, a criação de conteúdos, a produção de artes e fotografia, os focus group e análises de comportamentos de compra, etc., são tarefas do marketing que atualmente já estão a ser questionadas. Como posso eu provar que este texto não foi escrito por uma aplicação de inteligência artificial? Como pode o Diogo Piçarra garantir que é ele que canta as músicas? Será que a IA quando oferece uma resposta criativa, bloqueia esta resposta e não a oferece a mais ninguém? Será que a máquina foi treinada para isso? Será que todos nós assumimos o uso de IA? Até que ponto somos obrigados a isso?
As perguntas são muitas, mas acredito que é possível hoje, para o marketing, definir uma linha vermelha no que diz respeito à utilização da IA. Se queremos falar da “Ética na IA”, primeiro precisamos de falar dela dentro da nossa casa.
Neste momento e durante os próximos anos, é dentro de casa que vamos definir as linhas vermelhas que o marketing não pode ultrapassar na utilização da inteligência artificial.
Então como pode o marketing definir as linhas vermelhas, e que linhas podem ser essas:
Reunir e Definir: A constituição de uma comissão nacional e internacional é requisito primordial no que toca a construir um marketing com IA saudável. As estruturas já existem (APPM, CNPD, APAN, e porque não CPPLP). É só garantir que se sentam na mesma sala. Mas atenção. Se nesta sala não estiver nenhum representante técnico que “fale IA”, não vale a pena começar a reunião. E sim, também aqui já há algumas estruturas em Portugal (APPIA e INESC).
Regulamento Ético: Muitos profissionais executam actividade sem se regerem por uma carta ou regulamento ético de uma ordem ou associação profissional. Mas estas entidades vão ser uma parte vital deste trabalho de definição e garantia de utilização correta da tecnologia. Se não houver alinhamento teórico e ético das classes, muito dificilmente será possível o distanciamento de ações individuais que coloquem em causa a utilização da IA de forma responsável no marketing. E, já todos conhecemos o poder da generalização.
Formar, Treinar, Esclarecer: No dia em que a primeira versão de uma “Carta de Ética Tecnológica para o Marketing e Comunicação” for escrita, ela já vai estar desatualizada. A inovação não espera. E é preciso que os profissionais tenham nas suas ordens e associações um ponto regular de comunicação, informação, e formação no que toca ao uso das tecnologias.
Mas e até lá? O que fazemos? Bom. Seguimos casos com risco calculado como o da Volkswagen no Brasil. Criou com IA uma campanha publicitária para comemorar os 70 anos da marca, dando vida à falecida Elis Regina e colocando a sua filha Maria Rita ao lado. Com apoio e aprovação familiar. Resultado, têm 33M de visualizações no Youtube em 2 semanas, milhares de notas de imprensa em todo o mundo, e foram alvo de um (óbvio) pedido de impugnação do CONAR por questões éticas na utilização de IA em pessoas falecidas.
As linhas vermelhas neste momento estão ainda num tom rosa. Criamos muita coisa com IA numa experimentação viva do que é esta tecnologia, mas temos um travão mental que nos diz até onde podemos ir. A linha vermelha atual está relacionada com a ética que rege muitos profissionais. Podemos inovar, sim, mas acredito que sabemos calcular riscos. Garantir concordâncias, validar as validações, validar o resultado, avaliar o impacto do resultado, testar o resultado, e só no final publicar o resultado. Com o tempo, as linhas rosas vão se tornando em linhas vermelhas. Mas até lá, somos aquilo que criamos, e criamos com aquilo que somos.
Ser pioneiro ao mesmo tempo que se traçam linhas orientadoras é o dia a dia da tecnologia. Não muito diferente do marketing, correto?