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Como damos conta do mundo? Teatro documental: uma forma de intervenção política no real

Teatro documental. Talvez este termo te cause estranheza, caro leitor. Existe um teatro documental? Se…

Texto de Andreia Monteiro

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Teatro documental. Talvez este termo te cause estranheza, caro leitor. Existe um teatro documental? Se sim, o que o diferencia do teatro de que ouvimos falar desde pequeninos? E em Portugal, como se tem dado vida a este género? Na Revista Gerador, de janeiro, partimos à descoberta do teatro documental, munindo-nos dos conhecimentos de investigadores, estudos académicos e indo à procura de alguns autores que têm apostado em criações de teatro documental em Portugal. No passado dia 14 de fevereiro, a Central Gerador, recebeu Daniel Gamito Marques, Júlio Martín da Fonseca, Ricardo Correia e Rui Pina Coelho para uma conversa sobre este tema.

Hoje, traçamos o trilho da nossa descoberta atenta desta arte, partindo da sua definição, para a história de como surgiu e como chegou a Portugal. Pelo meio, não deixamos de partilhar algumas ideias que nos foram transmitidas por estes convidados na nossa Central.

Uma breve cartografia da definição de teatro documental

Há cem anos, os primeiros esboços daquilo que viria a ficar conhecido como teatro documental começavam a ser traçados pelo encenador alemão Erwin Piscator. Movido pelo desejo de modificar a realidade, começou a desenvolver um projeto de Teatro-Atualidade, que era “um teatro semelhante ao cinema ou ao jornalismo”, tal como explica Eugénia Vasques no artigo “Piscator e o conceito de ‘Teatro Épico’”. Enuncia ainda que esta era a “luta por um teatro que tivesse uma imediata e direta influência na transformação da vida, e que fomentasse a informação e a tomada de consciência dos ‘porquês’ e dos ‘comos’ da realidade de todos os dias”. Para isso, o autor alemão munia-se de “artigos de jornal, fotografias e filmagens do real, do dia a dia, e punha-as em palco. Há uma relação muito irmanada com a intervenção política no real”, aponta Rui Pina Coelho, professor universitário.

Falar de teatro documental é iniciar uma discussão assente em dois eixos: ou afirmamos que qualquer evento performativo é, por si só, uma atividade política, ou adjetivamos o teatro documental por oposição a outros teatros, tomando-o como político. Duma forma simplificada, Rui define-o como o “teatro feito a partir de documentos, ou usando matéria do real.”

O professor universitário explica que o teatro documental “não é forçosamente não ficcional. Há trabalhos que partem de materiais concretos, como entrevistas, documentos, depoimentos, e que ficcionam a partir do levantamento dos materiais”. Assim, podemos ainda afirmar que “qualquer ficção está a criar um documento dos seus atores, da mesma forma que qualquer documento criado a partir de uma tarefa ficcional também cria um documento.” Olhando para a índole do teatro documental, Rui declara que o “teatro tem um projeto de intervenção sobre o mundo, de o transformar”. Entende que o que motiva este género é um “pendor existencialista e político”, principalmente em alturas de “pressão social, muitas vezes ligado a uma reflexão sobre a guerra. É sempre uma resposta muito concreta quando o real está demasiado confuso”.

Como segundo momento que cartografa a definição deste género, o professor identifica, no pós-guerra, o autor Peter Weiss, cujo trabalho resulta duma vontade política de entender o mundo. “Perante a fratura civilizacional que a Segunda Guerra Mundial nos vai dar, perante o conhecimento dos horrores de Auschwitz e perante o conhecimento das atrocidades de Hiroxima, há uma atitude perante o real, que é de tal forma difícil e complexo de entender, que a tarefa do artista é dizer ‘está aqui, tomem’”. Como exemplo, aponta-se a peça O Interrogatório, de Peter Weiss, escrita a partir das atas dos julgamentos dos carrascos nazis.

Posteriormente, em momentos em que há a necessidade de pensar o lugar das artes perante um real assustador, verifica-se um boom do teatro documental. A partir de matéria real, surgiram muitas experiências em países como a Inglaterra ou os Estados Unidos da América com autores que trabalhavam a partir de entrevistas a soldados ou a viúvas de soldados. “Volta-se a falar de um teatro feito a partir de documentos. Isto não quer dizer que os documentos estejam alheados doutros tipos de teatro, mas a premência de o fazer perante estas ameaças políticas, concretas, reais e muito imediatas é um novo tombar para usar os documentos na criação de eventos performativos. Tanto que os termos teatro documentário, teatro documento, teatro documental, ou teatro do real, passaram a estar de novo na órbitra dos estudos de teatro e performances. Essa atitude, a que chamam teatro do real, vem dar de novo ao teatro um papel que talvez nos tenhamos esquecido, e que é importante e devemos cumprir: fazer pausar o mundo. Dar um espaço para melhor entendermos as coisas no meio da vertigem dos noticiários. Surge esta câmara sagrada, que é o teatro, em que podemos olhar para as coisas com tempo e entendê-las duma outra forma”, explica Rui.

