Confesso o dilema. Como qualquer outro ser humano, imagino coisas. Ao contrário daqueles que têm o dom de desenhar, estou limitado a escrever. Não me queixo. Mas é um facto. Não saber desenhar, custa. É uma pequena frustração… não traumática.
Depois penso na minha prima, aquela que na minha vida é a principal provocadora de novos temas que relacionam a arte e a tecnologia.
A artista Camila Nogueira sabe desenhar muito bem.
De desenho clássico aos seus ecossistemas de cores e formas fantasistas; o que imagina, consegue desenhar. Porque será que uma pessoa que desenha tão bem se sente tão fascinada com o Dall-E ou com o Midjourney? Deveria ela, enquanto artista, resistir à ideia, negar a relação entre o que ela faz e o que um algoritmo pode produzir? Ou deve ela, enquanto criadora, abrir os braços, como faz, a mais uma ferramenta que vai abrir novos campos de expressão artística e capacitar virtuosos e menos virtuosos? E eu ficar feliz por estar mais próximo de poder imprimir o que imagino, para além do texto, em imagens? O meu amigo Ivo Purvis é um dos autores da primeira campanha portuguesa cujas imagens foram produzidas com recurso ao Midjourney – a campanha do Jardim Sonoro. Os músicos aparecem em bizarras composições, que mesclam as suas caras com elementos naturais. Durante o processo de criação e pesquisa, um dos posts que ele viu sobre a matéria, de um criativo de uma agência de LA, exortava as pessoas a parar de partilhar a sua AI Art, porque isso equivalia a partilhar os resultados do Google Search. Será? Estamos perante um velho do restelo, ou perante um criador com direito (e o dever?) de ficar indignado?
Existem pelo menos três grandes dimensões nesta questão: a ética; a legal; a artística. São os resultados da IA arte? São humanos, esses resultados? É o fim da criação ou a democratização desse poder? Estão estas plataformas a ensinar algoritmos com arte sem pagar os devidos direitos? Existem direitos de autor nas imagens produzidas? E são de quem, de quem as promptou ou das plataformas?
Será isto uma limitação à futura educação e produção artística? Ou apenas uma ferramenta digital como qualquer outra?
Vamos fazer uma pausa para quem não está a perceber nada.
Há uma nova realidade no universo artístico e criativo que se chama AI Art Generators.
Há várias plataformas, sendo as mais famosas o Dall-E, o Midjourney e o Stable Diffusion.
E o que são? O algoritmo gera imagens a partir de um prompt – uma linha de texto que descreve uma cena e uma referência visual. Por exemplo: «An astronaut riding a horse in the style of Andy Warhol.»
Como é que o algoritmo faz isso? Foi ensinado a ler estéticas, alimentado com milhões de imagens, que analisa, interpreta e de alguma forma reproduz. Mas não reproduz, ipsis verbis. Utiliza, mistura, remistura.
Sempre condicionado pelo que foi escrito e nunca produzindo o mesmo resultado duas vezes. Ou seja, cada imagem é sempre única (há forma de obter o mesmo resultado, mas para isso é preciso aceder ao código).
Só isso demonstra que a ideia de que a AI ART irá substituir os humanos nas atividades criativas será exagerada. Com os humanos existe aquilo que se pode considerar uma objetividade criativa que não está (ainda) nestas plataformas, pois elas são algo incontroláveis no tipo de imagens que produzem. E parte da beleza está nesse anarquismo produtivo.
Em 2016, a IBM Watson Cognitive Platform criou sozinha um trailer para o filme Morgan, mas para John Smith, um dos diretores do projeto, a AI: «É sobre o aumento da criatividade. No final, o humano realmente é aquele que está a ser criativo.»
A cientista cognitiva Margaret Boden estima que 95 % do que artistas e cientistas profissionais fazem é exploratório, e talvez os outros 5 % sejam criatividade transformacional.
Em julho passado, na Art Review, Tom Whyman admite com algum romantismo: «Usando o DALL-E Mini, podemos receber algo novo, porque o que a máquina produz fica aquém dos dados com os quais foi alimentada… é isto que pode preservar, apesar de programação, a autonomia da arte.»
E é este absurdo – texto dar origem a imagem, o inesperado do resultado, as variáveis infinitas – que parecem estar na base da sedução. E diga-se, da defesa da ferramenta.
É ou não verdade que a evolução tecnológica sempre gerou novas formas de arte? Não foi a fotografia uma «evolução» da pintura? Não foi o Photoshop uma evolução que transforma a fotografia noutro tipo de expressão? Não permite a impressão 3D coisas que nunca foram possíveis antes? Ou a utilização de silicones, resinas, fibras, como o fazem Evan Penny ou Ron Mueck resultados estéticos antes impensáveis?
Não conta o experimentalismo com a apropriação e a variável inesperada como agentes complementares ou geradores de criação?
E quanto à questão do copyright, não é toda a cultura do sample uma cultura de referenciação e recriação? Não o é toda a arte? Não é a apropriação, base, trampolim, motivação, inspiração, tese ou antítese de criação?
Será que toda a arte que utiliza meios mecânicos e ou digitais uma não arte?
Leio na Wired de Agosto que o artista sueco Simon Stålenhag foi alvo de um stunt de um académico de Direito que postou uma série de imagens no Twitter inspiradas no seu estilo com o objetivo de explorar as questões legais e de copyright envolvidas na AI Art.
A sua resposta crítica parece, no entanto, política e prática, não artística.
«Embora pedir emprestado de outros artistas seja uma ‘pedra angular de uma cultura artística viva’, ele não gosta da arte da IA porque…» leva vidas inteiras de trabalho de artistas, sem consentimento, e usa esses dados como ingrediente principal em um novo tipo de pastelaria que pode vender…» Simon admite, no entanto, que estas ferramentas podem ser úteis para explorar novas ideias artísticas.
Não será o que nos separa (ainda?) da IA; a experiência e a consciência ativa, o acaso e o imprevisível, as dinâmicas sociais e as novas formas de pensamento e de expressão; a maior garantia que esta nova irreal realidade pode ser mágica?
Não será como diz a artista Claire Silver? Finalmente, descobrimos uma «câmara para a imaginação»?
-Sobre o Pedro Pires-
É CCO/CEO da Solid Dogma. O que quer dizer que é criativo, mas que também tem outro tipo de responsabilidades enquanto não aparecem outras pessoas que façam melhor o serviço. É o autor da crónica «Observação de baleias» na Revista Gerador.