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Catarina Demony: “O dinheiro da escravatura não está na minha conta bancária, mas há privilégios indiretos”

E se descobrisses que os teus antepassados tinham estado envolvidos no comércio de pessoas escravizadas? Catarina Demony, jornalista, de 30 anos, decidiu investigar e tornar a história pública, através de um documentário. Com “Debaixo do Tapete” pretende “motivar famílias a falarem sobre este passado” e promover o debate sobre o racismo estrutural existente no país na atualidade.

Catarina Demony, autora do documentário “Debaixo do Tapete”. Fotografia de Jenniffer Lima Pais

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Lançado este ano, o documentário Debaixo do Tapete conta a história da família de Catarina Demony, jornalista portuguesa, que, há pouco mais de uma década, descobriu que era descendente dos Matoso de Andrade e Câmara, que foram dos maiores comerciantes de pessoas escravizadas em Angola, nos séculos XVIII e XIX.

Para este projeto, a jornalista, com 30 anos, contou com o testemunho de duas parentes: a avó e a bisavó – que acredita ser uma das últimas familiares que ainda beneficiou significativamente do dinheiro gerado por esses negócios. Foram, pelo menos, cinco gerações associadas ao tráfico negreiro transatlântico.

Do passado ao presente, o filme – que conta também com importantes vozes da luta anti-racista em Portugal – mostra como essa atividade se traduziu em privilégios que perduram até aos dias de hoje. Mas procura também evidenciar as consequências de séculos de escravatura, e explicar como o racismo, a discriminação e a segregação racial são impactos do passado colonial na atualidade.

Para Catarina Demony, correspondente da agência de notícias Reuters em Portugal, é preciso falar sobre este passado e repará-lo através de políticas públicas. “Há pessoas que ficam quase ofendidas por estarmos a questionar o passado glorioso do nosso país”, diz, relembrando que Portugal está “estruturalmente alicerçado” num passado de “violência e brutalidade”.

Nesta entrevista – realizada antes da exibição do documentário (com realização e direção de fotografia do jornalista Carlos A. Costa) na 4.ª edição do Bairro em Festa, em Lisboa –, Catarina Demony esclarece que não procurou uma perspetiva de vergonha, e partilha como foi difícil chegar a testemunhos semelhantes – embora se saiba que a sua família está longe de ter uma história única no país.

A jornalista considera ainda que “há sempre uma responsabilidade da branquitude” em falar neste tema, e critica o facto de o debate não estar, “de forma alguma, na agenda política” em Portugal.

O que sabias exatamente quando decidiste investigar os teus antepassados?

Só soube dessa história com cerca de 18 anos. Foi-me contada pela minha avó. Mas ela, quando me conta esta história, ou o que ela sabia dela, tinha muito pouca noção da dimensão do envolvimento dos meus antepassados no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. A minha avó sabia que isso tinha acontecido, porque era uma informação que foi passada de geração em geração, mas não sabia a dimensão. O que mostra que [o tema] já era um tabu durante a vida dela, tanto adolescente como adulta, e que continuou a ser durante a minha geração.

Na altura em que a minha avó me contou essa história – sou completamente sincera –, não foi uma informação que me chocou no sentido em que, nós, tu, eu e todos os outros jornalistas, nascemos com esta veia [de questionar]. E durante a minha adolescência, sempre que os meus avós, ou os meus bisavós, me contavam sobre o que era a vida deles em Angola, dava claramente para perceber que era uma família que vivia bem, algo que era comum nas famílias brancas e de elite em Angola, naquela altura. Tinham imensos empregados, tinham empregada de dentro, tinham motorista, tinham lavadeira, tinham várias propriedades.

Durante a minha adolescência, questionei-me várias vezes: era uma família abastada, mas de onde é que vinha este dinheiro? E o que me fazia perguntar de onde vinha esse dinheiro é que não tinha pessoas na minha família que tivessem cargos elevadíssimos no Governo ou num banco. Eram pessoas com profissões normais. A minha avó trabalhava na área da educação, o meu avô tinha um negócio numa papeleira, mas eram pessoas que viviam muito bem. Automaticamente pensamos em herança, e juntando um mais um, sabendo que a minha família tinha raízes em Angola – que não tinha ido para Angola durante as vagas do Estado Novo –, comecei a pensar que, se calhar, também tinha estado envolvida no tráfico transatlântico.

