A dias de dar a conhecer ao Porto a sua oitava edição, o Family Film Project (FFP) prepara o evento que pretende pôr a cidade a pensar o cinema. Com o Teatro Rivoli, o Passos Manuel, o Coliseu, o auditório Almeida Garrett, o Teatro Carlos Alberto e outras galerias de arte, ruas e bares como extensores do pensamento, o FFP alinha-se por três temas-chave: arquivo, memória e etnografia.
Criado em 2012, o Family Film Project tem ocupado um espaço de reflexão que vai além do cinema, surpreendendo com performances, happenings e até jantares-performance por entre a sua programação. Mais do que um simples festival de cinema, o FFP é um lugar de desafio e constante experimentação.
Entre os últimos preparativos para o festival que começa já hoje, Né Barros, codiretora do festival, conversou com o Gerador sobre a importância do cinema no Porto e a longevidade de um festival que surge do espaço familiar e por lá tem habitado.
Gerador (G.) – Estamos a dias da 8.ª edição do Family Film Project. Qual é o balanço que fazem de quase uma década deste projeto?
Family Film Project (F.F.P) – Sentimos uma grande satisfação por termos conseguido fazer vingar um projeto desta natureza cumprindo os objetivos que desde início tínhamos estipulado e que se prendiam com a necessidade de agregar objetos fílmicos singulares com outras áreas do pensamento e performativas. Tudo isto com grande liberdade de seleção porque o festival não tem uma agenda específica de formatos ou tendências. O convívio entre as diversas propostas é verdadeiramente plural. Por outro lado, por se tratar de um festival mais focado e de menor dimensão, não tem os apoios institucionais necessários, o que dificulta o processo. Julgamos ser importante que se apoiem eventos culturais alternativos como este.
G. – Arquivo, memória e etnografia são três temas-chave do FFP. Como é que chegaram até eles e em que sentido é que o projeto se alimenta dos mesmos?
F.F.P. – O Festival nasceu a partir de “dentro”, ou seja, de experiências pessoais com a imagem e o vídeo. Percebemos que, com esses objetos caseiros ou “íntimos”, era possível encontrar interesses que estão para além do voyeurismo ou da mera exposição individual. Há fatores poéticos, sociais e políticos que estão implicados neste tipo de cinema e que são fonte fundamental de enriquecimento estético. As problemáticas do arquivo e da construção da memória reencontram-se e reinventam-se a partir destes objetos, com mais ou menos aparato de produção, com mais ou menos experimentalismo. O espaço do familiar (não apenas da família-instituição) e da intimidade revelam-se um campo fértil para novos acessos ao ser humano, às suas paixões, às suas lutas, às suas formas existenciais. Além disso, com o crescente acesso à produção das imagens, torna-se cada vez mais relevante um espaço de problematização e exibição onde tudo isto possa ser discutido.
G. – Sentem que o cinema tem tido espaço para reflexão no Porto? Os festivais acabam por ser um pretexto não só para dar a conhecer filmes que estão fora do circuito mainstream, mas também para se pensar o cinema?
F.F.P. – O Porto constitui-se, sim, como um lugar privilegiado de reflexão cinematográfica. Pelo número de eventos, escolas, e locais dedicados ao cinema, sem dúvida que existem todas as condições para que se apresente e se pense o cinema. Da nossa parte, é isso que nos interessa, ter a possibilidade de exibir filmes fora do circuito a par de filmes de autores mais consagrados, e de criar momentos de discussão.
G. – A vossa programação passa por duas salas que estão muito ligadas ao cinema no Porto, o Cinema Trindade e o Passos Manuel. Qual é a importância destas salas não só para a cidade, mas também para o FFP?
F.F.P. – Para o nosso festival, é ótimo poder contar com estas salas: são emblemáticas e, por si só, já tendem a convocar públicos mais inquietos e curiosos, recetivos a novas propostas de abordagem ao cinema.
G. – A Cláudia Varejão é a vossa realizadora convidada nesta edição. Esse foco em realizadores diferentes em cada edição acrescenta camadas à reflexão de que falávamos há pouco, uma vez que é um mergulho no universo de um cineasta em específico?
F.F.P. – A escolha de artistas convidados é algo comum a diversos festivais e, no nosso caso, serve, sem dúvida, para reforçar uma determinada zona estética e temática. No conjunto de artistas que tivemos (Mekas, Forgács, Marazzi, Fina, Canijo, Guimarães, Blaufuks), é muito interessante constatar como as poéticas e estratégias de abordagem aos espaços da intimidade e da memória são tão múltiplos e, ao mesmo tempo, tão dialogantes entre si. Mas trata-se também de oferecer, ano após ano, o devido destaque a um autor individual, permitindo-nos mergulhar de forma mais exclusiva na sua obra.
G. – Há momentos de performance no FFP. Qual é o ganho desta relação entre disciplinas artísticas?
F.F.P. – Há já alguns anos que incluímos na programação o ciclo de performances “Private Collection”, com propostas muito diversas, desde happenings a performances-multimédia ou até jantares-performance. Importa-nos explorar não apenas a hibridez dos campos artísticos e a mistura dos suportes que se apropriam das imagens, mas sobretudo entender a própria performatividade como um regime abrangente onde coabitam de igual modo as artes performativas, a vídeo-instalação, o filme-concerto e o próprio cinema em geral. Interessa-nos que todas estas vias se contaminem umas às outras. Mas interessa-nos sobretudo denunciar o próprio cinema como espaço performativo (e não como veículo informativo, por exemplo). O mero registo não nos interessa. É no exercício da performance ou no questionamento performativo que a arte, cinematográfica ou outra, encontra o seu espaço natural.
G. – Que ecos se esperam do Family Film Project na cidade do Porto e no contexto do cinema português?
F.F.P. – Esperamos que o Family Film Project possa continuar a contribuir de forma relevante para o enriquecimento da vida cultural do Porto e para a homenagem do cinema e dos seus cineastas, incluindo os cineastas portugueses. Nas últimas quatro edições, o festival tem vindo a dirigir o seu foco para artistas convidados nacionais, incluindo dois portuenses. É o caso da realizadora Cláudia Varejão, que este ano trará pela primeira vez à sua terra-natal uma fatia considerável da sua obra.
A sessão de abertura do Family Film Project é já hoje, dia 14 de outubro. A tela desta edição estreia-se com Ama-San, um filme de Cláudia Varejão, às 21h30 no Cinema Trindade. Sabe mais sobre a programação desta edição, com foco no cinema português, aqui.