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Paula Cardoso: “A diversidade nas redações não existe”

Esta semana, partilhamos contigo a conversa que tivemos com a Paula Cardoso, jornalista e fundadora…

Texto de Andreia Monteiro

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Esta semana, partilhamos contigo a conversa que tivemos com a Paula Cardoso, jornalista e fundadora do Afrolink. Esta entrevista, conduzida no dia 15 de abril de 2021, foi uma das que fizemos aquando da investigação que deu corpo à última edição da Revista Gerador (maio) para explorar a problemática do jornalismo lento.

Paula Cardoso, natural de Moçambique, licenciou-se em Relações Internacionais e tem 17 anos de experiência em jornalismo. É a fundadora da comunidade digital Afrolink, que visibiliza profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal ou com ligações ao país. É também autora da série de livros infantis Força Africana, projetos desenvolvidos para promover uma maior representatividade negra na sociedade portuguesa. Com o mesmo propósito, faz parte da equipa do talk-show online O Lado Negro da Força, e apresenta a segunda temporada do Black Excellence Talk Series, formato transmitido na RTP África. Integra ainda o Fórum dos Cidadãos, que visa contribuir para revigorar a democracia portuguesa, bem como o programa de mentoria HeforSheLisboa.

OAfrolink, lançado em setembro de 2019 como um grupo privado de Facebook, é hoje uma plataforma que ganhou um site no qual se juntam profissionais africanos e afrodescendentes residentes em Portugal, ou com ligação ao país, com o propósito de partilhar experiências, valorizar competências, criar alianças, divulgar e suportar negócios. Assim, podem encontrar-se conteúdos afrocentrados e outros que dão a conhecer estórias de portugueses negros e de africanos residentes em Portugal, de forma a contribuir para a construção de novas narrativas sobre a comunidade africana e afrodescendente no país. É ainda possível encontrar serviços de consultoria, parcerias ou negócios.

Esta é a oitava entrevista da rubrica Entrevistas com Jornalistas, que se debruça sobre os grandes desafios que a profissão continua a enfrentar.

Gerador (G.) — Como defines o conceito de jornalismo lento?

Paula Cardoso (P. C.) — Para mim, o conceito de jornalismo lento, presente numa série de plataformas que têm surgido, é jornalismo, portanto, trazer esta questão do lento, e esta questão do contraponto, dá uma ideia de que existe um jornalismo, e depois há uma outra forma que é diferente, e que é mais digerida, mais refletida. Acho que falta esse espaço nas redações hoje em dia, e isso está a desvirtuar aquele que deveria ser o papel do jornalismo, do jornalista e dos órgãos de comunicação. Esta pressão para publicar, esta urgência que se criou... Não só [na produção], porque estamos sempre a consumir informação e, depois, não paramos para refletir sobre aquilo que estamos a receber, para pensar se aquilo faz sentido.

Esta questão da leitura crítica daquilo que nos é oferecido está a desaparecer, no meu ponto de vista. Estamos a tornar-nos leitores menos exigentes e reagimos muito. A questão desta toxicidade das redes sociais, para mim, parte desta rapidez. Antes de eu sequer ler um lead, só pelo título, já vejo uma série de pessoas a reagir, portanto isto traz aqui uma velocidade que acho ser contranatura. É contra aquilo que seria esperado do jornalismo. Dar uma notícia em tempo útil não deve demitir os jornalistas e o jornalismo de uma série de responsabilidades e a responsabilidade, aqui, tem de estar com os factos. Portanto, tem de existir uma verificação e, para mim, tudo o que não respeite essa lógica, essa preocupação, sai daquilo que é o jornalismo ou a missão que associo ao jornalismo. Esta questão do ser lento, ser rápido... Para mim, existe jornalismo. Ponto. Estes conceitos que vão aparecendo, não me fazem muito sentido, confesso.

Em vez de estarmos a tentar arranjar conceitos diferentes para traduzir esta urgências, devíamos estar a discutir este consumo frenético de informação, que gera esta oferta, também frenética, e não estar aqui a arranjar conceitos que parece que desviam a discussão daquilo que é mais relevante. E o mais relevante, para mim, é a forma como se produz informação hoje em dia, que é uma forma na qual não me revejo: antes de confirmares, seja o que for, já estás a dar e, depois, se for para desmentir, desmentes. “Não faz mal, o que importa é dar.” Nesta urgência de dar, há situações que são inacreditáveis. Isto para dizer que eu percebo quando se quer trazer essa terminologia de jornalismo lento, aquilo que está subjacente, mas acho que devíamos falar de jornalismo e de como esta procura do relato dos factos está a ficar em segundo plano e se está a ceder a uma procura frenética de informação, à velocidade das redes sociais, que não deve ser a velocidade do jornalismo.

