Com Santa Apolónia como ponto de partida, e a caminhar para a 12.ª edição, o Festival Todos lembra-nos este ano que todos somos passageiros. Num momento em que se debatem tanto os preconceitos relacionados com a interculturalidade, a imigração, ou os refugiados, a iniciativa reafirma, em Santa Engrácia, a sua missão de contribuir para a destruição de guetos associados à imigração. Até 20 de outubro, espetáculos, exposições, visitas guiadas, arte urbana e gastronomia ocupam este bairro na freguesia de São Vicente, numa festa para toda a família, em espaços de encontro e de partilha intercultural.
Em 2009, com a criação do Gabinete Lisboa Encruzilhada de Mundos, Lisboa assumia, através da cultura, uma estratégia de regeneração urbana e reinvenção dos velhos modelos de inclusão social. Nascia, assim, o Todos – Caminhada de Culturas, um projeto para gerar na malha urbana laços de solidariedade, de conhecimento mútuo, de descoberta e de respeito, promovido entre a Academia de Produtores Culturais e a Câmara Municipal de Lisboa.
Por estes dias, a iniciativa regressa a Lisboa, mais concretamente ao bairro de Santa Engrácia. Viajar pelo mundo sem sair de Lisboa vai, este ano, ser possível em duas versões: ao vivo e, devido à pandemia, no digital, através do canal #TODOSemlinha.
O grupo de Teatro O Bando, com diversas intervenções artísticas e o espetáculo Antes do mar, a cantora moçambicana Selma Uamusse, a coreógrafa Olga Ortiz e o espetáculo Antes que matem os elefantes – numa versão especial para o festival –, os Músicos do Tejo e o concerto Do Barraco ao Fado, com Ana Quintans e Ricardo Ribeiro – com o qual se homenageiam os fadistas de Santa Engrácia –, a Orquestra Todos, Jéssica Pina e Tristany, Circus Marcel e o seu espetáculo Home Made, são algumas das propostas artísticas que, cruzadas com outros projetos de dimensão fortemente comunitária, envolvem todos os participantes numa semana de celebração da Lisboa intercultural, através das artes performativas contemporâneas.
Fotografia cedida pela organização via Facebook do Festival Todos
Um festival pensado “com os pés”
Longe de se esgotar num acontecimento pontual, o Festival Todos é o culminar de um largo trabalho de terreno realizado, primeiro, junto da comunidade. “É uma boa metodologia para quem procura projetos com a comunidade e muito centrados nas pessoas que nos acompanham.
Descobrir as diferentes velocidades que, no mesmo espaço e no mesmo tempo, encontramos junto das pessoas. Pensar com os pés é isto”, conta Miguel Abreu, diretor artístico do festival. Durante vários meses, bate-se às portas, fala-se com residentes, comerciantes e trabalhadores, numa dinâmica sempre movida pela missão da interculturalidade: “é com o olhar para essa missão que vamos percorrer o território, também disponíveis para encontrar coisas que, muitas vezes, nem nos passaria pela cabeça.”
Primeiro, conhecem-se as pessoas, depois, constroem-se as narrativas para o local e, só atrás dessa narrativa, se procuram conteúdos artísticos. “Sabemos que vamos trabalhar com artistas e que os artistas serão aqui reagentes rápidos de juntar a determinadas comunidades que encontremos, determinadas tipologias de pessoas, energias, questões, provocações, o que leva a conteúdos, que podem ser os conteúdos gerados de propósito a partir desse encontro e uma produção nova, como podem ser projetos que já estão desenvolvidos e pensados. O artista tal, o projeto tal, encaixa-se aqui. Faz sentido e tem essa qualidade de honestidade.”
Não há uma programação pré-definida, há um pensamento pré-definido. A ambição não é criar o melhor espetáculo do mundo, mas “aquele que tem as qualidades que vão ao encontro das diferentes pessoas, ou das diferentes velocidades das diferentes pessoas que encontramos num determinado território.”
Fotografias cedidas pela organização via Facebook do Festival Todos
A dinâmica de construção do festival assenta fortemente nessa plataforma de encontros que são estabelecidos, através da intenção de encontrar pessoas, sempre movida por projetos artísticos. “Quem vai à procura de pessoas, normalmente, são artistas, que é uma relação diferente daquela que estabelece uma assistente social ou técnico de saúde. Isto nasce muito de uma forma informal, é muito empático, muito afetivo. Pensamos com os pés assim, há procura desses afetos, dessas cumplicidades, dessas facilidades que alguém vai criando abrindo a porta e levando-nos a outras pessoas. E a partir dessa massa humana avaliamos os tais graus de desenvolvimento.”
Inês mora em Santa Engrácia há mais de dez anos. Fala-nos de um bairro que é uma espécie de aldeia, com uma população envelhecida e com pouco movimento, comércio e serviços. “Não acontecem muitas coisas, não há muita iniciativa, é uma zona um bocadinho esquecida. Muita gente, em Lisboa, não conhece sequer Santa Engrácia. Se calhar vão começar a conhecê-la, agora com o festival”, refere.
Como voluntária, e bastante ligada ao projeto Bairro-Abrigo, Inês ajudou a estabelecer a ponte entre os moradores, a organização e os artistas do festival. A notícia de que o Todos aconteceria em Santa Engrácia chegou a uma população que já conheceu tempos mais dinâmicos no bairro. “O que as pessoas dizem, as pessoas mais velhas que vivem há muito tempo aqui, é que há umas décadas o bairro tinha muita vida, e isso perdeu-se completamente. É mesmo uma zona muito muito calma, veem-se poucas pessoas na rua. Então, as pessoas falam muito desses tempos, relembram esses tempos quando falamos com eles e ficam contentes por voltar a haver um bocadinho mais de vida e de pessoas”, conta.
Nos bairros onde se insere o festival Todos acaba por funcionar também como uma plataforma de avizinhamento. “Mesmo eu tenho vindo a conhecer muita gente que não fazia ideia que vivia sequer ali no bairro, gente até nova, gente interessante, ligada à arte e coisas assim com quem, francamente, se não fosse pelo Todos, não me cruzava, porque quando queremos ir a algum lado acabamos por sair do bairro”, termina.
O Todos quer pôr-nos a refletir sobre a nossa condição num determinado espaço
Este ano, Santa Apolónia é o ponto de partida para a descoberta do bairro de Santa Engrácia. Para Miguel Abreu, “Santa Apolónia ajuda muito as pessoas a refletir sobre a sua condição de passageiro, passageiros na vida, passageiros no mundo, porque é para muitos dos lisboetas, para muitos dos imigrantes e para muitos dos refugiados, o espaço onde eles ganham esse estatuto de passageiros, porque passam lá sempre com uma intenção.”
Fotografias cedidas pela organização via Facebook do Festival Todos
O diretor artístico relembra-nos os portugueses que imigravam para França e que dali saiam de comboio, separando-se da família, sem saber quando voltavam, mas com a esperança de conseguirem uma vida melhor, bem como os refugiados da Bobadela, que agora ali chegam quando vem a Lisboa de comboio, para além de muitos imigrantes, que chegam a Santa Apolónia, ora de metro, ora de comboio para trabalhar naquela zona. “Há este convite à perceção e ao pensamento da ideia do passageiro e que a passagem nos leva sempre para coisas boas ou para coisas más. Temos de estar preparados para a surpresa. Há surpresas boas, há surpresas más, mas pior de tudo é não passar, é ficar parado”, conclui.
Texto de Flávia Brito
Fotografia de João Barrinha© via Facebook do Festival Todos
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