O caso português do teatro documental

Há muito que o teatro português se interessa pelo documento e o tratamento de materiais não dramáticos. Pelo menos desde os anos 80/90 com o pós-25 de Abril. Júlio Martín da Fonseca, ator, encenador e investigador, refere que embora já se usassem documentos, não se chamava a essa prática teatro documental. Rui identifica o período em que a tróica chegou a Portugal como o momento em que se começou a falar, no nosso país, de teatro documental. “Lá está, também um momento em que o real nos era muito austero, muito violento. E o Ricardo Correia, o André Amálio, a Joana Craveiro, assim os mais notáveis praticantes deste teatro adjetivado como documental, começaram a trabalhar nesse período reagindo à agressividade do real recuando para o teatro e dando-lhe outro entendimento.”

Júlio acrescenta que, para além da memória, que é importante esclarecer e problematizar, o foco no teatro documental, principalmente nos séculos XX e XXI, “tem muito que ver com uma urgência de dizer coisas. Ou seja, há um lado de memória, mas também uma urgência em falar da atualidade. Neste momento há espetáculos de teatro documental que falam dos refugiados. Ou seja, são questões muito urgentes. O que fazer? Como lidar? Aquilo de que temos de falar agora e que ainda nem há ficção construída para isso. Mas é preciso falar destas questões de uma forma teatral.”

Para além do tema dos refugiados, ao olhar para o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido em Portugal, Ricardo Correia, ator, dramaturgo e encenador, identifica como principais temas abordados a passagem para a democracia, a ditadura, os retornados, a precariedade e as migrações.

O que mudou em quase cem anos de história do teatro? “Tudo” (Rui Pina Coelho)

Júlio partilha que em Portugal, e talvez em toda a Europa, nos anos 80 e 90, começaram a surgir algumas correntes – o teatro urgente, o teatro participativo, o playback theatre – ou seja, uma série de formas teatrais que pretendem fazer uma aproximação à vida das pessoas, o que é complementar ao resto do teatro. “Aliás, penso que estes movimentos são interessantes quando não excluem os outros, mas quando criam esta complementaridade e o que o teatro tem de fascinante é justamente permitir esta invenção, reinvenção e pluralidade de formas que permitem olharmos a realidade e nós próprios sobre diferentes perspetivas.”

Aponta ainda o surgimento dos biodramas, que não foram tidos como teatro documental por fugirem ao pensamento de intervenção política, mas que não deixa de ser “uma viagem por uma história de vida que atravessa uma sociedade em transformação”. Para este autor, “o que é interessante, hoje em dia, é que as formas não são completamente puras. São justamente estes fenómenos de hibridação, mestiçagem, de transdisciplinaridade” que tornam este género interessante.

Para Daniel Gamito Marques, formado em representação e dança contemporânea, “o teatro documental está muito ligado à intervenção sobre o real e a utilização de documentos do real”. No entanto, o que mais lhe interessa é “a ideia do teatro que é feito utilizando documentos. Os documentos são o registo de uma determinada época, e é dessa forma que tenho abordado o teatro documento, ou o documento no teatro, no trabalho que tenho feito, sobretudo na escrita.” Assim, como método de trabalho identifica fundamentalmente a procura pela recuperação da memória, através do estudo de documentos que retratam o passado ou até o presente, assim como da nossa relação com os acontecimentos históricos, inclusive quando se trata de um tema em que ainda existe testemunhas vivas, como será exemplo o 25 de Abril.

Poderemos então falar em honestidade intelectual quando evocamos este método? Não existe uma reposta a esta pergunta, mas Daniel confessa que é uma expressão que lhe dá arrepios. “Hoje em dia, a honestidade, ou a transparência é uma coisa a que as pessoas dão muito valor, mas a honestidade pode ser muito problemática. Porquê? Porque pessoas como o Trump ou o André Ventura acreditam que, de facto, há diferenças entre o intelecto de africanos e caucasianos. Talvez acreditem honestamente nisso e quando dizem coisas racistas podem estar a ser honestos. O problema é que aquilo que estão a dizer não é verdade, e esse é precisamente o problema que existe com as fake news. As fake news existem precisamente por não se fazer a distinção entre o que é ser honesto ou fidedigno e aquilo que é verdade. Existem coisas que são verdade, independentemente de todas as críticas que possamos fazer, e há coisas que não são verdade. Essa distinção é que é muito importante fazer.”

