Há vários dias que a manchete de uma crónica de Clara Ferreira Alves habita em mim. «O conselho a dar aos jovens é só um, fujam de Portugal, como fazem os refugiados afegãos. Portugal é um país ideal para os reformados ricos e um lugar aterrador para os reformados pobres.» Esta frase não me sai da cabeça. É dura. É uma facada em tudo aquilo que defendo e que tento praticar com o meu trabalho. Há pouco tempo, aprendi que a ideia de verdade só interessa se esta carregar futuro. Caso contrário, é só violenta. Esta não é verdadeira, apesar de perceber o seu sentido, é apenas cruelmente desesperançada. Neste caso, retira aos tais jovens a perspetiva de poderem e deverem fazer a diferença. Nos antípodas desta frase, está a mensagem de Martin Luther King: «Se ajudar uma só pessoa a ter esperança, não terei vivido em vão!» Acredito nesta capacidade mobilizadora inerente à esperança.
Cem Soldos, a minha aldeia natal, gravou em nós uma outra frase que nos explica a comunidade que não desiste da sua terra: «Nós somos uma aldeia que acredita e, por acreditar, faz!»
A minha geração nasceu numa aldeia europeia, em democracia, num estado social que nos proporcionou acesso e caminho. Não compreendo como um país sem guerra poderá ser um lugar sem sonho. E se o sonho comanda a vida, será apenas pela sua ausência que muitos territórios serão vistos como deprimidos, como territórios vividos com forte sentimento de desesperança. Mas, pelo contrário, graças ao «acreditar», jovens de uma aldeia do interior rural montaram um dos mais importantes festivais nacionais, o BONS SONS, criando um discurso próprio acompanhado de práticas positivas e exemplares para a cultura nacional e para a dinâmica do interior.
A esperança, por muito naïf que possa parecer a um cético, é o imprescindível motor para a implementação de um projeto e/ou investimento. É ela que nos faz ver a oportunidade, ter a necessária resiliência, a capacidade mobilizadora e o espírito congregador. É ela que nos mostra que Portugal é o ponto focal de três continentes, e não um país na cauda da Europa.
Crescer a ouvir que Portugal tem um atraso crónico, num discurso que muito se confunde com o ressabiamento da perda da grandeza colonial, nunca deu capacidade produtiva a ninguém. Apenas reforça a já tradicional diáspora. A desesperança é a maior força do concorrente, daquele que beneficia da estagnação do outro. Sou igualmente crítico de muitos dos vícios e tiques de Portugal, mas a prevalência de muitos desses processos desajustados, preguiçosos e até criminosos deve-se ao facto de os considerarmos inevitáveis.
Que fique claro que nada tenho contra quem sai do país à procura de uma vida melhor. Só não acredito que essa seja a única condição que um país como Portugal tenha para um jovem. Acredito que as viagens, os fluxos migratórios que não se traduzem em fugas e guetos, muito podem contribuir para a partilha de experiências e para a coesão dos países. Perceber como os Países Baixos fizeram a sua modernização agrícola a partir do pós-guerra, como a Suécia venceu a fome do século xx, como a França trata o seu espaço rural, ou a Finlândia, em poucas décadas, construiu um dos mais robustos sistemas de ensino poderá ajudar a perceber caminhos e a deslindar este pesado fatalismo lusitano.
Mas nada disto se faz sem o investimento na educação. Existem vários problemas no modelo português, mas é indiscutível que a democracia trouxe inúmeros progressos. Contudo, há pouco mais de uma década, sucessivos comentadores e peritos televisivos «fizeram-nos acreditar» que vivíamos num país de doutores, criando uma falsa ideia de que estudar era um engano. Hoje percebemos que ainda temos um dos índices de escolaridade mais baixos da União Europeia e que metade dos empresários portugueses não têm o 9.º ano de escolaridade. Numa economia cada vez mais competitiva, global e dinâmica, só uma sociedade do conhecimento poderá adivinhar o futuro. Essa distância no tempo vai ser condicionada por aquilo que sonhamos e fazemos hoje.
Na cultura, lembro sempre de dizerem que se a Amália tivesse nascido nos EUA, seria uma artista mundialmente conhecida. Eu cá, a única coisa que consigo afirmar é que, quase de certeza, não seria fadista.
Há cerca de cinco anos, no 23 Milhas, projeto cultural do município de Ílhavo, desenhámos a Milha, a Festa da Música e dos Músicos de Ílhavo. É, simultaneamente, uma plataforma e um lugar de desafio para os artistas locais. Costumava dizer que Ílhavo tinha melhores músicos do que a música que produziam. Mas porquê? Porque é que Ílhavo não pode vir a ser um novo centro de criação musical? Não há razões práticas para que isso não aconteça desde que os territórios se libertem dos seus “tetos baixos”. Hoje, Ílhavo é nacionalmente sinónimo de cultura e poderá, caso todos façam o seu papel, ser um grande polo artístico. Tudo é possível desde que não se vejam pequenos. Não há territórios de passado e futuro. Há territórios de desejo, que potenciam novos desenhos, contra os malfadados desígnios.
-Sobre o Luís Sousa Ferreira-
Formado em design industrial, é o diretor do 23 Milhas e fundador do festival Bons Sons. Não acredita que a cultura em Portugal precise de uma revolução, mas sim de uma mudança de prisma. É o autor da crónica «Disco Riscado» na Revista Gerador.