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Luca Argel: “O propósito principal do ‘Samba de Guerrilha’ é ser portador de uma mensagem”

No seu mais recente projeto a solo, Luca Argel leva-nos numa viagem através da centenária…

Texto de Flavia Brito

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No seu mais recente projeto a solo, Luca Argel leva-nos numa viagem através da centenária história do samba, lembrando histórias e personagens do combate ao racismo, à escravatura e às desigualdades no Brasil. Lançado no último mês de fevereiro – nas plataformas online e, fisicamente, em formato de jornal – Samba de Guerrilha é um álbum conceptual de covers, onde o cantautor carioca, radicado no Porto há quase dez anos, troca os pandeiros e os cavaquinhos por outro tipo de roupagem sonora. Entre clássicos e joias pouco conhecidas do repertório do género, a narrativa é em forma de samba, mas um samba que, desta vez, testa os limites das suas possibilidades musicais – um samba reinventado, eletrificado, nascido a um oceano de distância da tradição.

Samba de Guerrilha não se assume apenas como um disco, mas sim uma obra que reúne múltiplas expressões artísticas em si: da música de Luca Argel à narração da rapper e autora angolana Telma Tvon, à ilustração de José Feitor e à poesia de tantos artistas. Aquilo que o músico diz ser um samba ópera – conceito emprestado da rock opera popularizado por Pete Townshend, dos The Who.

Iniciado em 2016, este é um projeto que cresceu durante cinco anos até se transformar em disco. Nasceu como um concerto-workshop sobre a história política do samba. Fora dos palcos, o conceito tomou a forma de artigos escritos, seminários, programas de rádio, até finalmente se efetivar num quarto álbum do artista brasileiro – e o primeiro de versões.

Gerador (G.) – Como surge este Samba de Guerrilha?

Luca Argel (L.A.) – Surgiu de um convite que me foi feito por uma associação que existia aqui no Porto, o Contrabando, na altura do golpe de 2016, no Brasil, contra a Dilma Rousseff. Nessa época, ainda não tinha terminado o processo todo, mas eles estavam a fazer uma semana de consciencialização sobre o que se estava a passar no Brasil naquele momento. Houve uma série de exposições, concertos, debates, uma série de atividades durante uma semana toda. Chamava-se a semana Contra Temer, e convidaram-me para fazer alguma coisa, não me disseram o quê. Eu tinha carta branca para apresentar qualquer coisa lá, no Contrabando, e foi nesse momento que tive a ideia de fazer o que é o embrião do Samba de Guerrilha, que é um espetáculo meio musical, meio falado, meio conversado – porque foi aberto a intervenções também do público – em que vou contando um pouco da história do samba, que é um objeto de estudo meu há muitos anos. Mas tudo isso de um ponto de vista político, confundindo-se com a própria história do Brasil. Então, acabei por fazer um arco que vai desde a abolição da escravatura, no final do século XIX, até ao processo, até 2016, tempo presente. Depois, como continuei a apresentar o espetáculo, ia sendo atualizado, falando sobre coisas que, na altura, ainda nem tinham acontecido. E o samba, o repertório que escolhia, era um repertório que servia bem para ilustrar essa história. Lei da vadiagem, no início do século XX, no Brasil. Existem músicas que falam sobre isso. Sobre a Praça Onze, sobre a destruição da Praça Onze, sobre a Revolta da Chibata, sobre a própria abolição da escravatura. Existe sempre algum repertório musical dentro do universo do samba que é material bom para ilustrar esses episódios históricos. 

G. – Como selecionaste as músicas que agora compõem a história do disco?

L.A. – Isso foi um grande desafio. Desde o primeiro momento, já era difícil selecionar as músicas para o espetáculo, mas, pelo menos, ao vivo, tinha a vantagem de que podia, de repente, sair do guião e improvisar se sentisse que alguma pergunta ou algum comentário tinha levado a conversa para outro lado. Podia trocar, ali na hora, o alinhamento. No álbum é impossível fazer isso. No álbum, preciso mesmo de estar com um guião fechado, que não vai ser modificado. Isso é uma responsabilidade ainda maior. É assim com toda a seleção, antologia, todo o tipo de escolha que fazemos. É sempre arbitrária, não é? Essas minhas escolhas foram super arbitrárias, de acordo com o meu gosto pessoal, com o que achava que era mais apropriado para ajudar a narrativa acontecer. Deixei de fora canções de que até gosto muito, porque achava que não acrescentariam tudo o que queria à história. Dentro de um espaço muito limitado, temos sempre de fazer escolhas, não é? Então, essa foi a minha. Diz mais sobre mim próprio do que sobre as músicas.