Quando a minha avó me conta essa história, não me choca muito, porque já tinha questionado se isso poderia ser possível ou não. Mas a informação que tinha era muito básica. Sabia o nome dos meus antepassados e, na altura, a minha avó conta-me sobre a existência de uma fotografia, que lhe tinha sido enviada por uma prima, do Museu Nacional da Escravatura, em que o brasão de armas da família ainda lá estava [na altura em que o brasão de armas foi colocado, esse edifício era uma capela da sua família]. Era basicamente isso que a minha avó sabia, não sabia mais nada.

Mas era uma família que tinha tanto poder, na altura, que essa informação estava facilmente disponível. Obviamente tive de ir buscar mais documentos e falar com historiadores, mas bastava fazer uma pesquisa no Google para encontrar informação, o que achei interessantíssimo no sentido de [me questionar] como é que demorou este tempo todo até alguém – pelo menos dentro do ciclo da minha família mais próxima – fazer essa pesquisa e verificar que realmente a nossa família teve um peso muito importante no tráfico transatlântico. Ou se alguém o fez, mas não partilhou essa informação com ninguém, porque achou que não eram uma informação relevante.

Os avós maternos de Catarina Demony nasceram em Angola e vieram para Portugal, após o 25 de Abril Fotografia de Jenniffer Lima Pais

Em algum momento mexer nesse tema foi incómodo do ponto de vista familiar?

Foi uma mistura. Por exemplo, a minha avó foi uma pessoa que sempre esteve muito presente, durante o período em que estive a fazer as pesquisas, sempre muito interessada em saber, em perceber e também em desconstruir-se, [em desconstruir] algumas das ideias que tinha do que era Angola, e do que foi a vida em Angola. A minha avó esteve muito disponível para isso. Foi muito interessante. Lembro-me dela me falar das idas dela ao Mussulo, por exemplo, e dizer-me: “Eu não pensava sobre isso antes, mas agora que estás a falar sobre este assunto, eu lembro-me de que, naquela altura, no Mussulo, só havia pessoas brancas." E perguntava: "Mas, avó, porque é que achavas que só havia pessoas brancas?” E ela agora já faz esse questionamento e pensa que realmente isso mostrava o que era a estratificação social e as divisões sociais que existiam em Angola, no tempo em que era uma colónia portuguesa.

Mas também tive uma parte da minha família que não me criou obstáculos para fazer essa pesquisa – também era o que mais faltava –, mas que não ficou satisfeita com o facto de estar a tornar pública [a história]. Uma coisa é estar a fazer a pesquisa, outra coisa é estar a expor isto publicamente. Tive membros da minha família que não acharam piada nenhuma. Acho que isso reflete muito a ideia que circula dentro da sociedade portuguesa, de que o passado pertence ao passado. São pessoas com quem, se falássemos sobre os impactos que esse passado tem nos dias de hoje, se calhar, não conseguiriam percebê-los. São pessoas que estão muito pouco sensibilizadas, têm muito pouco conhecimento neste tipo de temas, e são pessoas que também nunca procuraram saber.

Tive membros da minha família que queria, realmente, entrevistar para o documentário e que se recusaram a aparecer. Nessas alturas não posso obrigar ninguém a fazer nada, mas vim agora a saber – porque é uma família muito grande – que tenho, pelo menos, uma pessoa na minha família, que, neste momento, é investigadora numa universidade fora de Portugal, que já tinha tentado fazer essa pesquisa há mais anos. E o que ela encontrou foi resistência, dentro da família dela, tanto que deixou essa investigação para trás.

Às vezes pergunto-me quantas famílias em Portugal podem ter alguém que queira fazer este tipo de pesquisa, mas que, quando comunicam à família ou quando tentam arranjar apoio dentro da família, não encontram e acabam por desistir. Ou, se calhar, até podem fazer investigações, mas não as tornam públicas, e talvez isso seja uma das razões pela qual nós, em Portugal, temos muitas poucas famílias que têm esse passado [e falam dele], e são muitas.

