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Greta é “um espaço, uma fresta” para a literatura no feminino dentro de um mercado masculino

O papel da mulher na literatura, seja enquanto representação, seja enquanto voz, tem vindo a…

Texto de Patrícia Nogueira

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O papel da mulher na literatura, seja enquanto representação, seja enquanto voz, tem vindo a mudar. Olhando para a representação da mulher num passado não tão longínquo, esta era representada tendo em conta o seu papel enquanto mãe, a cuidadora do lar, ou para “entreter os salões” e o marido. Para além disso, estas não tinham voz, eram esquecidas ou escondidas, chegando até a passar-se por homens.

Maria Archer, Maria Judite de Carvalho, Natália Nunes, Isabel Nóbrega, Fernanda Botelho, Irene Lisboa ou Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa com Novas Cartas Portuguesas são nomes que, de alguma forma, foram traçando caminhos na escrita feminina em Portugal. No entanto, quando olhamos para os autores que são ensinados e aprofundados nas escolas portuguesas, saltam-nos nomes no feminino como Sophia de Mello Breyner Andresen, Luísa Ducla Soares, Agustina Bessa-Luís, Florbela Espanca, Natália Correia ou Lídia Jorge – este número não se estende para além dos mencionados, sendo menos do que o número de nomes de autores no masculino. Se olharmos para os Conteúdos Programáticos de Português do ano letivo de 2020/2021, do 11.º ano de escolaridade, temos sete autores e zero autoras.

Projetos como o Clube do Livro Feminista (da atriz, encenadora e criadora, Sara Barros Leitão), o Clube do Livro Book Gang (da escritora Helena Magalhães), a Confraria Vermelha Livraria de Mulheres, no Porto ou, mais recentemente, a primeira editora portuguesa a publicar apena no feminino, Aurora (da qual Helena Magalhães também faz parte), são projetos que trazem a mulher para o mercado literário português, um mercado ainda com autores e decisores maioritariamente masculinos.

Quando Lorena Travassos chegou a Portugal para estudar a representação dos brasileiros na fotografia portuguesa, explorando estereótipos e questões de género, percebeu que a mulher era muito mais fotografada do que o homem. Entre as conclusões que foi tirando na fotografia e na literatura, Lorena Travassos percebeu que faltava um espaço onde as mulheres pudessem expor o seu trabalho, falar e serem ouvidas: a Greta – Livraria Feminista.

Greta é sinónimo de fresta, uma abertura para um mercado que tem de ser presente

Lorena é fotógrafa, doutorada em Ciências da Comunicação, professora de Cultura Visual/Fotografia em cursos livres e universidades, e investigadora sobre arquivos coloniais e estudos de género. Em entrevista ao Gerador, conta que, desde pequena, sempre leu muito e quis ter uma livraria. Aos dezoito anos, pôs a mochila às costas e decidiu começar a explorar o mundo. Começou a aperceber-se de que “existiam muitas livrarias feministas em França e Espanha” e, particularmente em Barcelona, começou a perder-se nos livros e a encontrar-se na ideia de um dia ter a sua própria livraria, mas em Portugal: “Sempre deixei a ideia de lado, por questões monetárias, mas chegou a covid-19, comecei a ter menos trabalho e as questões de violência doméstica começaram a ser mais faladas. Foi aí que achei que era a hora de lançar o projeto, no entanto, continuava sem dinheiro para isso. Na altura surgiu a PPL (plataforma de crowdfunding), e eles tinham um prémio que ia ser dado pela NESTLÉ, aos dez melhores projetos de empreendedorismo que surgiram durante a pandemia. Alcancei o valor no PPL, consegui o apoio, fui à disputa pelo prémio e consegui. Aí, pensei: “Agora não tenho como fugir!” Ao mesmo tempo, acho que era a hora mesmo, porque sabia que havia uma no Porto que fechou e tinha aberto uma em Lisboa, a Livraria das Insurgentes. No processo de atingir o valor no PPL, muitas artistas juntaram-se e doaram livros e a sua arte, como a Lorena Portela e a Alexandra Lucas Coelho, então percebi que isto valia mesmo a pena”, conta Lorena.

Nascida no online, a Greta é uma livraria e ao mesmo tempo um espaço para venda de material produzido por mulheres e partilha – livros escritos por mulheres (cis ou trans), de todas as áreas (ficção, banda desenhada, livros infantis com uma perspetiva feminista e antirracista, história, estudos de género, poesia), artes gráficas, revistas, zines e ainda debates, workshops e lançamentos de livros. Lorena procura também dar espaço a quem não o tem, dando prioridade a livros que foram publicados em pequenas editoras ou por autopublicação e proporcionando um lugar seguro para o encontro e debate de temas que sejam remetidos às comunidades LGBTQIA+, imigrantes e afrodescendentes de todas as partes do mundo: “O nosso intuito é construir um mundo mais justo e ético”, pode ler-se na apresentação de Greta.

Corresponde a uma abertura para um novo mundo literário que urge ser discutido. Daí vem também o nome: “Greta não é uma questão de marketing nem está associado à Greta Thunberg. Na verdade, o nome surgiu com o livro Mil e Uma Noites, em que, numa das histórias, uma mulher fala – ‘eu sou uma mulher de seios e de greta’ –, então eu achei engraçado porque fui criada no Brasil e, lá, greta não significa vulva. Fui pesquisar mais sentidos desta palavra, porque acho um nome bonito e tenho muitas amigas com esse nome, e o que me agradou mais foi ser uma ‘fresta’, ‘abertura’, e fazia todo o sentido porque a Greta seria não só uma livraria, mas uma abertura, um espaço dentro do mercado editorial que tem muito mais homens, sejam livreiros, autores, inclusive se pegar num catálogo é difícil encontrar mulheres escrevendo. Pensei também que esta poderia ser uma abertura para autoras que não são muito vendidas porque não encontramos nas grandes livrarias. Mas muita gente me procurou a dizer que o nome era horrível, porque também significa vulva, e eu disse que, felizmente, isso também abrange a questão de ser mulher.”