"Pesadelo" é um clássico de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, que se tornou o hino da Guerrilha do Araguaia, durante a ditadura da década de 70.
G. – Achas que, de alguma maneira, o disco já foi influenciado por todo o processo que fizeste com os concertos-workshops? Essa "visão" final que levas para o álbum já foi influenciada por todo esse diálogo que existiu com o público?

L.A. – Sim, com certeza. Tudo. Não só as músicas, como a própria forma de contar a história, os textos da narrativa, foram muito influenciados por essa experiência de ter feito, durante cinco anos, esse espetáculo ao vivo. Consegui ouvir comentários de muitas pessoas, percebi quais eram as dúvidas mais recorrentes. Porque eu estou a fazer uma coisa que é um pouco complicada, que é falar com dois públicos diferentes ao mesmo tempo. Eu falo, não só com o público português, mas com o brasileiro também, e é um ponto de equilíbrio muito delicado; não ser demasiado profundo na análise e na apresentação das histórias, porque nem todo o público português está familiarizado com algumas personagens, alguns sítios e alguns episódios como um brasileiro estaria mais facilmente; mas, por outro lado, também é chato ficar sempre voltado para questões muito básicas. Um ABC da história do samba talvez fosse ficar aborrecido para um público brasileiro. Então, foi nessas apresentações ao vivo que consegui sintonizar, de uma forma um pouco mais fina, o meu registo – até onde vou em termos de profundidade e que tipo de coisas básicas é que preciso realmente de explicar. Como geralmente, nesses espetáculos, tinha um público misto, tinha tantos brasileiros quanto portugueses, isso conseguiu-me dar uma noção boa de que registos usar na hora de fazer o álbum. 

G. – Este é um álbum de covers. Como é que foi o processo de trabalhar sobre músicas emblemáticas do género?

L.A. – Foi muito desafiante, porque coloquei a mim próprio algumas dificuldades, de propósito, que têm que ver, principalmente, com não fazer arranjos tradicionais, não fazer arranjos que soem como o cânone do que é a linguagem do samba já estabelecido. Queria fazer coisas diferentes, usar referências diferentes, oferecer uma linguagem diferente ao ponto até de ultrapassar os limites do samba, de fazer gravações de sambas que não soam de todo como o samba, que já estão ali no limite, ou até a ultrapassar o limite do género, e isso é muito difícil, porque eu próprio estou muito contaminado pela linguagem tradicional do samba, porque pratico essa linguagem nos grupos de samba onde toco e ouço muito. Então, foi um desafio fazer essa desconstrução interna, e exigiu também uma certa liberdade de alterar coisas, sem parecer que estou a faltar ao respeito dos compositores, porque existe também um lado do samba que é meio "velho do Restelo", de não querer mexer com a tradição de jeito nenhum. Não se pode mexer com certos compositores, com certos sambas, que são sagrados. É quase uma heresia, e eu não acredito muito nisso. Acho que, se for feito com respeito, é possível oferecer sempre novas visões de coisas, mesmo que sejam antigas.

G. – Um bocado à semelhança daquilo que acontece também cá em Portugal, muitas vezes, com o fado. Há quem diga que o fado tem aquele formato muito próprio e que, saindo daí, já é outra coisa que não fado. E há quem diga que não, que tem de haver esse espaço para as coisas se reinventarem…

L.A. – Exatamente. E isso impede o género de evoluir também. O samba nunca foi esse tipo de género que dificultou a sua própria evolução. Até há muito pouco tempo, havia compositores, que são considerados grandes sambistas até hoje, mas que foram, de certa forma, revolucionários na sua época. Essa tradição nem sempre foi igual ao que é hoje. A gente acha que a coisa está cristalizada hoje, mas, se voltarmos 50, 70, 80 anos atrás, a tradição era outra coisa. Uma pessoa, quando pensava em tradição, pensava em outras coisas que não o que a gente pensa hoje. Então, no fundo, a própria tradição também se renova.