No documentário é dito que era "perfeitamente normal" quem ia do Brasil e de Portugal para Angola, qualquer que fosse a sua profissão, envolver-se no comércio de pessoas escravizadas.

Se todas as famílias portuguesas se autoinvestigassem, provavelmente, a probabilidade de a grande maioria encontrar antepassados que estiveram envolvidos no trafico transatlântico é muito alta. É preciso fazer essa investigação, ter disponibilidade para a fazer, e o apoio da família muitas vezes é fundamental.

Mas, se essa própria pessoa não tem o interesse, se não percebe esta ligação direta entre o passado e o presente, se é uma pessoa que não é exposta a outras realidades, também acho muito difícil que comece a fazer estes questionamentos. Acho que há muita pesquisa para fazer e muita dela não é feita por falta de conhecimento, de educação [para estes temas], o que, em Portugal, é evidente. Isso cria barreiras a muitas famílias de se autoinvestigarem. 

No documentário aparece o testemunho de uma outra pessoa, cuja família teve pessoas escravizadas. Com que facilidade chegaste a esse testemunho?

Muito fácil, porque o Francisco [Sousa] já tinha falado abertamente sobre a família dele. Encontro o Francisco a partir de um artigo que foi escrito pela Joana Gorjão Henriques, no Público. O que não foi fácil foi chegar a outras famílias.

Tive contacto com pessoas que sabiam que os seus antepassados tinham tido algumas pessoas escravizadas, mas o que queria mesmo era encontrar famílias em que as pessoas tivessem estado envolvidas no tráfico transatlântico, porque estamos a falar de quantias monetárias muito diferentes. E aquilo que queria mostrar é como estas fortunas ajudaram a construir muitos setores do país. Falando especificamente do setor da banca, por exemplo, e a essas famílias foi muito difícil chegar. A resposta que recebi foi silêncio. Nem sequer foi uma resposta, foi silêncio absoluto.

É uma pena, mas, ao mesmo tempo, não quero que estas pessoas ouçam este tipo de entrevistas e sintam que estou a tentar envergonhá-las por não quererem falar. A minha ideia, e o que gostava muito, é que este projeto pudesse ser um projeto de continuação e que essas famílias sintam que agora têm uma plataforma onde, se quiserem falar sobre este assunto, de uma forma aberta e factual, de uma forma construtiva, nós ainda podemos falar. Felizmente, vivemos num mundo onde a internet dá-nos imensas plataformas onde podemos fazer isso acontecer, mesmo que não seja a partir de um documentário. A ideia é essa, é motivar famílias a falarem sobre este passado, a exporem este passado, de uma forma crítica, não de uma forma lusotropicalista.

A ideia é essa, é motivar famílias a falarem sobre este passado, a exporem este passado, de uma forma crítica, não de uma forma lusotropicalista.

Para Catarina Demony, este é ainda um tema tabu na sociedade portuguesa Fotografia de Jenniffer Lima Pais

Há uma importância simbólica, e até efetiva, que depois tem consequências, em falar do passado colonial e esclavagista desta perspetiva, que, como já vimos, tende também a ser silenciada e a estar omitida?

Questiono-me muito sobre isso. Questiono-me muito sobre o impacto que isto pode ou não pode ter. Também me questionei muito sobre se deveria ou não falar sobre este assunto. A realidade é que estas discussões, relacionadas com racismo estrutural da sociedade Portugal, na grande maioria das vezes, são feitas por movimentos antirracistas e movimentos negros. Acho que há sempre uma responsabilidade da branquitude, tenhas ou não antepassados que estiveram envolvidos no tráfico transatlântico, de falar sobre estes assuntos, de ser um aliado, de estar lá, usando as suas próprias habilitações, as suas próprias skills, para ajudar o movimento e a luta.

