"Talvez seja apropriado começar por aqui: o humor é contraditório como o caraças. É agressão mas também pode ser curativo, é crueldade mas também pode ser compaixão, é sobrecarga mas também pode ser alívio, é humilhação mas também pode ser apoteose, é leviandade mas também pode ser sensatez, é faísca mas também pode ser extintor. Todas as considerações sobre humor são incompletas (excepto, talvez, esta). É um fenómeno esquivo, ambíguo e resistente à compreensão"
Ricardo Araújo Pereira (2016). A doença, o sofrimento e a morte entram num bar. 4ºed, Tinta da China, Lisboa.
Rimos porque algo ficou fora de lugar. Rimos, não somente perante a surpresa, mas principalmente quando esta traz uma ordem inesperada das coisas. Rimos quase sempre porque sim, como respiramos, sem pensar na ação, as suas consequências ou eventuais dilemas. Rimos como respiramos, assim e só assim.
Claro que o humor é subjetivo. A suposta ordem normal das coisas é a definição de conceito indeterminado, cada um tem a sua. Ora, se cada um tem a sua conceção do mundo — da regra —, também a noção de desvio -a excepção, a irregularidade- será sempre particular. Aquilo que para mim é inesperado, surpreendente e inusitado, poderá não o ser para quem esteja a meu lado. Isto não invalida — até dá força! — a ideia de que tudo, ou quase tudo, cabe dentro desse guarda-chuva gigante que é o humor. Sabemos que uma anedota do Fernando Rocha não é o mesmo que um texto do RAP. Uma queda de um deficiente não é o mesmo que um filme de Charlie Chaplin. No entanto, a partir do momento em que qualquer uma destas realidades provoca o riso é porque desconstruiu uma parte ínfima do mundo de alguém, logo, estamos perante humor. As considerações qualitativas não interessam para o nosso âmbito de estudo, além de que serão sempre, também elas, subjetivas.
Agora perguntas tu, perspicaz leitor, porque raio importa isto para a tua vida de pequeno sultão?
Importa porque culpar o humor pelo uso que fazem dele (assumindo que piadas claramente racistas, homofóbicas e erradas sob todos os pontos de vista são efetivamente humor, porque o são) é como querer culpar as estradas porque os traficantes as usam para movimentar droga, ou querer controlar todos os canais de TV pois através deles divulgam-se ideias e pessoas pouco aconselháveis. O ponto de partida é errado assim como o sítio onde se chega.
Combater o humor (logo, a liberdade de o fazer) é contraproducente, inócuo e perigoso. Contraproducente porque o humor é mais instintivo que cerebral, e temos, não escassas vezes, mais vontade de rir do proibido que do permitido e expectável. Inócuo porque combater o humor não fará com quem um estúpido deixe de ser estúpido, só fará com que seja mais difícil de o identificar. Perigoso porque controlar o discurso é controlar o pensamento, e controlar o pensamento é controlar o ser-humano, impondo-lhe limites desnecessários à liberdade.
O humor é tudo não sendo nada em específico. É impossível de ser controlado ou manietado. Os humoristas bem que tentam, pobres coitados.
Rir não faz de nós boas pessoas, nem más. Faz de nós pessoas. Rir é parecido à felicidade, mas não é felicidade. Nem tão pouco será alegria em muitos casos. Também não é um fenómeno puramente orgânico, mas quase! É uma linguagem e um modo de pensar que pode fazer de nós mais sãos, mas tem os seus méritos e conquistas limitados. O humor não salva vidas mas também não as destrói. Não salva almas, mas às vezes parece. E é por esta diversidade que seguimos caminhando, com a noção de que o humor, esse estranho animal, é quase inqualificável ou entendível na sua plenitude.