Porto, 3 de julho de 2020
Regressei há pouco do almoço com a minha amiga S. A certa altura começámos a conversar sobre Memórias de Plantação, o livro que Grada Kilomba publicou há um ano em Portugal , mas há onze em Berlim, e fomos ter a um tema frequente nas nossas conversas: o papel que a cultura pode desempenhar enquanto lugar de pertença. Um lugar para onde olhamos e nos reconhecemos e encontramos — ou encontramos umx outrx.
Logo no começo do livro, Grada convoca um poema de Jacob Sam-La Rose, poeta, educador e editor, que se lê assim:
“Por que eu escrevo?
Porque tenho de
Porque a minha voz
em todas as suas dialéticas
foi silenciada por muito tempo” *
Para mim e para S., ler Grada Kilomba é diferente. Enquanto a leio com a distância de quem nunca foi questionado sobre a sua origem, S. revê memórias recorrentes ao longo da sua infância, adolescência, e agora da sua vida adulta. “De onde vens? Posso mexer no teu cabelo?” Em ambas existe uma sensação de encontro; eu deparo-me com uma realidade que nunca vivi, e ela relaciona-se profundamente com o que lê. Como Grada encontra em Jacob Sam-La Rose um pouco de si.
No meu primeiro texto para esta crónica, Gargantas Soltas, fechei com a ideia de que “conhecer estórias que não são tão nossas pode ser uma forma de gerar empatia” e que “estar disposto a ouvir o que desconhecemos, também”. Recorri à leitura de Yukio Mishima e de Ailton Krenak para exemplificar o que pode ser o encontro com x outrx através da literatura, mas podia ter recorrido a Sylvia Plath, a Grada Kilomba... Ou àquela peça do Hotel Europa que me permitiu encontrar-me com o meu pai num lugar em que ele nem estava presente. Ou àquele disco do Vaiapraia, que há dias me dizia que a música pode ter um papel “absolutamente fulcral no [encontro] de uma pessoa consigo própria, especialmente quando ela se sente em algum tipo de margem”— reflectindo, ele próprio, sobre os espaços criados pela sua música, tanto para si, como para os outros.
Com a força do movimento Black Lives Matter e o questionamento do privilégio após a morte de George Floyd, deu-se uma enchente de publicações com sugestões de livros, filmes e séries que devíamos ver para nos “educarmos”.
Bell Hooks, Bernardine Evaristo, Reni Eddo-Lodge, Angela Davis ou James Baldwin foram alguns dos nomes que se repetiram entre listas, e alguns chegaram até a atingir números nunca antes atingidos por autorxs negrxs nos rankings de vendas. Um mês depois, dei por mim a pensar se cada pessoa que a partilhou comprou algum desses livros, viu alguma dessas séries ou algum desses filmes, e se em alguns desses momentos culturais viveu a magia de um encontro como os que acima descrevo.
Acredito que, para além de procurar a simples, formal e distante "educação", devemos abrir-nos a um nível superior de compreensão destes testemunhos, em que nos possamos realmente relacionar com eles, num exercício de genuína empatia.
Devemos deixar-nos levar pela empatia desses encontros que todas as obras que nos dão a conhecer o que desconhecemos, na primeira pessoa, podem gerar. A educação traz-nos a possibilidade de conhecer o lugar dx outrx, mas só a empatia é capaz de nos fazer respeitá-lx sem nos colocarmos no centro de uma narrativa da qual não somos protagonistas. Além de ler Hooks ou Baldwin para entender o feminismo negro, a opressão e as raízes do movimento Black Lives Movement, devemos lê-los para enquadrarmos o nosso lugar e o dx outrx nos sistemas e padrões de opressão em que viveram e em que tantxs outrxs vivem ainda hoje.
Do poder catártico e introspetivo da criação, que não deve ser romantizado e não funciona da mesma maneira para todxs xs criadorxs, surgem espaços de fala que na sua partilha se tornam espaços de escuta. Lugares em que, se nos deixarmos levar, nos vamos encontrando uns aos outros; usando a arte e a cultura como meio de transporte para um plano de igualdade e compreensão, começando por criar o tempo e o espaço necessários para a empatia na nossa própria vida.
No encontro com a minha amiga S. percebi que de pouco vale “educarmo-nos” se não transportarmos para a vida o que nos ficou. Na cultura encontramo-nos uns com os outros, e é a memória das emoções destes encontros íntimos que facilmente reencontramos na vida.
*Jacob Sam-La Rose, Poetry Sable: the Literature Magazine for Writers, Winter 2002, p.60 citado por Grada Kilomba, Memórias da Plantação, Orfeu Negro 2019
-Sobre Carolina Franco-
A Carolina Franco é jornalista no Gerador. Nascida no Porto, em 1997, aprofundou o seu interesse e conhecimento na cultura e na arte enquanto estudou na Escola Artística de Soares dos Reis. Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Lusófona do Porto, viveu quatro meses em Ljubljana, na Eslovénia, onde teve a oportunidade de ser envolvida pela cultura pós-jugoslava e estudar Ciências Sociais. Entre 2018 e 2019 frequentou a pós-graduação em Curadoria de Arte da Universidade Nova de Lisboa – FCSH. Graças a estas experiências, tornou-se mais interessada no papel da cultura na sociedade em geral e nas comunidades locais – uma relação que procura aprofundar cívica e profissionalmente.