Em relação aos meus antepassados... Quando estava a fazer esta pesquisa, descobri a provisão que deu ao Álvaro de Carvalho Matoso – que era o proprietário do que é hoje o Museu da Escravatura, antiga fazenda do Morro da Cruz – autorização para ele colocar o brasão da família em cima da capela – onde os africanos escravizados eram batizados à força [antes de irem para os barcos e serem enviados, neste caso, para o Brasil]. Nessa provisão, o Álvaro de Carvalho Matoso diz que está a colocar este brasão, porque quer que os seus descendentes, um dia, olhem para esta fazenda e percebam o seu espírito de vocação. O que ele está a dizer é que quer que, um dia, os seus descendentes olhem para aquilo com orgulho. Quando li isso, percebi ainda mais qual era a minha responsabilidade em falar sobre este assunto, não de uma perspetiva de orgulho, mas de uma perspetiva crítica.

Se calhar, as pessoas falariam no período da escravatura de forma diferente, principalmente portugueses brancos. Mas, apesar de naquela altura não ser considerado legalmente um crime, hoje em dia, estamos a falar do maior crime que foi cometido contra a humanidade. Não tenho dúvidas nenhumas disso. Quando descobres que os teus antepassados estiveram envolvidos no maior crime contra a humanidade, tens a responsabilidade de falar, e essa responsabilidade é ainda mais acrescida quando o envolvimento desses antepassados te deram privilégios, quando beneficias de um crime que foi cometido contra outras pessoas.

Quando descobres que os teus antepassados estiveram envolvidos no maior crime contra a humanidade, tens a responsabilidade de falar, e essa responsabilidade é ainda mais acrescida quando o envolvimento desses antepassados te deram privilégios, quando beneficias de um crime que foi cometido contra outras pessoas.

Já disse várias vezes que o dinheiro da escravatura não está na minha conta bancária, mas há privilégios indiretos: a minha família teve acesso, de geração a geração, a empregos, teve acessos a heranças, teve acesso a casas, nunca teve de se preocupar com o ter ou não ter uma casa. Mesmo que indiretamente deu à família acessos que muitas pessoas não têm. Portanto, indiretamente, a escravatura deu-me privilégios. Tendo em conta que foi o maior crime cometido contra a humanidade, que me deu a mim privilégios e que a minha família usufruiu desses privilégios, acho que é obvio que teria de falar. Acho que é uma obrigação.

Para ti, é evidente essa ligação entre o período esclavagista, e depois colonial, e o perpetuar de certos privilégios que chegam aos dias de hoje? E que se perpetuam em sistemas discriminatórios?

Depois temos essa outra parte, que é o mais importante, que é pensar que os teus antepassados estiveram envolvidos no tráfico transatlântico, beneficiariam, fizeram dinheiro à custa disso e o legado desse passado sente-se hoje. Como é que fechamos os olhos a isso? Como é que fechamos os olhos aos nossos antepassados terem cometido um crime que ainda hoje tem impacto na vida [das pessoas], tem um impacto nos corpos negros, na nossa sociedade, no século XXI, no nosso país e nos países que foram colonizados?

É impossível fechar os olhos a isso, e surpreende-me que a sociedade portuguesa feche os olhos a isso. Surpreende-me que famílias portuguesas, aquelas que estiveram envolvidas no tráfico transatlântico, e as que não estiveram, fechem os olhos a esse passado.

Achas que é mais uma vergonha sendo que falaste várias vezes que não é objetivo do documentário criar essa vergonha ou mais a negação, que propicia isso?

Acho que é negação. Falo muitas vezes que não fiz este documentário da perspetiva da vergonha e que não quero que as outras famílias sintam uma vergonha tão grande que não as permita falar...

Ou que as pessoas se tenham de pôr numa posição de pedir perdão...

De pedir perdão, desculpa, exatamente. Não queria que as pessoas sentissem isso. No documentário até tenho pessoas que dizem isso: “Não sou responsável pelo que os meus antepassados fizeram, como tu não és responsável pelo que os teus fizeram, mas a verdade é que aconteceu.” Portanto, a perspetiva da vergonha não.