G. — Como relacionas essa velocidade com a forma como, por exemplo, vemos os títulos de notícias a serem formulados?

P. C. — O que sinto, a partir desta velocidade de que estávamos a falar, é que os próprios títulos são feitos já em função da busca pelo clique. Muitas das vezes, lemos o título e, depois, o conteúdo da notícia não sustenta aquilo que é ali afirmado. Há uma série de incongruências e, pelos vistos, ninguém está preocupado. E a língua portuguesa é sacrificada no meio disso tudo, porque há incorreções grosseiras. Uma coisa são as gralhas, que acontecem, e só quem faz é que sabe que elas acontecem diariamente, portanto só que só quem faz é que erra, mas acho que esta pressa, esta urgência de dar sem digerir [torna tudo] superficial.

Estamos a receber cada vez mais informação, no sentido de existirem múltiplas fontes e múltiplas plataformas, mas estamos cada vez mais desinformados. Pode parecer paradoxal, mas tem que ver com a qualidade da informação, que é cada vez menor. Ou seja, quando quero mesmo saber alguma coisa, tenho de fazer as minhas pesquisas. Neste momento, quando procuro notícias, é no sentido de saber o que está a ser discutido, de ter uma pauta de atualidade e não tanto no sentido de me informar. Isto é muito perverso, ter esta consciência. Perceber que tenho de fazer o meu trabalho de casa, enquanto leitora, para me informar sobre determinados assuntos, dá-me uma consciência bastante real, palpável, concreta, de que estamos cada vez mais desinformados, porque, se não fizer esse caminho, não vou saber do que estamos a falar.

G. — De que forma é que esta desinformação afeta também o tratamento de temas sobre os quais o Afrolink se debruça?

P. C. — Ao nível da promoção de uma maior representatividade negra, as questões da diversidade étnica ou racial, quando observamos a forma como estas questões são trazidas para a cobertura mediática, como são acompanhadas, existe uma superficialidade que chega a ser aflitiva. Obviamente, há exceções a esta prática. Por exemplo, quando há um protesto, quando há uma manifestação antirracista, qual é, normalmente, a cobertura? Quando é na televisão, vão para lá, ouvem umas pessoas que estão na manifestação, fazem uns planos, aquilo passa no noticiário e passou. Há uma manifestação cinco meses depois e é exatamente a mesma coisa. Na imprensa escrita, não [se] foge muito desta lógica. Há uma manifestação, fazem a cobertura da manifestação, e não há uma preocupação em [perceber] o que está por detrás. [Uma intenção de] “Bora lá fazer um trabalho que explique às pessoas o que está em causa”, “vamos informar”, “vamos aprofundar”, “vamos dar tempo”. Aqui, claro, entra a questão do tempo.

G. — A questão do tempo, que também revela alguma precariedade na profissão de jornalista?

P. C. — As redações estão esvaziadas de jornalistas. Aliás, a Cofina anunciou mais uma leva de despedimentos. Portanto, nos últimos anos, temos assistido a esta debandada de despedimentos coletivos atrás de despedimentos coletivos. Nesta horda de jornalistas que têm saído, [o alvo é] sobretudo os jornalistas seniores. Portanto, pessoas com grande experiência que são uma mais valia para as redações. Saem, porque são mais caros e as decisões acabam por se tomar sempre nesta base: quem custa mais, sai. Não se contabiliza o retorno que essa pessoa traz. Até pensando na própria precarização da profissão, há pessoas que, mesmo estando empregadas, estão à procura de alternativas e acabam por encontrá-las. Saem e não regressam. O jornalismo está a ser feito sobretudo por pessoas muito novas. Esta experiência está a desaparecer. Os jornalistas experientes são cada vez mais raros e os que existem, muitas vezes, acabam por publicar menos. Depois, há esta coisa da própria progressão na carreira — começam a escrever mais opinião, são editores, assumem outro tipo de responsabilidades que os retiram do terreno, daquela cobertura noticiosa diária ou com alguma periodicidade. Porque, a partir do [momento em que surgiu] o online, criou-se uma dinâmica de trabalho diário, que retira espaço.

