Nasceram para tocar ao vivo na Casa Independente, onde incendiavam as noites lisboetas ao ritmo de covers de funaná. Das versões passaram aos originais e, depois de três EPs, os Fogo Fogo lançam o primeiro álbum. O grupo ficou um tempo de "castigo”, devido ao potencial festivo da sua música, e esperou por um momento em que fosse seguro dançar, para apresentar Fladu Fla. É agora.
“Este disco de originais foi uma consequência de tocarmos e de termos estado a tocar cincos anos essas músicas, e a prestar homenagem a esses grandes êxitos e artistas de funaná que nos influenciaram”, partilha David Pessoa (voz e guitarra), que forma o grupo com João Gomes (teclas), Danilo Lopes (voz e guitarra), Francisco Rebelo (baixo) e Edu Mundo (bateria).
Os Fogo Fogo surgiram, em 2015, de um desafio lançado pela Casa Independente: criar uma banda residente que lembrasse os tempos das festas dos anos 70 e 80, em que aquela Casa funcionou também como salão de baile. Ali, todos os meses, revisitavam o cancioneiro do funaná, muitas vezes acompanhado de outros músicos convidados. “Foi o criar de um culto, de uma família, e foi uma aprendizagem também”. Mayra Andrade, Boss AC ou os Ferro Gaita – “que foi assim uma espécie de validação, ou de bênção”, diz o instrumentista – foram alguns desses artistas. Aprenderam com todos eles, partilharam palco e experiência,s e deixaram ao público “histórias para contar que nunca mais se esquece”.
Mas das versões de temas dos Tubarões, Bulimundo, Simentera e outros grupos, os cinco músicos – todos eles compositores – passaram de forma “muito natural” e “orgânica” aos originais. “Tentámos ir beber a toda a história e todas as passagens que o funaná teve para fazer mais uma abordagem, que será a nossa. Gostamos de ouvir todas e procuramos aprender com todas as abordagens que houve até agora. Das mais tradicionais do Codé di Dona, Sema Lopi, às mais futuristas do Dino D'Santiago.”
Depois do primeiro EP homónimo, lançado logo em 2015 e que recorda as incursões mensais da banda na Casa Independente, os Fogo Fogo apresentaram os EPs de originais, Nha Cutelo (2018) e Dia Não (2019), onde deram a conhecer aquele que se tornaria o primeiro tema do futuro disco longa duração.
“Penso que já houve diferentes sonoridades na história do funaná. A tradicional será a mais antiga, será a do Ferro e Gaita, mas depois já houve a evolução para bandas com formação tradicional de rock, um pouco à nossa imagem, e um bocado a nossa primeira inspiração”, reflete David, relembrando também “a transição para uma fase mais eletrónica, a partir dos anos 90 para cá”.
Com influências do Lee Perry ou Tim Maia, a sonoridade dos Fogo Fogo “é funaná de Lisboa, de 2021”, feito por músicos experientes e ligados a vários outros projetos musicais, como explica João Gomes, que se junta à conversa: “Algumas das referências que temos, penso que são diferentes da maior parte dos artistas que conhecemos no funaná”. Por isso, a banda, que intercepta o funk e o dub, não se procura colar aos clássicos. “Tentamos fazer funaná à nossa maneira. Há coisas que não vivemos, como viveríamos se tivéssemos em Santiago ou em Roterdão.”
“O próprio título do álbum não tendo uma tradução à letra, quer dizer 'quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto' e o 'diz que disse'. Tem a ver com isso que o João estava a dizer, que é: prestamos homenagem a toda uma tradição e toda uma herança cultural, com base no funaná, mas acrescentamos o nosso ponto. Queremos que isso também seja a diferença”, sublinha David Pessoa.
Entre o português e o crioulo, Fladu Fla mostra uma banda que, tal como Lisboa, é reflexo de uma multiculturalidade, de diferentes origens e percursos musicais, de uma “troca”. “São dois vocalistas, um deles é cabo-verdiano e o outro é português, de Lisboa. (…) Não cantarmos só em português, ou cantarmos só em crioulo, faz parte da nossa identidade também, misturarmo-nos como banda, como uma Lisboa cada vez mais misturada e mais una”, afirma o também guitarrista, que, tal como João – que tem família moçambicana –, nasceu em Lisboa. Já Danilo é natural de Cabo Verde, da ilha de São Vicente, Francisco de Coimbra, e Edu Mundo do Porto, onde vive.