Mas, na maioria dos casos, é uma negação completa que está presente na sociedade portuguesa. Porque, se uma família sabe que os seus antepassados estiveram envolvidos no tráfico transatlântico, mas, ao mesmo tempo, é uma família que, constantemente, nega a existência do racismo estrutural em Portugal, é uma família que está completamente em negação, porque não é uma família que consiga olhar para o passado e fazer a ligação aos dias de hoje. E, provavelmente, é uma família que olha para este passado não de um ponto de vista crítico, mas dizendo o que ouvimos constantemente na sociedade portuguesa, que “na altura, era assim, era completamente normal”. Ou pior, quando tens as pessoas que vêm dizer que "não podes falar sobre este assunto, sem falar do envolvimento das pessoas negras na escravatura”. É quase, constantemente, arranjar justificações para o crime que foi cometido.

Para além disso, aquilo que vemos muito é: “Sim, existiu escravatura, mas olha para todas as coisas boas que este período nos trouxe como país. Conseguimos espalhar a nossa língua. Olha para as partes culturais, para a música, e para a interação entre os povos.” É usar isso para justificar o que foi basicamente um crime tremendo que tirou a essas pessoas a sua dignidade, a sua cultura, a sua língua. Portanto, acho que mais do que vergonha, é negação. 

Na tua opinião, as pessoas têm medo da perda de privilégio ou nem passa por aí?

Acho que o debate, em Portugal, está a um nível tão superficial ainda... Ainda estamos na fase de negação, porque as pessoas nem sequer pensam na perda de privilégios.

O que quer que isso fosse... O quê é que, na verdade, significaria uma perda de privilégios para elas?

Toda a gente tinha agora de dar o seu dinheiro todo... Mas, aí está, porque as pessoas automaticamente pensam nisso. As pessoas quando pensam em reparações históricas, a primeira coisa que pensam é “agora as famílias que escravizaram vão ter de pagar um x de dinheiro ao Estado, aos descendentes das pessoas escravizadas, etc.” Na cabeça deles, se calhar, esta poderia ser uma forma de perder privilégios, e é uma coisa que nem sequer está a acontecer na generalidade. No mundo todo, há muito pouco disso a acontecer.

Se calhar, também pode haver aqui uma vertente de não querer estar associado a isso. Não querer que o nome, a cara esteja associada a esse passado, porque têm receio do quê é que as pessoas vão pensar delas e da sua família. E, depois, também há aqui uma coisa muito interessante na sociedade portuguesa que é a meritocracia. Porque está muito presente na nossa sociedade, as pessoas – principalmente as mais ricas – dizerem que chegaram onde chegaram por mérito próprio, porque trabalharam muito e esforçaram-se muito. Não duvido que as pessoas se esforcem nos trabalhos que têm, não é isso que estou a dizer, mas há uma grande negação de que o berço onde nasceste [pode representar um privilégio]. Isso pode estar relacionado com as heranças, com o dinheiro que os teus pais conseguiram angariar quando eras mais novo, o que for.

Quando nos referimos ao tempo colonial, estamos a falar de questões tão simples como já foste a escola, o local onde moravas tinha um liceu… 

Mesmo a falar no Portugal de hoje, o sítio onde cresceste que tipo de escolas é que tem? Os teus pais tiveram dinheiro para pagar uma escola privada? Tiveram dinheiro para pagar um explicador ou uma explicadora? Tiveram dinheiro para te enviar para o estrangeiro, para estudar?

Há esta negação também [do privilégio]. Quando dizemos, "esta família veio de uma grande fortuna que foi feita a partir do tráfico transatlântico, e o que se vê é que esse dinheiro foi passado, de geração para geração, e que esta pessoa agora é CEO de x e y, sim, trabalha muito, mas foi facilitado, devido a essa fortuna que foi feita a partir do tráfico", aí há uma parte de não querer perder esse privilégio, o privilégio de dizer: “Não, quem se esforçou fui eu, não foi o meu passado, nem a forma como nasci que me ajudou a chegar até aqui, onde estou hoje”. 

Os políticos têm estado à altura deste questionamento?