Lembro-me, quando trabalhava para redações, por conta de outrem, de existir essa questão do prazo, que se tornou irrealista na maior parte das situações. E, depois, o que acontece? Mesmo que o jornalista diga às chefias — “eu preciso de mais tempo para fazer isto, ainda preciso de ouvir esta pessoa e esta pessoa” —, o que normalmente dizem é — depois há esta negociação — “então o que é que tens?” Dizes: “só tenho isto e isto e isto”, [e eles respondem] — “avança com isso”. E com isto perde-se, obviamente, este tal espaço de aprofundar os temas, de trazer para além daquilo que é superficial. E porque é que o jornalismo entrou neste ritmo? Para mim, é sobre isso que interessa refletir. Porque é que as redações estão a trabalhar neste sufoco? Será que esta coisa de “é isso que os leitores querem, foi esta evolução do mercado e nós temos de acompanhar”, é mesmo o que os leitores querem?

Claro que há a notícia pura e dura, aquela coisa da hard news. A notícia pura e dura tem de ser dada, e acho que esse espaço não está, de maneira nenhuma, comprometido com a necessidade de termos outro tipo de produtos. O problema, para mim, é um desequilíbrio, em que retiramos todo o espaço daquilo que merece digestão, aprofundamento, múltiplas fontes e fontes diversas. Esse espaço deixou de existir. Todas as publicações da imprensa escrita perderam páginas, por causa da questão da publicidade. Então, se encolhes o número de páginas, obviamente também vais encolher o espaço que dedicas a cada secção e, naturalmente, a cada tema.

Ainda para mais, ao fim de semana, os [meios] online são muito alimentados a partir da Lusa, portanto, é tudo igual. Vemos a mesma notícia replicada até à náusea. Quem está no meio, quem trabalha em jornalismo e em produção de conteúdos, acha que as pessoas diferenciam as marcas, [mas é] mentira. As pessoas obviamente têm referências daquilo que é a imprensa sensacionalista, e de quais é que são os órgãos que estão mais à direita e essas coisas, mas, se nós formos perguntar a qualquer pessoa, mesmo as pessoas mais informadas, qual foi a última notícia que leu e onde a leu, provavelmente vai encolher os ombros e não vai saber dizer onde leu.

 G. — Se calhar, vai dizer que foi no Facebook.

P. C. — Exatamente. E o problema desta pressa está nesta mesmice daquilo que é produzido. É tudo igual.

Por acaso é engraçado porque, os media entraram de tal forma nesta lógica do imediatismo que, depois, começaram a criar extensões de marca, em que existe esse tal jornalismo lento. Aí, já se vê essa preocupação de pensar os temas, de não estarmos preocupados com “isto tem de sair amanhã”, “isto tem de estar pronto no online daqui a 30 minutos”. Não existe essa pressão. E o que é que acontece? A leitura é prazerosa, é isso que normalmente sinto. Não há tantas gralhas, também. [Também é importante] a questão da revisão, em que existe um trabalho de revisão mais cuidado, ou que existe trabalho de revisão, porque hoje em dia já estamos nesse ponto, em que já não se revê nada.

G. — Na tua perspetiva, existe poucas oportunidades para, dentro de grandes redações, jornalistas se dedicarem a investigações mais demoradas?

P. C. — Dentro das redações, dos órgãos de comunicação social, são raríssimos os jornalistas que têm a possibilidade de pensar os trabalhos e de demorar na sua execução, porque tem de ser sempre tudo feito para ontem e, quando assim é, não é possível entregar um trabalho que preencha, que faça a diferença.