Para João Gomes, o facto de haver mais artistas a “trazerem esses estilos para a ribalta” justifica o maior interesse do público por projetos ligados à música africana. “É óbvio que não somos os únicos, desde Scuru Fitchadú ao Dino, têm surgido vários projetos ligados à música africana, para nem falar da música eletrónica. Acho que entrou mais no léxico nacional, as pessoas estão mais habituadas, familiarizadas com esses termos e o que significam, e com essas danças. Ou seja, é a recolonização dos colonizadores pelos colonizados”, termina entre risos.
A capa do disco, produzida por Vhils – com quem o teclista já tinha trabalhado nos Orelha Negra, ou com o Sam The Kid – ilustra esse mesmo diálogo mesmo lusófono. Sobre a centralidade de Amílcar Cabral, considera que “apesar de ter sido uma opção do Vhils, foi muito pertinente, porque ele representa um bocado a união dos povos africanos que falam português, da cultura africana lusófona, e é um pouco isso que nós tentamos representar. Tem a ver com a nossa maneira de estar na música”.
Cada um dos cinco músicos deu uma série de referências políticas, musicais, culturais e outras, para a conceção desta capa. “Tem aqui um avião da TACV, tem um tambureru do Cola de San Djon, tem Tim Maia, tem Mário Branco, Zeca Afonso. Tem Fela Kuti”, enumera David Pessoa. “Há aqui uma série de referências que, no fundo, representam a nossa identidade.” Num moisaico gráfico composto a preto e branco, mesas de mistura, sintetizadores, o Vulcão do Fogo, paisagens de Moçambique e do Porto, a cachupa, o grogue, um búzio e muitas outras figuras e símbolos interligam-se numa “daquelas capas que quanto mais se olha para ela, mais se descobre e mais se percebe o todo.”


Dos dez temas do novo disco, que tem produção do músico e compositor brasileiro Alexandre Kassin, oito são composições originais do grupo: “Hora di bai”, “Ronca baxon”, “Dia não”, “Ca ta da”, “Quê q’bô crê”, “Snacki pa guloso”, “Fladu fla” e “Dxam fica na bô”. O trabalho fica completo com “Ka bu frontan”, de Meno Pecha, que era escolha habitual nos concertos, e “Labrada (didi di réz)”, uma música, de autor desconhecido, que nunca tinha sido editada, e que lhes chegou pela voz e guitarra de Rolando Semedo, “músico de Cabo Verde, da ilha de Santiago, e que viveu os tempos áureos do funaná como iniciante”, conta João Gomes.
“Ele tinha algumas ideias que nos queria mostrar de temas, uns dele, outros de outras pessoas e gravou-nos alguns. Estivemos com ele a tocar, e uma dessas ideias era este “Labrada”, que na realidade não era uma ideia dele, era um tema que ele conhecia de quando era mais novo, mas que nunca foi gravado e nem tinha bem a certeza de quem era o autor.” Daquela versão, criam todo o arranjo e a sua abordagem ao tema. “É sempre fixe também trocar ideias com outras pessoas e reinterpretar. Foi assim que nós nascemos”, sublinha o instrumentista e fundador da banda. “A nossa essência é essa, apropriarmo-nos um bocadinho das canções que são as nossas referências, as nossas influências. Agradou-nos o facto também desse tema nunca ter sido gravado, portanto, havia uma margem para tornarmos o tema mais nosso, nesse sentido.”


Os Fogo Fogo terminam a gravação deste primeiro álbum, em março 2020, a poucos dias do primeiro confinamento devido à pandemia, o que adiou até este mês o lançamento. “Não faria sentido lançar o disco se não pudéssemos tocar”, menciona David Pessoa. “Sendo a génese da banda tocar ao vivo”, esperaram pela altura certa para soltar este trabalho. “Tivemos muito tempo sem tocar, até porque somos uma banda de música de dança e não era muito aconselhável ter os Fogo Fogo num festival, porque as pessoas se podiam descontrolar. Era contra as regras da DGS”.
Disponível já em CD e nas plataformas digitais, Fladu Fla será apresentado ao vivo já no próximo mês de outubro, em três concertos: dois em Lisboa (dia 2 no Fnac Live, no Pavilhão Carlos Lopes; e dia 10 no encerramento do Festival Iminente, às 23h) e um no Porto (dia 15 no Hard Club, às 22h).
Nos festivais caboverdianos "Baía das Gatas" ou "Crioulo Jazz Fest”, a banda ainda não teve oportunidade de tocar, mas essa é uma vontade agora reforçada pelo disco de originais: “Para nós, é muito mais importante irmos já com o nosso disco, com a nossa identidade. Obviamente que faríamos músicas do universo de Cabo Verde de funaná e, se calhar, isso até seria muito interessante, ver a reação deles, mas, para nós, é muito mais importante ir a Cabo Verde com os nossos originais.”