Diria que não. De forma alguma têm estado à altura deste questionamento. Surpreende-me muito, porque vejo políticos, líderes em países, como, por exemplo, os Estados Unidos da América, ou o Reino Unido – que claramente foram países que também estiveram envolvidos no tráfico transatlântico – a falarem sobre estes assuntos. Mas faz-me muita confusão, quando olho para Portugal, que é um país que teve o papel principal no tráfico transatlântico, traficou mais pessoas do que qualquer outro país, e este debate, simplesmente, não está de forma alguma na agenda política.

Aliás, o debate em Portugal está a um nível tão baixo, que temos uma ministra, Ana Catarina Mendes, que é uma ministra que tem a pasta da migração, que basicamente acha que não há racismo estrutural no país. Teve de vir uma ministra brasileira, a Anielle Franco [ministra da Igualdade Racial do Brasil], numa visita de Estado do presidente Lula [da Silva] explicar [a Ana Catarina Mendes, numa reunião] o que era o racismo estrutural e explicar que o racismo estrutural existe em Portugal. Mesmo nas lideranças políticas que temos hoje em dia, temos uma negação disso. [Mas] não queria chegar tão longe em dizer que há uma negação do racismo, porque acho que há políticos que percebem isso...

Faz-me muita confusão, quando olho para Portugal, que é um país que teve o papel principal no tráfico transatlântico, traficou mais pessoas do que qualquer outro país, e este debate, simplesmente, não está de forma alguma na agenda política.

Há um receio também em fazer essas afirmações por uma questão de fricção na sociedade e de eleitorado?

Isso é uma ótima questão. Não sei responder... O que vejo é que, na generalidade, a população portuguesa não acredita que existe racismo estrutural no país, mas, ao mesmo tempo, estudos mostram que mais de 60 % dos portugueses manifestam algum tipo de racismo.

Provavelmente, também há aqui um elemento político, principalmente, quando estamos num país onde a extrema-direita está a crescer, onde a extrema-direita está a alimentar este debate, e onde cada vez mais pessoas estão a virar-se para este extremo. E depois, talvez, tenhas políticos, do outro lado do espectro, que dizem: “Eh, pá, se calhar, não podemos falar destes assuntos assim. Porque, se há um grande número de pessoas que está a ouvir a extrema-direita, que diz que o racismo não existe, se calhar, a nossa conversa sobre este assunto tem de ser um pouco mais moderada”.

O próprio primeiro-ministro [António Costa] já disse, em entrevista, que o racismo não é um problema proeminente na sociedade portuguesa. Portanto, acho que há aqui dois lados. Os políticos também são o reflexo do que é a sociedade, mas também conseguimos ver, através de ações deles, que há uma grande negação que o racismo é um problema estrutural na nossa sociedade.

Infelizmente, o que vemos no nosso Parlamento, que já teve mais representatividade, apesar de ter sido muito pouca para aquilo que era necessário... O que vemos, hoje em dia, é um parlamento quase uniforme, onde estes assuntos são muito pouco falados e nota-se que não são prioridade política. 

O documentário foi exibido na 4.ª edição do Bairro em Festa, realizado, entre os dias 22 e 25 de junho, no antigo quartel no Largo do Cabeço de Bola, em Lisboa @Jenniffer Lima Pais

Ainda antes do documentário sair, disseste que estavas preparada para reações, de qualquer um dos lados, que não fossem tão positivas. Que feedback tens recebido até aqui?

Também tem sido uma mistura em termos de feedback. Diria que o documentário tem sido bem recebido pelos movimentos [negros e antirracistas], pelas pessoas que já estão nesta luta há muito tempo e que me ensinaram muito. E acho que tem sido bem recebido exatamente pela tua pergunta sobre qual é a responsabilidade da branquitude em relação a este assunto. E por ser algo não muito comum em Portugal. É comum em Portugal, se calhar, teres uma pessoa branca a associar-se à luta, mas não no contexto de enfrentar o seu próprio passado e contar este tipo de histórias. Do lado dos movimentos tem sido muito bem recebido e, após a publicação do documentário, tenho aprendido ainda mais com as pessoas que já estão no movimento e que estudam este assunto, há muito tempo, e que experienciam os problemas de racismo estrutural na pele, todos os dias.