Se tenho duas horas para fazer [um artigo], não vou conseguir contactar nenhuma fonte naquele período, mais ainda se estivermos a lidar com fontes institucionais. Porque mesmo que tenha o contacto de um ministro, por exemplo, bem posso falar com o assessor, mas ele também tem de falar com o ministro. Isto não é algo que nós consigamos do pé para a mão. O que me incomoda é que se tenha instituído uma prática que é a de ignorar que há um prazo razoável para se pedir às pessoas para responderem. E faz-se uma coisa ainda pior, que é não dar a possibilidade às pessoas de responder, porque é mais polémico dizer que fulano não quis responder, ou que não respondeu em tempo útil, sendo que nunca se diz que tempo é este. Acho que, na prática, devia dizer, por exemplo, “o Afrolink contactou o Ministério no dia 15 de abril, hoje estamos a 15 de maio e ainda não houve resposta”. E as pessoas percebem que [passou] um mês. Agora, não é razoável estar a contactar, por exemplo, um ministério às 15h de uma segunda feira, para fechar às 15h de terça feira e achar que aquele ministério está ali para me servir. Esta prática que se generalizou, incomoda-me.

Tudo é muito descartável. Nada marca, aquilo mastiga e deita fora e, neste processo, criamos a ilusão de que estamos mais informados, mas estamos cada vez mais desinformados. Acho que é importante procurar outros espaços que trazem outras leituras. Por exemplo, estou a lembrar-me do Fumaça e outros projetos que têm surgido como a Divergente, que trazem temas importantes, numa perspetiva que desapareceu da imprensa, em geral. Uma perspetiva que costumo chamar humanizada, e, se calhar, em vez de jornalismo lento, gosto da questão da humanização, porque acho que o jornalismo se foi desumanizando, portanto falta vida nas histórias. A forma como eu me relaciono com a política, com a economia, com qualquer área tem que ver com o impacto que aquilo tem na minha vida e na vida das pessoas que me rodeiam.

G. — Portanto, a referência ao jornalismo lento, ou surgimento de projetos como o Afrolink, Fumaça, Divergente, entre outros, é sintomático das más práticas em que o jornalismo caiu. Qual é a função desta humanidade tanto no jornalismo como na sociedade? Porque o jornalismo acaba por ser um pilar da democracia, portanto cumpre uma função. Quando tiramos essa parte, que devia ser primordial, o que estamos realmente a retirar?

P. C. — O que é que os produtos, as diferentes publicações que estão no mercado me oferecem? Esta é uma pergunta que faço quando estamos a analisar a crise dos media e esta questão do papel ou digital. Questiono-me sobre o que me vai levar a pagar dois euros que sejam, se, depois, pego naquilo e não tenho nada que eu considere que seja diferenciador. O que é retiro disto? Provavelmente, não retiro nada e, por isso, não compro. Porque mesmo estas reflexões que fui fazendo, como esta falta do fator humano nas publicações, [acontece] porque se deixou de se fazer reportagem.

Mais uma vez: porque é que a reportagem desapareceu? Porque leva tempo, normalmente implica deslocação. Por norma, não é só uma deslocação, são várias. Há ritmos muito próprios das reportagens. Mas isto não é feito. Então o que é que fica? O que sobra? Acho que sobra muito pouco ou nada, sinceramente. E é esse muito pouco ou nada que me leva a achar que não existe um diferencial em ir a uma banca e comprar um jornal, em papel, ou o que seja. Aí é que acho que falta uma estratégia, falta uma visão daquilo que se pretende e de qual é que deve ser o papel dos media, dos órgãos de comunicação.

A imprensa escrita de nicho acaba por criar, se calhar, mais espaço, porque, de facto, aquela publicação de todos os dias ou de todas as semanas não entra. Os media, a determinada altura, ficaram reféns dos múltiplos interesses que estão instalados, dos lobbies, sejam eles quais forem. É uma questão de influências. Há lobbies com muito poder nos media e a existência de projetos diferenciados, de projetos fora do mainstream, permitem, de facto, romper com estas lógicas. Permitem trazer histórias, que é uma coisa muito difícil de trazer para o jornalismo. Histórias, apenas. Dizeres que a vida daquela pessoa vale por si e que deve estar ali. É muito difícil teres isto, hoje em dia. Acho que um dos papéis dos órgãos de comunicação é formar, é preciso formar a opinião pública. É preciso mostrar o que é que está em causa, quando estamos a trazer determinados temas.

G. — A composição das redações, de uma forma geral, continua a ser pouco diversa. Como achas que isto afeta, também, o jornalismo em Portugal, e de que forma se pode combater isto?

