As práticas musicais, mesmo quando não engajadas politicamente e aparentemente inócuas, têm a capacidade de transmitir ideias e valores e podem dizer muito sobre a forma como autores e intérpretes pensam o mundo. Por seu turno, a televisão é um poderoso mediador de significados que literalmente nos entram pelos olhos e ouvidos. A apropriação de discursos lusotropicalistas nas práticas musicais e na televisão é uma realidade complexa, mas recorrente. Porque as generalizações podem ser injustas e as simplificações irrealistas, este texto apresenta dois casos particulares: as representações portuguesas no Festival Eurovisão da Canção (ESC) em 1989 e 1996.
A música na televisão é um campo fértil para representações identitárias e as participações portuguesas no ESC são exemplo disso, ou não fosse este um programa de televisão e um concurso de canções que coloca em competição os países (e as suas televisões de serviço publico) de um espaço que extrapola as fronteiras geográficas europeias. Mesmo hoje, quando a televisão vê a sua preponderância diminuir, programas como o ESC, visto por mais de 160 milhões de espectadores em todo o mundo, agregam audiências e disseminam ideias e valores. A música reflete – mas também forja – identidades nacionais que podem ser reproduzidas pelos media e apropriadas pelos espectadores. No caso português, este processo resulta dos contextos político-sociais, de fatores económicos e comerciais e da ação de intervenientes distintos: os intérpretes e autores que criam as canções; a RTP, enquanto organizador do processo de seleção (o Festival RTP da Canção); os jurados e/ou o público que votam.
Antes de continuar, importa retomar alguns tópicos essenciais do lusotropicalismo expostos por Cláudia Castelo[1] que enquadram os exemplos descritos. A partir do ideário lusotropicalista de Gilberto Freyre, a singularidade do povo português e, por conseguinte, da sua colonização assentava numa excecional capacidade de miscigenação, adoção recíproca de valores e comportamentos dos vários povos, na plasticidade social, versatilidade, ausência de um orgulho racial e num cruzamento biológico e cultural resultado da convivência milenar com outras culturas. Se em 1933, Freyre justificava os particularismos do povo brasileiro pelas intrínsecas capacidades do colonizador, é nas conferências proferidas nas décadas seguintes no Reino Unido, EUA, Portugal e Goa que os extrapolara para todo o espaço colonial português. Ao Estado Novo, embora só nos anos 1950, conveio apropriar-se destes discursos como razão supostamente científica para a sua permanência colonial, desenhando um imaginário identitário que ainda hoje permanece na sociedade portuguesa. Era fundamental para o Portugal do pós-guerra legitimar o seu colonialismo, distinguindo-se de uma Europa devastada pelo conflito e pelas intolerâncias que o originaram. Esta “versão simplificada do lusotropicalismo foi entrando no imaginário nacional contribuindo para a consolidação da auto-imagem em que os portugueses melhor se revêem: a de um povo tolerante, fraterno, plástico e de vocação ecuménica” (ibid.:273).
Crescemos a ouvir estes discursos mesmo que tenhamos – tal como eu – nascido mais de uma década depois do 25 de Abril. Neste quadro, Miguel Vale de Almeida[2] questiona a “hegemonia da narrativa lusotropicalista” e a sua “sobrevivência sob novos matizes e condições”. Para o autor, “o ideário da gesta civilizadora e do fundo cristocêntrico foi substituído pelas noções de ‘universalismo’ e de ‘encontro cultural’”. O artifício retórico transformou-se em crença profunda e a lusofonia emerge como continuação deste legado, na governança, nas instituições e na “[c]ultura popular e mediática sem filtro de correção política” (2022:s.p.).
É nesta idealização que se baseia uma parte das narrativas das canções representantes do país no ESC. Foquemo-nos em dois exemplos que tomam a expansão portuguesa, o universalismo e o encontro cultural como âncoras identitárias passíveis de retratar Portugal na arena internacional.