Depois há outro lado que reflete este negacionismo, que é a sociedade portuguesa, que não acolheu bem o meu documentário. Acho que ainda não percebeu qual é a necessidade de fazer este documentário, de expor esta história e, na sua generalidade, o que vejo são pessoas que levaram uma lavagem cerebral tão grande... – como todos nós, como eu própria levei, durante a minha educação, durante as minhas vivências, dentro da minha própria família – que criticam o documentário, exatamente porque nunca começaram um processo de desconstrução elas próprias. Gostava muito de falar com mais pessoas deste género. Às vezes, é muito difícil falar com este tipo de pessoas, mas a forma que criticam aquilo que faço é exatamente dizendo que sou uma pessoa que não ama o país, que não sou patriota, e muito vezes usando esta narrativa de “os negros também estiveram envolvidos na escravatura, não fomos só nós”.

Isto não acontece muito quando faço apresentações, mas, principalmente nas redes sociais, o que vemos é muita agressividade. Não só quando estou a partilhar conteúdos relacionados com o documentário, em si, mas conteúdos relacionados com o racismo estrutural no país, nota-se este negacionismo que é a nossa sociedade, a partir das redes sociais. E é assustador. Porque a realidade é que as redes sociais são um mundo, mas é um mundo que se transporta para a vida real. Aquilo que se diz nas redes sociais, e a violência que se usa nas redes sociais, infelizmente, também é usada no nosso dia a dia, principalmente contra pessoas racializadas.

Há pessoas que ficam quase ofendidas por estarmos a questionar o passado glorioso do nosso país. Temos um país que está estruturalmente alicerçado neste passado dos navegadores e dos descobrimentos, da expansão, e esse é o motivo de orgulho de muitas pessoas...

É preciso fazer um trabalho não só ressignificação, mas também é preciso encontrar outras coisas para sermos gloriosos, não é?

É isso. Muitas vezes digo que somos um país tão pequenino, economicamente muito irrelevantes, internacionalmente também muito irrelevantes. Sejamos sinceros, a opinião dos nossos líderes lá fora não é uma opinião que mexa. Não estou aqui a desvalorizar o país, estou só a dizer que a realidade é essa. Somos um país pequenino e não temos outras coisas para nos orgulharmos... Quer dizer, temos outras coisas para nos orgulharmos, mas a essas outras coisas não é dada tanta visibilidade como deveria ser dada.

Acredito realmente que encarar este passado, reparando este passado, a partir de políticas públicas, e falando sobre este passado de uma forma construtiva, iríamos abrir uma porta para outras coisas de que nos poderíamos orgulhar, mas temos de começar essa caminhada. Acho que estamos a começá-la muito devagarinho, mas ainda vai demorar muito tempo. Se não conseguirmos encarar o passado e aquilo que aconteceu, vai ser muito difícil darmos um salto para o que o futuro poderia ser neste país, um futuro que não é tão alicerçado nesse passado de violência e brutalidade.

Se não conseguirmos encarar o passado e aquilo que aconteceu, vai ser muito difícil darmos um salto para o que o futuro poderia ser neste país, um futuro que não é tão alicerçado nesse passado de violência e brutalidade.

Têm levado o documentário também a algumas escolas. Como tem sido essa experiência? 

Para mim, as escolas eram o sítio mais importante de ir, porque estudei numa escola portuguesa. Sei o tipo de currículo que as escolas portuguesas ainda têm hoje. É também um currículo muito alicerçado neste passado, que o glorifica, que não faz, ou faz muito pouco, uma leitura crítica deste passado, e que também não faz esta ligação com o presente. Por isso, para mim, era muito importante ir às escolas, falar com alunos, ouvir a opinião deles.

Ainda não fomos a muitas escolas, mas, em geral, diria que o documentário tem sido bem recebido. Os estudantes mostram muito interesse sobre este tema. Mas a experiência que temos tido [também] é que, nas escolas onde vamos, os professores que nos convidam já são pessoas bastantes sensibilizadas e conscientes sobre estes temas. Eles próprios já passaram mensagens aos alunos que questionam a forma como o currículo português é escrito e é ensinado. Aí facilita-nos um bocadinho o trabalho, quando vamos mostrar o documentário.