P. C. — A diversidade, em todas as áreas profissionais, é superimportante. Não só porque considero que o resultado do trabalho é mais rico, mas também porque o imaginário que nós criamos da sociedade é muito construído a partir dos órgãos de comunicação social. Por isso acho que tem, de facto, um papel, em termos de formar consciências, mentalidades que é muito relevante e a comunicação social não se deve demitir desse papel. Acho que a formação é muito importante, além de se mobilizar ou se trabalhar para essa diversidade, porque a diversidade nas redações não existe. Estive em duas redações em Portugal e, em ambas, era a única jornalista negra. No Sol havia também um fotojornalista e, a determinada altura, tive uma colega indiana, com mais melanina, mas negra, afrodescendente ou africana, sempre fui a única.

E porque é que isto acontece? Começa no acesso. Estive em redações de referência, pelas quais foram passando estagiários e nem nos estagiários houve esta diversidade. Então, começo a questionar-me com que universidades é que as redações têm protocolos. Começa também por aí, com estas seleções, estas exclusões que vão acontecendo. Se calhar, a maior parte dos órgãos de comunicação social prefere ter protocolos com a Católica, vamos imaginar, o que é logo uma coisa excludente para a maioria das pessoas. Esta porta de acesso é muito estreita, porque quem é que está à frente dos projetos? São homens brancos, hétero, de um contexto privilegiado, na maior parte das circunstâncias, e que, naturalmente, o seu círculo relacional reflete estas categorias todas. É como em tudo. Quando olhamos à nossa volta e vemos o nosso círculo ou os círculos nos quais nos movimentamos, eles têm um padrão. Mesmo que nós nos multipliquemos nas nossas deambulações sociais, em cada uma delas existe um padrão, uma referência de pessoas. E dentro dessa referência de pessoas, nas redações, não existe qualquer diversidade nem espaço para se criar essa diferenciação, porque quando existe uma possibilidade de meter alguém, a lógica é sempre — conheces alguém?

Lembro-me perfeitamente de que, quase todos os estagiários que acompanhei, entraram por cunha. Portanto, até nos estagiários, mesmo não sendo remunerados, o ter a oportunidade de estar num contexto de redação, está completamente condicionado. Se não tenho um contacto na redação x, y, z, vou mandar currículos. Se a minha universidade não se mexe o suficiente para conseguir uma colocação, vou ter de me mexer. Mexo-me, mando os currículos e não sou chamada. Então, como é que vou ter uma oportunidade?

Ainda recentemente estive a falar com uma miúda que se licenciou em 2017 e nunca teve uma oportunidade de estagiar. Se esta miúda nunca estagiou, como é que podemos falar sequer em meritocracia? Sou completamente contra o argumento da meritocracia. Já acreditei nisso e, depois, percebi quão falacioso é. Não dá para falar em meritocracia quando partimos de circunstâncias tão desiguais para a vida, e é preciso reconhecer isso.

A mudança só poderá acontecer quando, nas redações, quem tem poder de decisão, olhar em volta, reconhecer que aquela distribuição de pessoas não é minimamente representativa da sociedade na qual nós estamos e que é necessário, não só reconhecer que não é representativa, mas perceber que é necessário que seja, porque há pessoas que reconhecem que não existe essa diversidade mas que, no momento imediatamente a seguir, dizem que é porque não há pessoas.

A questão do Afrolink também vem muito nessa linha. É para dizer que [elas] estão aqui, digam-me agora que não há! Estão nestes quadros tantos profissionais das mais variadas áreas, porque é que eles não têm espaço nestes meios? Porque é que não têm voz? Porque é que não têm visibilidade? Porque é que, quando eu ligo a televisão, seja o programa da manhã, da tarde ou da noite, quando há convidados, são sempre brancos, de uma classe média? Porque é que isto acontece sucessivamente?

Porque existe, obviamente, uma ideia de que aquilo é Portugal, de que aqueles é que são os portugueses, e de que a sociedade se restringe àquilo. Há esta lógica de que tudo o que tenha mais melanina não é português. Então, não me incomoda que, ao ligar a televisão, ao folhear uma revista, um jornal, só veja pessoas brancas e maioritariamente homens, não é? É inacreditável que nós observemos os espaços de opinião e que percebamos estas ausências. A questão é que, quando se escolhe continuar tem de se perceber que se está a escolher discriminar. É reconhecer que todos temos direito às mesmas oportunidades e permitir que isso aconteça, em vez de estar sempre a fechar o acesso.

