Os livros Casa-Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936) de Gilberto Freyre (1900-1987) são considerados obras fundadoras dos conceitos “lusotropicalismo” e “democracia racial”. O ponto de partida de Freyre foi: “A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos” (FREYRE, 1975). O autor defenderia a existência de uma especificidade biológica e cultural (leia-se lusotropical) do português caracterizada por mobilidade e capacidade de miscigenação e aclimatização privilegiadas (MARTINS, 1999). Esta narrativa é anotada como um dos “mitos” sobre o colonialismo português que urge combater por omitir o nexo entre a conquista colonial e violência sexual. Antes de passarmos às críticas, comecemos por Gilberto Freyre. Situando-nos nas décadas 30 e 40 do século passado, no apogeu da fama de Casa-Grande & Senzala e subsequente glorificação do seu autor; quando o não menos consagrado poeta brasileiro Manuel Bandeira dedicou um poema a Casa-Grande & Senzala, inquirindo: “Que importa? É lá desgraça?/ Essa história de raça,/ Raças más, raças boas/_ Diz o Boas _” (BANDEIRA, 1975).
As referências a “Boas” e “raça” são pertinentes, pois, Freyre teve como mentor Franz Boas, fundador da antropologia culturalista moderna que rejeitava a ideia da existência de raças inferiores e superiores e pressupostos científicos sobre povos primitivos versus povos civilizados com base em fenótipos. Assim, influenciado por Boas, Freyre, “desce ao subsolo dos intercursos sexuais, do morar, do vestir e do se alimentar, discernindo em cada um destes aspectos a presença fundamental do índio, do negro e do português” na formação da sociedade brasileira (FERREIRA, 1999, p.99). Quando Freyre descreve, por exemplo, a festa de São Gonçalo de Amarante pelos olhos de um viajante francês ao Brasil colonial:
“Danças em que o viajante viu tomar parte o próprio vice-rei, homem já de idade, cercado de frades, fidalgos, negros e de todas as marafonas da Bahia. Uma promiscuidade ainda hoje característica das nossas festas de igreja. Violas tocando. Gente cantando. Barracas. Muita comida. Exaltação sexual.” (FREYRE, 1975)
Estamos perante uma descrição tipicamente freyreana ilustrando o que BARROS (2009) denominou de “brasilidade”. A seu ver, Freyre continua polêmico e instigante até hoje por se ter situado num caminho intermediário entre a ciência e a arte. Levando até às últimas consequências em Casa Grande & Senzala a comunicação entre arte e ciência, poesia e mito, drama e relações sociais. Por seu lado, SOUZA (2022) crê que toda a obra de Freyre reflete a noção de “antagonismos em equilíbrio”, ou seja antagonismos contrapostos da cultura europeia e africana; do catolicismo e maometismo; dinamismo e fatalismo, múltiplas extensões culturais que se equilibram e se hostilizam para finalmente explicar a formação sui generis da sociedade brasileira.
No seu tempo Casa-Grande & Senzala foi uma obra inovadora que marcou o início da antropologia cultural que juntou aspetos da sexualidade, raça, cultura e meio ambiente na explanação de um Brasil miscigenado. Até à década 60, as teses de Freyre suscitaram louvores e críticas, mas nos anos 80 a sua visão foi considerada ultrapassada e os seus livros considerados “obras racistas, ideológicas, conformistas ou enviesadas pela visão da escravatura ‘vista pela varanda da casa grande’” (SOUZA, 2022). Mas já antes, em 1955, Mario Pinto de Andrade desmistificava a suposta inata capacidade dos portugueses de integração nos trópicos por meio da mestiçagem e apontava a superficialidade do pensamento de Freyre. Afirmando que o lusotropicalismo não era válido para explicar a formação do Brasil e era inteiramente inadequado para descrever as circunstâncias coloniais em África (ANDRADE, 1955). A noção freyreana de mestiçagem tornou-se “alvo clássico” da crítica ao lusotropicalismo e subsequentes análises apontaram a não avaliação por Freyre da máquina colonial de exploração económica dirigida por um poder político (CAHEN, 2018). Algumas releituras posteriores do lusotropicalismo no Brasil centram-se no “mito da democracia racial” e nas contradições das relações raciais brasileiras. Nos anos 80, a democracia racial foi denunciada como mito no contexto da crítica à democracia política como farsa, transformando-se na principal arma ideológica do movimento negro para a reivindicação de inclusão racial na sociedade brasileira (GUIMARÃES, 2001). Hoje, parte do debate sobre o pensamento freyreano no Brasil centra-se em questões de raça e nacionalidade versus democracia racial, numa reflexão identitária de uma nação assumidamente miscigenada. Simultaneamente, os estudos culturais brasileiros e internacionais vêm alargando o seu âmbito de análise para incluir perceções modernas de raça; sincretismo religioso; multiculturalismo; hibridismo cultural; para além de sexualidade e raça.