"Agoniza mas não morre" é um samba de 1979, de Nelson Sargento, personagem viva do Samba de Guerrilha, que em 2021 completará 97 anos.
G. – Neste álbum transportas muito do caráter interventivo do samba. Também procuraste passar alguma mensagem com este trabalho? 

L.A. – Sim, isso é o propósito principal do Samba de Guerrilha. É ser portador de uma mensagem, de várias mensagens, na verdade, que dizem respeito não só ao samba, mas, principalmente, à sociedade, de uma forma geral; a sociedade brasileira como um exemplo, como um estudo de caso, mas que pode servir de aprendizagem para qualquer outra sociedade que tenha na sua história essa experiência da escravatura, a experiência da colonização, a experiência da diáspora, de ter cidadãos oriundos de uma diáspora. Isso tudo são elementos que são comuns a vários países e que podem enfrentar problemas muito semelhantes aos que o Brasil enfrenta, então, acho que, se o álbum tem uma função social, acho que a função social seria essa de levantar certas questões sobre a história, racismo, sobre imigrações, sobre respeito, tolerância, violência, sobre problemas estruturais que uma sociedade desigual enfrenta, coisas que não se devem fazer e com cujos resultados sofremos hoje, e tentar apontar novos caminhos, que é o mais difícil.

G. – Achas que as sociedades e, neste caso, especificamente a brasileira, aprendeu com o que aconteceu no passado? Como é que olhas hoje para o que acontece no Brasil?

L.A. – Não, não aprendeu ainda. Infelizmente não. Parece que não aprendeu nada. Acho que talvez há uns dez anos, mais ou menos, na altura em que vim para Portugal, em 2012, talvez naquele período, início dos anos 2010, parecia que a gente tinha aprendido alguma coisa, estávamos a começar a corrigir algumas injustiças que são históricas já, que a gente carregava há séculos, mas, nos últimos anos, ficou provado que afinal não, que boa parte da população brasileira continua completamente alheia à própria história do Brasil, por que é que o Brasil enfrenta as dificuldades que enfrenta hoje em dia. É uma coisa muito triste. Existe uma excisão, um abismo, dividindo o país praticamente de dois lados, e é assustador ver como o lado de lá, da negação da história, da negação desses problemas, da negação das injustiças e das desigualdades, é muito mais numeroso do que a gente imaginava. O desafio é muito maior do que a gente imaginava antes. Então é uma luta que acho que no Brasil está só a começar ainda.

O videoclip de “Almirante Negro” recria em fantasia a história da Revolta da Chibata, um dos episódios mais marcantes da luta antirracista no século XX brasileiro.
G. – Este é um disco que reúne múltiplas expressões artísticas e tem a particularidade de ter sido editado, fisicamente, no formato de um jornal. Porquê?

L.A. – Acho que este álbum tem uma característica diferente de qualquer coisa que eu já tenha feito, que é essa coisa da narração, que ocupa até mais espaço no álbum do que as músicas. E o formato físico, a opção por um formato físico de um jornal, ao invés de um CD, reflete um pouco essa importância da narrativa, das palavras, da história que está ali a ser contada. Por outro lado, este formato do jornal também é um pouco simbólico, porque, em algumas histórias que estão presentes no Samba de Guerrilha, a gente fala sobre liberdade de expressão, e liberdade de expressão está intimamente ligada com liberdade de imprensa. Então achei uma simbologia interessante, bonita, optar por esse formato do jornal. Também, hoje em dia, eu tenho, e qualquer músico tem, um certo privilégio que é poder prescindir do suporte de um CD ou de um vinil para que as pessoas tenham acesso. Porque a maioria das pessoas escuta as coisas pelas plataformas digitais, então não tive muito medo em prescindir de um CD. Há muita gente que pergunta, porque gosta e tal, mas compra o jornal mesmo assim. Porque acha o suporte interessante. Então, tem sido uma experiência boa. As pessoas ouvem o álbum na mesma e continuam a interessar-se por esse suporte físico e fica mais fácil exercer essa liberdade de explorar novos formatos.

Texto por Flávia Brito
Fotografia de Kristallenia Batziou

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