fbpx

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

Disco Riscado: Quando vier a primavera

Na Revista Gerador 40, na crónica Disco Riscado, que agora partilhamos contigo, o Luís Sousa Ferreira fala-nos sobre como lidamos culturalmente com a morte.

Texto de Redação

©Raul Pinto

Apoia o Gerador na construção de uma sociedade mais criativa, crítica e participativa. Descobre aqui como.

A semana em que escrevo esta crónica foi marcada por um repentino funeral do pai de uma amiga. Tenho algumas reservas em falar sobre a morte, uma vez que, apesar de ter experienciado a morte de muitos amigos e familiares, ainda preservo o meu núcleo mais restrito. Ainda bem que não sei o que é a ausência de sentido provocada pela perda de algum dos elementos centrais da nossa vida. Contudo, não é sobre o apego ao meus que me interessa falar nesta crónica. Interessa-me pensar como culturalmente lidamos com a morte. À medida que vamos envelhecendo, começa a ser cada vez mais comum a velha frase: «Só nos encontramos nestas coisas.» Sucedem-se, de forma mais frequente, os funerais e os encontros provocados pela morte de alguém do nosso círculo.

Gosto de ver como culturas diferentes vivem os seus mortos, a velhice e os estados menos exuberantes da nossa existência. Muito haveria para dizer sobre isso, mas apenas gostaria de concentrar em quão desajustados são os nossos cemitérios. São murados, desconfortáveis, intencionalmente periféricos e não convidativos à permanência. Quem me dera que fossem efetivamente um jardim, um panteão das vidas que ali se encontram. Apesar de ser a coisa mais certa que temos na vida, evitamos pensar, planear e organizar o seu fim, e delegamos noutros a gestão de tão marcante momento.

Ao longo da minha vida, já fui a inúmeros funerais religiosos e não religiosos. Fico sempre perplexo como a esmagadora maioria não cumpriu com o seu dever: homenagear quem parte e reconfortar quem fica. Secos, severos, carregados de frases feitas, sempre uma evocação do pecado, um reforço de culpas, uma incapacidade de lidar com o que se sente. Com a desagregação das comunidades e com a higienização hospitalar, este ritual de partida torna-se ainda mais distante do seu propósito. Uns dias de torpor, em que se preenche o vazio com processos burocráticos, flores, artefactos tétricos e a ausência da memória. Um corpo desajeitadamente presente.

Rara é a vez que estou num funeral que não me recorde da extraordinária série Sete Palmos de Terra, que via religiosamente todas as segundas à noite, na RTP2. Um ritual que me aproximou do imaginário dos eventos de despedida, que tão bem retratava a vida através da morte. A arte em geral e a poesia em particular são reveladoras dos tempos da vida, da espera e do fugaz. Enquadra-nos na nossa insignificância e na nossa singularidade. Sem contradição.

Os funerais são-me incontornáveis. Necessito do ritual de despedida, apesar de achar que pouco há de certo no que ali evocamos. Mas não seria justo se não dissesse que tive algumas experiências marcantes, onde os seus chamaram a si a despedida. Recordo o poema do Alberto Caeiro, «Quando Vier a Primavera», dito pelo Vítor, na despedida do seu pai. Nunca um funeral me fez tanto sentido e revisito regularmente esse dia que terminou em festa. Foi a mais pragmática e, por isso, poética celebração da vida. Estava ali tudo. O respeito não só da vontade, mas da essência do ente querido, o conforto da família e amigos e a celebração do encontro. Este episódio ajudou-me, anos mais tarde, quando no funeral da minha avó – pessoa extremamente devota e benemérita da igreja  – , percebi que esta não teria direito a um padre para assinalar a sua partida. No meio da indignação, uma vez que todos gostaríamos que a sua vontade fosse respeitada, decidi dar sentido àquele momento atabalhoado e converter em algo real as palavras vazias do pobre diácono, que havia sido encomendado à pressa para o momento. Peguei no telemóvel e li um texto que lhe tinha escrito no dia da sua morte. Este momento recentrou-nos na nossa avó, mãe, amiga e familiar. A minha avó estava ali presente nas imagens que as palavras evocaram, e o funeral aconteceu. Uma simples ação criou sentido, partilha e uma memória reconfortante para os tempos difíceis que naturalmente se seguiram. Não podemos esperar que todos consigam liderar as celebrações dos seus. Eu mesmo não sei se o conseguirei fazer, mas há que repensar os modelos de um dos momentos mais significativos da nossa existência.