Imiscuindo-se a realidade e a ficção nos palcos que recebem espetáculos de teatro documental, no qual se situa o público que, por norma, ao ir ver um espetáculo de teatro, parte do princípio que irá assistir a um faz de conta? Ricardo afirma existir um pacto com o público por serem apresentados documentos como prova. Porém, atenta que não deixa de ser um teatro. “O teatro documental não deixa de ter teatralidade e, portanto, a questão da honestidade é muitas vezes feita a quem o faz – como é que tu, usando os documentos como prova, usas também documentos subjetivos que são as histórias de vida das pessoas, os testemunhos, e como é que os editas e selecionas. Nós escolhemos o que vamos mostrar e fazemos esse recorte. Portanto, a honestidade será para com a comunidade com quem trabalhaste.”

A esta reflexão, Rui acrescenta que o teatro documental não pode ser tido como um sinónimo de jornalismo. “Não obstante haver a opção de ser montado a partir de documentos reais, que podem ser notícias de jornal, atas de um julgamento, cartas, anotações de livros, ou seja, documentos que têm uma existência para além do espetáculo, a obrigação do teatro documental não é ser objetivo e imparcial em relação àqueles documentos. O teatro documental deve ser parcial. É usar o documento para intervir politicamente para uma transformação do mundo sobre o real. Portanto, o gesto não é replicar os erros do mundo, não é replicar o real na cena. É usar a cena como um espaço para ganhar alguma tonicidade para agir sobre o mundo. E isso acontece no teatro documental, como em qualquer teatro.”

Júlio sustenta esta afirmação referindo a distinção entre jornalismo e ficção feita por uma escritora irlandesa: “Ela diz que não é uma questão de mentira ou verdade, é uma questão de intensidade. Intensidade de sentimentos, contextos e situações. A partir do momento em que o real se põe em cena, já é representação. As fronteiras aí são bastante ténues.”

É nessa parcialidade que Daniel encontra a força e poder do teatro: “poder contar aquilo que vários historiadores já contaram numa linguagem muitas vezes académica que só consegue ser decifrada pelos pares, duma forma que consegue puxar o público e comprometê-lo através da maneira como a história é contada.” É por a história não ser suficiente na edificação da memória que “temos de encontrar outras formas de contar estas histórias, e a melhor forma que tenho encontrado é a do teatro. É utilizar as artes performativas, porque elas conseguem chegar de uma forma muito mais direta às pessoas”. Júlio encontra esta força do teatro também numa questão de presença. “Estar diante uns dos outros. Isso, por si, seja ficção ou não, é muito forte e é algo que hoje em dia é completamente diferenciador e instigador de mudança. Isso é algo que o teatro e as artes performativas têm de muito importante.”

O teatro documental, assim como o trabalho implícito na criação artística, é, cada vez mais, visto como um método de investigação. Para Daniel, este género é sobretudo importante para “suprir uma lacuna que a história não consegue cumprir, nem nunca conseguirá, que é o facto de o historiador só conseguir fazer história a partir do momento em que tem um distanciamento sobre os acontecimentos, e isso não acontece quando a história é muito recente. Então o que se faz? Fazem-se estudos de sociologia, antropologia, mas também se pode fazer teatro.”

Assim, é possível atestar que quando falamos de espetáculos de teatro documental o potencial de transformação do público é amplificado pela possibilidade de encontrar na plateia o reflexo de muitas pessoas que viveram o período retratado. “Acho que é aí que todo esse potencial é amplificado”, remata Daniel.

O ímpeto da criação teatral com uma premência documental é naturalmente marcada com a passada dos tempos e das vozes que não se querem caladas. É urgente levar temas à discussão quando a realidade é difusa. Mas, como vimos, o próprio conceito de realidade é diverso. “Será que a realidade diz tudo? Será que compreendemos melhor o mundo em que vivemos através do real? E qual real, quando sabemos que existem diferentes níveis do real? A transdisciplinaridade fala disso. Não há uma realidade, há diferentes níveis de realidade. E como é que percebemos melhor o real? Através da brutalidade ou da poesia e da arte? É um tema que está sempre presente em nós.”

Esta discussão não termina aqui, e a nossa procura por vozes que têm vindo a edificar espetáculos de teatro documental em Portugal seguir-se-á com uma entrevista a Inês Barahona, diretora artística e criadora da companhia de teatro Formiga Atómica, em conjunto com Miguel Fragata, e a nomeação de alguns dos autores e espetáculos que têm partilhado histórias do real connosco.

Assim, ao longo desta semana, falamos-te um pouco mais sobre o teatro documental em Portugal, tendo como ponto de partida a reportagem “Teatro documental: um exercício de honestidade intelectual como reflexo de uma história polifónica”, publicada na Revista Gerador 29. Sabe mais sobre a Semana Temática do teatro documental, aqui.

Texto de Andreia Monteiro

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