Conquistador (1989)[3], da autoria de Ricardo Landum (mús.) e Pedro Luís (let.), interpretada pelos Da Vinci, representou Portugal no ESC três anos após a integração na então CEE e assenta nas estrutura e estética pop-rock corroboradas pelas indumentárias, interpretação e instrumentos presentes em palco. A estética musical parece gritantemente oposta à narrativa da letra que, aludindo ao imaginário dos Descobrimentos, descreve as conquistas portuguesas como “um sonho de poetas” de um povo que, “guiado pelos céus”, levou “a luz da cultura” ao mundo. Construindo uma espécie de roteiro dos territórios conquistados, onde se “ergueram orgulhosas bandeiras”, os Da Vinci falam dos portugueses que “semearam laços de ternura” nas “mil epopeias” que foram, nas suas palavras, “oceanos de amor”. No palco do ESC, a canção foi interpretada em português, mas foi editada comercialmente também em inglês, sob o título Love Conquistador, numa adaptação que retirou todo o conteúdo lusotropicalista do texto transformando-a numa canção romântica. Quando analisamos as camadas narrativas encontramos uma contradição: se a estética musical é próxima da contemporaneidade das práticas anglo-saxónias, a letra, a capa do disco e o videoclip de promoção no ESC são categóricos na afirmação de um conjunto de elementos narrativos simbólicos que forjam uma versão do passado, mediam valores pretensamente partilhados e advogam uma narrativa identitária.
Assente numa estética musical distinta da anterior, Portugal foi representado no ESC 1996 pela canção O meu coração não tem cor[4] (1996). Escrita por Pedro Osório (mús.) e José Fanha (let.) e interpretada por Lúcia Moniz, apresenta-nos o discurso lusotropicalista baseado num complexo narrativo coerente nos aspetos sónicos e visuais: letra, composição, orquestração, indumentária e adereços traçam um Portugal ecuménico. Cantando numa “língua que é de mel e de sal”, enfatiza uma identidade resultante da partilha cultural: “o que está longe fica perto nas cantigas”. São várias práticas musicais e as suas características – samba, marrabenta, fado, coladeira, corridinho, funaná, malhão, merengue, sapateia, bailinho, chula, morna, ciranda – que definem metaforicamente um modo particular de estar no mundo: uma “festa tricontinental” e expressões como “saudade desordeira” ou “porta aberta” por onde “pode entrar sempre alguém” são simbólicas da identidade portuguesa que se pretendia exibir.
Crescemos a ouvir canções que moldam a nossa forma de pensar. Em Portugal, reflexo do artifício retórico que se transformou em crença profunda, o imaginário ligado ao mar, às conquistas e às trocas culturais está presente nas práticas da música popular. Discursos lusotropicalistas têm servido os anseios de marcar uma posição no quadro da Europa, mas são também recursos discursivos para agregar públicos em torno da música. A afirmação de Portugal como ponto de encontro de culturas tenta reivindicar uma posição distintiva no quadro internacional, manifestando-se na produção cultural e na música em particular. De uma forma por vezes acrítica – que quase parece inofensiva – ou até reiteradamente, as narrativas lusotropicalistas salpicam a criação musical, forjando uma identidade portuguesa que é reproduzida ad náusea por agentes e instituições, mas na qual provavelmente, só alguns se reveem.
Referências
[1] Castelo, 2011, Uma incursão no lusotropicalismo de Gilberto Freyre, IICT | blogue História Lusófona, Ano VI.
[2] Vale de Almeida, março de 2022, O estranho caso da sobrevivência do luso-tropicalismo: https://setentaequatro.pt/ensaio/o-estranho-caso-da-sobrevivencia-do-luso-tropicalismo acedido a 10/10/2022.
[3] Portugal no ESC, Lausanne, Suíça, 1989: https://www.youtube.com/watch?v=-xJFCnGDPU4
[4] Portugal no ESC, Oslo, Noruega, 1996: https://www.youtube.com/watch?v=JajCDOGhn2s
*Este ensaio foi inicialmente publicado a 29 de outubro de 2022.
- Sobre a Sofia Vieira Lopes -
Sofia Vieira Lopes é investigadora do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança e é doutoranda em Etnomusicologia na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, com um projeto dedicado aos Festivais RTP e Eurovisão da Canção. É licenciada e mestre em Ciências Musicais – Etnomusicologia (NOVA FCSH), com uma dissertação sobre a canção de protesto na televisão portuguesa durante a ditadura. É criadora e team leader da iniciativa internacional EUROVISIONS. Foi bolseira do projeto A indústria fonográfica em Portugal no Séc. XX e fez parte das equipas dos projetos ORFEU (1956-1983): Políticas e estéticas da produção e consumo de popular music no Portugal moderno e EcoMusic - Práticas sustentáveis: um estudo sobre o pós-folclorismo em Portugal no século XXI. Desenvolve investigação no âmbito da música, media e indústrias. Tem vários artigos e capítulos de livros publicados e apresenta regularmente o seu trabalho em conferências nacionais e internacionais. Tem simultaneamente desenvolvido atividade docente em vários conservatórios de música.