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Opinião de Shahd Wadi

Shahd Wadi é palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Exerce a sua liberdade no que faz, viajando entre escrita, performance, curadoria, investigação e tradução. A sua publicação mais recente é o livro de poesia Chuva de Jasmim (Caminho, 2025), sendo também coautora nas antologias Volta Para Tua Terra: Não Há Abril Sem Imigrantes (Urutau, 2024) e Ask the Night for a Dream: Palestinian Writing from the Diaspora Palestine Writes, 2024). Procurou as suas resistências ao escrever a primeira dissertação de doutoramento em Estudos Feministas do país, pela Universidade de Coimbra, que serviu de base ao livro Corpos na Trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio (Almedina, 2017). Foi nomeada recentemente Escritora Universal Galega de 2025. Nas suas práticas artísticas aborda a ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua. 

É por isto que dançamos

Nas Gargantas Soltas de hoje, Shahd Wadi fala da resistência nos pés palestinianos.

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“O corpo tem raiz, chama-se planta do pé”, disse Sara, sem saber que é precisamente aí que reside a minha dor. Procuro, tolamente, aliviar a amargura da minha raiz palestiniana, visitando uma curadora que não sabe que a minha raiz foi expulsa de mim muito antes do meu nascimento. Lê a palma do meu pé, dizendo: “parece que a tua inquietação na planta deambula sem parar.” Os meus pés andam eternamente alma em regresso. O meu sangue tem início, só que não está ainda no meu corpo. Em 1948, durante a Catástrofe palestiniana Nakba, os meus avós perderam a planta, ficando no exílio só com os pés. Sem oliveiras. Sem amoreiras. Sem sálvia nem tomilho. 

Há 77 anos que os pés do povo palestiniano se desgastam de tantas caminhadas para um exílio. Também os pequenos pés da menina descalça em Gaza carregam a sua irmã de uma ponta à outra da Faixa e com ela sustentam o peso de mais um exílio e o fardo de muitos versos, como os da poeta Lena Khalaf-Tuffaha: 

“Prova que és humano.

Prova que te deslocas sobre duas pernas.

Foge.”

Ela tenta provar. A minha família tentou provar. Também minha amiga Muna disse-me que, em 1967, o tentou provar. Era uma criança de 5 anos, quando as forças israelitas bombardearam a sua cidade, Jerusalém. Correndo desesperada com as multidões na direção oposto à da sua mãe, só acordou numa cama de hospital na Jordânia, com um dedo do pé esquerdo amputado.  Demorou a reencontrar a família, mas ainda não encontrou o dedo que perdeu no caminho. É com a ausência no pé que carrega a sua memória. A memória de um povo que tenta provar que é humano.

Lembro-me dos pés de Muna e sei que, enquanto a minha curadora acaricia a minha sola, um homem em Gaza senta-se ao lado daquilo que era um dia uma casa. Serenamente massaja o único pé visível de um recém-nascido. O corpo – mais provavelmente morto – está inteiramente debaixo dos escombros de uma casa, mas permanece na superfície um resto de uma raiz. Massaja-a enquanto for possível. Alivia a sua dor. Cuida dela. A raiz deste povo não morre, ao contrário dos seres humanos. Regressaremos.  O rapaz que foi morto em Khan Yunis, este, já não regressa. A mãe beija-lhe os pés. Sabe que por causa da raiz palestiniana que os habitou, ele foi morto. Implanta diretamente a sua boca no chão do seu corpo e canta um último carinho: “Yamma ya Habibi”.

Outra mãe, que ainda não perdeu os filhos, pinta os seus nomes nos pés, nos braços e na barriga. É preciso prevenir. Nomear o resto do corpo, pedaço a pedaço e ligar a cabeça à raiz. 

Um filho une a sua cabeça à raiz da mãe, encaixando as suas lágrimas na curvatura do seu pé: para onde foste, mãe? O seu choro não rega nenhuma raiz. O amor despe-se por inteiro nos pés palestinianos. 

Décadas separam o encontro entre os presos políticos palestinianos e suas mães. Assim que os encontram, beijam, beijam, beijam os seus pés, talvez porque o Hadith diz: “O Paraíso está sob os pés das mães.” Não estará também sob os pés deste povo inteiro?

E porque raio as beatas de cigarros todos alinhados numa fila de tamanhos e cores diferentes neste miradouro sobre Lisboa, me trazem a imagem das filas de pernas num já-não- existe-hospital de Gaza. Entendo finalmente a ligação entre o pulmão e o andar, entre os pés e a morte, entre a respiração e a raiz. Quantos palestinianos perderam os pés e ainda insistem em não perder a raiz? Respirar.

Os palestinianos foram designados por “belgas”, precisamente por causa daquilo que uma vez colocaram no pé, aquilo que se colou à raiz. Este nome surgiu na Jordânia nos anos 1970, muito provavelmente porque os guerrilheiros palestinianos usavam botas fabricadas na Bélgica, o que os diferenciava do exército jordano. Esse termo passou a ser usado para tratar os palestinianos como sendo “estrangeiros”, afastando-os da sua raiz. O menino Mahmoud Ajjour, cujo retrato tirado pela fotógrafa Samar Abu Elouf ganhou o maior prémio do World Press Photo 2025, jamais precisará de se calçar, nem sequer botas belgas. Depois de uma explosão israelita lhe ter roubado os braços, está a aprender a usar os pés para jogar, escrever e abrir portas A sua raiz tornou-se um corpo inteiro.

É nos pés que reside toda a resistência palestiniana. “É por isto que dançamos: Temos os pés feridos, mas o ritmo permanece” Disse o escritor e poeta Mohammed El-Kurd. Calçamos as imagens, calçamos as canções, calçamos os beijos. Ainda não calçámos a nossa raiz, nem a liberdade. É por isto que dançamos, para que o ritmo da raiz permaneça.  “Descalças. Faremos o caminho até o último dedo.”

As posições expressas pelas pessoas que escrevem as colunas de opinião são apenas da sua própria responsabilidade.

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