«Se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só. Mas, se morre, produz muito fruto.» Esta sempre foi para mim uma das mais enigmáticas frases do cristianismo. Com o tempo, a clarividência da morte foi-me desenrolando o seu propósito. Não me considero uma pessoa religiosa, nem tenho qualquer interesse em saber se esta vida é uma passagem. Apenas sei que quando um dos nossos morre, deixa o seu corpo e passa a viver em nós. Somos uma coleção de memórias e recorremos muito mais a elas quando o pragmatismo da morte nos bate à porta.

entourage religiosa adormeceu nos paramentos e protocolos e esqueceu-se do sentido do momento. Enquanto isso, as agências funerárias, cada vez mais musculadas, esquecem-se de que estes momentos não são sobre elas. Há que trazer a cultura e a arte, há que trazer a discrição da produção cultural, há que dar voz à comunidade no momento de partida. Em jovem, fiz parte de um coro, quando um dos seus membros mais carismáticos, a tia Gracinda, morreu. A família pediu que cantássemos, mas o padre não deixou que tal acontecesse na igreja. Cantámos na casa mortuária, e o verdadeiro funeral fez-se ali. Como se fez no café depois da ida ao cemitério onde, entre mínis, falámos das histórias e peripécias da Beatriz, ou na rua a dançar com os Mimo’s Dixie Band, no funeral da Tucha.

«Só nos encontramos nestas coisas» é resultado da apatia e da forma automática com que lidamos com o dia a dia. Mas não fazermos destes momentos o verdadeiro encontro, é não aproveitarmos um dos poucos impulsos que ainda temos para estarmos juntos.

-Sobre o Luís Sousa Ferreira-

Formado em design industrial, é o diretor do 23 Milhas e fundador do festival Bons Sons. Não acredita que a cultura em Portugal precise de uma revolução, mas sim de uma mudança de prisma. É o autor da crónica «Disco Riscado» na Revista Gerador.

Texto de Luís Sousa Ferreira
As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

Se este artigo te interessou vale a pena espreitares estes também

11 Março 2024

Maternidades

28 Fevereiro 2024

Crise climática – votar não chega

25 Fevereiro 2024

Arquivos privados em Portugal: uma realidade negligenciada

21 Fevereiro 2024

Cristina Branco: da música por engomar

31 Janeiro 2024

Cultura e artes em 2024: as questões essenciais

18 Janeiro 2024

Disco Riscado: Caldo de números à moda nacional

17 Janeiro 2024

O resto é silêncio (revisitando Bernardo Sassetti)

10 Janeiro 2024

O country queer de Orville Peck

29 Dezembro 2023

Na terra dos sonhos mora um piano que afina com a voz de Jorge Palma

25 Dezembro 2023

Dos limites do humor

Academia: cursos originais com especialistas de referência

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Patrimónios Contestados [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Desarrumar a escrita: oficina prática [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Gestão de livrarias independentes e produção de eventos literários [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Escrita para intérpretes e criadores [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Iniciação ao vídeo – filma, corta e edita [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Fundos Europeus para as Artes e Cultura I – da Ideia ao Projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Comunicação Cultural [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Introdução à Produção Musical para Audiovisuais [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Viver, trabalhar e investir no interior

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo e Crítica Musical [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Jornalismo Literário: Do poder dos factos à beleza narrativa [online]

Duração: 15h

Formato: Online

30 JANEIRO A 15 FEVEREIRO 2024

Artes Performativas: Estratégias de venda e comunicação de um projeto [online]

Duração: 15h

Formato: Online

Investigações: conhece as nossas principais reportagens, feitas de jornalismo lento

02 JUNHO 2025

15 anos de casamento igualitário

Em 2010, em Portugal, o casamento perdeu a conotação heteronormativa. A Assembleia da República votou positivamente a proposta de lei que reconheceu as uniões LGBTQI+ como legítimas. O casamento entre pessoas do mesmo género tornou-se legal. A legitimidade trazida pela união civil contribuiu para desmistificar preconceitos e combater a homofobia. Para muitos casais, ainda é uma afirmação política necessária. A luta não está concluída, dizem, já que a discriminação ainda não desapareceu.

12 MAIO 2025

Ativismo climático sob julgamento: repressão legal desafia protestos na Europa e em Portugal

Nos últimos anos, observa-se na Europa uma tendência crescente de criminalização do ativismo climático, com autoridades a recorrerem a novas leis e processos judiciais para travar protestos ambientais​. Portugal não está imune a este fenómeno: de ações simbólicas nas ruas de Lisboa a bloqueios de infraestruturas, vários ativistas climáticos portugueses enfrentaram detenções e acusações formais – incluindo multas pesadas – por exercerem o direito à manifestação.

Shopping cart0
There are no products in the cart!
Continue shopping
0