Mas também já tivemos experiências onde alguns alunos não reagiram assim tão bem ao documentário, e acho que isso parte muito daquilo que os alunos ouvem nas suas casas. Não só nas suas casas, mas também aquilo que ouvem, muitas vezes, na comunicação social. E como não são expostos a este tema de uma forma crítica, mas, sim, da forma mais comum que é a glorificação do passado, o negacionismo do racismo. Quando veem o documentário na escola, não é que estejam lá aos berros, mas não reagem da mesma maneira. E também refletem um bocado aquilo de que já falamos da sociedade portuguesa, de achar que não há necessidade de falar sobre este passado desta forma. 

E como é que o documentário foi recebido em Luanda?

Para mim, foi uma experiência importantíssima, ter a oportunidade de mostrar o documentário em Luanda. Foi um debate muito interessante. Um bocado diferente do debate que tive em apresentações feitas em Portugal, porque, em Luanda, aquilo de que falámos mais foi sobre o impacto ou o legado do tráfico transatlântico e do colonialismo em Angola. O documentário centra-se muito em Portugal, mas a discussão em Angola foi mais sobre como é que este passado ainda está presente nas estruturas do país e na própria sociedade.

O que notei foi que as pessoas, em Angola, tinham uma grande necessidade de falar sobre este tema, que queriam falar sobre ele e abordá-lo de uma forma crítica, mas que, ao mesmo tempo, também sentem que o próprio Governo e as elites angolanas não querem necessariamente pôr este tema em cima da mesa.

Outra coisa que foi muito interessante no debate em Angola foi pensar nas interações entre Angola-Portugal-Brasil, e em como os nossos líderes políticos, dos três países, também não falam sobre este assunto. Pelo menos, daquilo que sabemos, daquilo que passa para fora em conferências de imprensa e comunicados, estes assuntos não são discutidos entre eles. E aí está um tema muito interessante quando pensamos em reparações. Se estes legados não estão a ser discutidos entre os países que estiveram envolvidos no tráfico, como é que vamos avançar para um debate sobre reparações históricas a esses países também?

Pelo contrário, aquilo que estamos a ver agora é uma espécie de versão número 2 do que é o colonialismo, e não se está a ver grande luta contra isso dentro dos próprios governos. Por exemplo, ontem estava a falar sobre, em Moçambique, termos a Navigator a plantar hectares e hectares de eucalipto, ou sobre Portugal e Cabo Verde estarem a discutir a conversão das dívidas. Quando, se calhar, no século XXI, poderíamos estar a falar do cancelamento dessas dívidas como uma forma de reparação. É quase uma versão número 2 do colonialismo, que não nos permite ter conversas sérias sobre o que poderia ser um futuro de reparações entre estes países. Estes temas não estão a ser discutidos.

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Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online ou presencial]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online e presencial]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Soluções Criativas para Gestão de Organizações e Projetos [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação à Língua Gestual Portuguesa [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Planeamento na Comunicação Digital: da estratégia à execução [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

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30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Pensamento Crítico [online]

Duração: 15h

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Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

5 JUNHO 2024

Parlamento Europeu: extrema-direita cresce e os moderados estão a deixar-se contagiar

A extrema-direita está a crescer na Europa, e a sua influência já se faz sentir nas instituições democráticas. As previsões são unânimes: a representação destes partidos no Parlamento Europeu deve aumentar após as eleições de junho. Apesar de este não ser o órgão com maior peso na execução das políticas comunitárias, a alteração de forças poderá ter implicações na agenda, nomeadamente pela influência que a extrema-direita já exerce sobre a direita moderada.

22 ABRIL 2024

A Madrinha: a correspondente que “marchou” na retaguarda da guerra

Ao longo de 15 anos, a troca de cartas integrava uma estratégia muito clara: legitimar a guerra. Mais conhecidas por madrinhas, alimentaram um programa oficioso, que partiu de um conceito apropriado pelo Estado Novo: mulheres a integrar o esforço nacional ao se corresponderem com militares na frente de combate.

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