Em comparação, o debate público e académico em Portugal prossegue afunilado. As noções do “lusotropicalismo” foram recuperadas nos anos 50 e 60 pelos ideólogos do Estado Novo para aplacar a crítica interna e externa ao colonialismo português. Após a apropriação política seguiu-se a recetividade académica. Num parecer sobre o lusotropicalismo, MARTINS (1999) refere a instrumentalização deste conceito pela diplomacia portuguesa em suporte da argumentação de interesses políticos e ideológicos da política externa portuguesa durante o Estado Novo. Hoje, a herança lusotropicalista permanece viva e continua a ser usada como âncora por algumas elites políticas e culturais no ideário de uma ex-metrópole, tornada num modesto país sem império e membro da União Europeia, mas que utiliza a ideologia da lusofonia, “prima do luso-tropicalismo”, para projetar e reforçar a sua importância como nação (CAHEN & MATOS, 2018). Assim, em Portugal, a noção de lusotropicalismo parece ainda “reproduzir a ideia de que a colonização portuguesa foi diferente e melhor do que outras colonizações [o que] não enriquece o presente, nem contribui para a compreensão do passado” (CAHEN & MATOS, 2018). Neste contexto, é importante anotar que já no século XVIII e XIX havia apontamentos sobre um melhor tratamento dispensado aos escravos brasileiros pelos senhores portugueses, incluindo uma maior facilidade na obtenção da sua alforria (PEREIRA, 2022, p. 63). Além disso, MARTINS (1999) aponta ideias já enraizadas no século XVIII sobre a particularidade da colonização portuguesa a partir da “imagem fraterna, cristã e missionária do povo português”.
Estas noções falsas sustentam a negação do racismo na sociedade contemporânea portuguesa. Num comunicado de imprensa, o Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Afrodescendentes relatou casos de piadas racistas, incluindo a comparação de afrodescendentes a macacos e a valorização toxica do passado colonial (ONU News, dezembro 2021). Por isso, ALMEIDA (2022) clama a necessidade urgente da luta antirracista porque na reação das instituições do Estado português, nos media e redes sociais persiste uma "negação afirmativa", ou reativa do racismo, particularmente na nova extrema direita organizada, que proclama que "Portugal não é racista". Esta atitude prevalente reside na tendência de negação da existência de uma realidade culturalmente polissêmica e polifônica no país e num discurso de Portugalidade (definido por si próprio) que assenta na asfixia do Outro (o africano e a sua voz) percebido como página em branco da história colonial (KHAN, 2014). A identidade portuguesa ampara-se, desta forma, a um lusotropicalismo assente num imaginário ex-imperial, o qual Eduardo Lourenço designou “essa hiperidentidade que se transforma numa espécie de não identidade sublimada” (Lourenço, 2017). É toda uma convocação a um passado imaginário que julgo ter os pés de barro cinzelados em nostalgia.
Se bem que não possamos reduzir a sobrevivência do lusotropicalismo nos nossos dias a expressões nostálgicas do passado, a nostalgia tal como definida por Boym (2001) representa um desejo saudoso por uma casa-lugar que não existe e poderá nunca ter existido, um sentimento de perda e deslocamento, um enamoramento da imaginação pela saudade e um anseio por um tempo diferente. Um desejo nostálgico de transformar a história em algo privado ou coletivo, em suma, numa mitologia. Quando Freyre trajava ufano as vestes de celebridade hasteada pela bandeira do lusotropicalismo, a sua obra estava embebida de nostalgia pelo Brasil colonial e da Velha República eliminada com a revolução de 1930. A receptividade a expressões de nostalgia coletiva são comuns, segundo BOYM (2001) nos períodos após revoluções. As ideias de Freyre que geraram o lusotropicalismo surgiram depois da Revolução de 1930 no Brasil, ano em que ele partiu para o exílio e escreveu Casa-Grande & Senzala. No Estado Novo português, o lusotropicalismo foi usado contra o clamor revolucionário nacionalista nas antigas colónias e novamente, no pós-revolução de 25 de abril de 1974 e subsequente transição democrática.
Avista-se na evocação lusotropicalista por várias instâncias portuguesas, em diferentes períodos históricos, uma “nostalgia restaurativa” (conservadora, nacionalista e ideológica) que convoca um passado idealizado e imaginado, tal como definido por BOYM (2001). Ao contrário da “nostalgia reflexiva”, a qual reflete melhor a obra de Gilberto Freyre, que recriou um passado de acordo com uma estética individual que mistura memórias autobiográficas com a biografia de grupo e da nação. Num sentido mais amplo, ambas os casos de nostalgia expressam um lusotropicalismo que entendo como produto da imaginação e exprime a saudade e anseio por um tempo diferente, a partir de uma origem lusa mítica com particularidades ideais e quiméricas, que se rebela contra a progressão do tempo histórico. Esta representação lusotropicalista identitária absolve-se de qualquer culpa sobre o passado e a sua sobrevivência no caso português significa um fracasso sociopolítico, ético e estético.
- Sobre Aida Gomes -
Aida Gomes nasceu em Angola, e obteve o mestrado em ciências sociais na Holanda em 1996. Em 2011, publicou seu primeiro romance, Os Pretos de Pousaflores (D. Quixote / Leya). Antes publicou, The Mozambican Press: a political analysis and a Historical overview, 1854-1994,(Occasional Papers Series, Randboud University of Nijmegen, 1996). Entre 1997 e 2017, trabalhou em África, Ásia, Europa Central e América do Sul, geralmente em missões de paz pela Organização das Nações Unidas (ONU). Atualmente, é doutoranda em história da literatura na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Brasil.
Referências bibliográficas
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