A criadora de Greta não dispensa os livros de “editoras maiores”, considerando-os “imprescindíveis”, porque são eles que têm “os tradicionais feminismos”. Greta é assim “um espaço, uma fresta, dentro de um mercado, há quem diga que é muito excludente, mas como pode ser excludente se o mercado sempre vendeu mais homens do que mulheres? Também existem livrarias só de livros de viagem ou só de poesia, então é só uma questão de ser uma livraria especializada neste tema, e acho que existe uma necessidade muito grande deste tema em Portugal neste momento, de escutar mulheres e compreender melhor o feminismo e o que as mulheres têm passado”.

Feminismo não é femismo

“Os conceitos que confundem vêm do passado”, diz Lorena, explicando que, na década de 60/70, as feministas radicais acabaram por ditar a forma como muitas pessoas olham, hoje em dia, para a luta pela igualdade de género. Lorena clarifica que existem vários tipos de feminismo: “o radical, em que achavam que quem tinha de mandar no mundo eram as mulheres, sendo que as mulheres seriam superiores aos homens, pelo que estas não precisavam de casar. E esse pensamento mais radical é o que se popularizou sobre o feminismo e não as lutas que vieram depois, porque se virmos a primeira onda do feminismo, e não as lutas que vieram depois, as mulheres não consideravam a mulher negra, eram mulheres que não queriam abrir mão da escravidão, porque a mulher negra era mais barata. A questão é pensar no feminismo de forma intersecional, um feminismo que abrange as mulheres negras, emigrantes, de qualquer tipo de religião, a liberdade de ser dona de casa ou não, a mulher pode ser o que ela quiser, e também defender que mulher trans é mulher. Isto porque o feminismo radical não admite que ela é. A questão intersecional é compreender que existem várias camadas de luta. No Brasil, a expectativa de vida de uma mulher trans é qualquer coisa como 30 e poucos anos, pela questão do suicídio ou porque as pessoas matam-nas! É entender que existem várias camadas de sofrimento, por exemplo, por mais que eu tenha sido emigrante, eu ainda sou branca, então ainda tenho muito privilégio na sociedade para fazer o que eu quiser. Então, a questão é tentar debater, encontrar livros e vender livros que tragam esse olhar de pensar o feminismo como uma luta que deve ser não só das mulheres, mas de toda a sociedade, porque o feminismo é uma questão de procurar igualdade, de tentar diminuir essas camadas que existem dentro da questão de género.”

Questionada sobre o que é literatura feminista, a investigadora caracteriza-a como, “muito ampla”. Existem livros que fazem parte dos estudos de género, “mais académicos”, e há também uma literatura de mulheres que se consideram feministas e que falam sobre questões como igualdade de género, identidade de género, sobre o que é ser mulher e negra, sobre maternidade e educação, por exemplo, “são as mulheres que se consideram feministas e mostram desigualdades através da escrita delas”.

Apesar de, segundo Lorena, o feminismo em Portugal ter “começado um pouco tarde, com Três Marias (Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa) e As Novas Cartas Portuguesas”, a criadora de Greta enumera Cláudia Lucas Chéu e Alexandra Lucas Coelho como algumas das autoras que se consideram feministas e têm ganhado destaque no panorama literário português. Também a comunidade LGBTQI+ tem visibilidade na livraria online, e Lorena destaca Judith Butler, como mulher feminista que defende que “género é uma reação cultural”, e ainda a atriz, escritora e performer Maria Lucas, “uma mulher trans, que fala sobre transfobia”. Em comparação com a sua terra natal, Portugal ainda vai dando os primeiros passos, nomeadamente no que diz respeito à tradução: “O que eu vejo é que até nas pequenas editoras, existe um défice muito grande de publicação de mulheres e de tradução da própria literatura feminista e de referência no feminismo, para português. No Brasil, traduz-se mais. Acho que está faltando essa questão, porque a literatura em inglês, acaba por travar a literatura de várias pessoas que não conseguem ler ou não tiveram formação suficiente para poder ler livros em inglês ou francês.”

Um espaço de partilha e aprendizagem

A livraria feminista é também um clube do livro. É possível assinar anualmente e receber os livros em casa uma vez por mês, sem nenhum custo adicional, com ou sem curadoria de Lorena Travassos: “O feedback tem sido muito bom! Há quem prefira receber os livros em casa, há quem me mande indicações de livros e também quem agradeça muito por ter surgido um projeto como a Greta, por isso é que tenho continuado a insistir nisto, porque as respostas são mais positivas do que negativas, mesmo quando fazemos eventos.”

No futuro, Lorena quer levar Greta para um espaço físico, onde as pessoas possam “ler um trecho, pedir indicações, que seja um espaço de debate, cursos, lançamentos, porque é muito melhor quando encontramos as pessoas, há pessoas que me mandam mensagem e acabo por encontrá-las pessoalmente, o online, apesar de me permitir enviar livros para várias partes do mundo, é mais frio. É importante termos um espaço de encontro”.

A 9 de março, a propósito do Dia Internacional da Mulher, a livraria terá um encontro com várias autoras, num “evento roda de conversa”. Greta é assim, não só uma das primeiras livrarias feministas a aparecer em Portugal, mas um meio para a educação, com referências que constroem um futuro mais igualitário, transversal a todos os género e gerações.

Texto e fotografia de Patrícia Nogueira

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