Esta questão dos códigos de acesso é muito importante e, se eu não tenho como chegar aos lugares, se não tenho ninguém que me possa fazer esse caminho, vou continuar presa àquele que é o meu universo de partida e não há a mínima possibilidade. E mesmo para ter uma oportunidade, vou ter de fazer 500 vezes mais do que o outro. Isto não pode ser um modelo de sociedade saudável, inclusiva, que nós queremos.

G. — Esta falta de diversidade nas redações afeta também os ângulos escolhidos para as histórias e as próprias histórias que aparecem nos media.

P. C. — Claro. São os temas que escolhes, começa por aí, a linguagem que utilizas quando estás a escrever, o ângulo que utilizas, conforme disseste. Portanto, há uma série de abordagens tendenciosas que se observam e, muitas delas, provavelmente inconscientes, mas estão lá, com todo o desconhecimento que possa existir. Agora, claro, se nós tivermos pessoas diversas numa redação, dá para fazer essa verificação, dá para existir esse escrutínio, porque se vejo alguma coisa que não faz sentido nenhum, vou ser a primeira pessoa a dizer — “desculpem, mas isto é racista”.

É como a questão do género, em que as mulheres, nas redações, começaram a ver que “isto é sexista, isto é não sei quê” e as coisas vão mudando a partir desses alertas que se vão fazendo de parte a parte, dessa educação, desses diálogos que vão surgindo. Se pessoas diversas não têm a possibilidade, sequer, de entrar no diálogo, esta mudança não acontece. E a questão da linguagem é muito importante. Desconstruir, descolonizar uma série de conceitos, explicar de forma a que as pessoas possam entender e não criar uma narrativa que acaba por acentuar preconceitos, o que acontece muitas vezes.

Acho muito interessante observar a cobertura noticiosa, em contexto de pandemia, sobre os ajuntamentos e sobre como os jovens do centro são uns irresponsáveis e egoístas que não pensam nos outros, e como os jovens das periferias são os marginais que, mais uma vez, não estão a cumprir, que mais uma vez têm de ser reprimidos. Depois, lá está, isto não é trazido para o espaço de debate noticioso e de leitura mediática. A narrativa é esta, e as pessoas, como associam esta narrativa a determinados grupos, fazem logo as suas leituras, é automático. Portanto, os media têm uma responsabilidade tremenda nestes preconceitos que acabamos por internalizar e nas discriminações que são diárias. Como tal, têm de reconhecer que é importante desconstruir esses estereótipos, trazer outras narrativas e que isto só é possível com essa diversificação de fontes, de equipas e de aposta nesta formação para a diferença a todos os níveis, que não existe e tem de existir.

G. — E quando não é a história do bandido – vamos generalizar assim — é a história do herói, que vem não sei de onde, e é uma exceção, uma história de superação.

P. C. — Por exemplo, na questão do desporto, há, de facto, muitos atletas negros. Então no futebol, olhamos para as equipas e vemos vários atletas negros. A questão que devemos refletir aqui é: que espaço é dado a estes atletas negros para falharem? Quando um atleta negro não cumpre com aquilo que é esperado, quando, por algum motivo, está um pouco abaixo daquele desempenho máximo [o que acontece?] Depois, há esta questão: ao negro só é permitido que tenha um desempenho máximo, portanto, se ele tiver o desempenho máximo é tolerado, se não, entra logo para aquela lista dos dispensáveis.

A um outro nível, ainda no futebol, observemos quantos destes atletas negros têm a possibilidade de se tornar treinadores. Quando estamos a falar do pensar a estratégia do jogo, em liderança, comando, o branco é que prevalece.

Vejamos o caso do Éder. Marca o golo que dá o Campeonato da Europa a Portugal. O que é que é feito do Éder? Que cobertura noticiosa é que existiu? Até a própria cobertura noticiosa acaba por ir ao encontro dessa narrativa do coitadinho que esteve institucionalizado e, depois, graças ao salvador branco...porque teve de se meter a coach, que todos os treinadores têm e todos os clubes têm hoje em dia. Não é só o jogador que vem da instituição que a tem, todos têm. Todos os atletas, hoje em dia, de alta competição têm estas figuras que estão ali a puxar por eles, e que trabalham na questão mental e tudo mais. Isso não é uma exceção do Éder. Esta narrativa do “foi a fulana tal que fez do Éder o atleta que ele é”, sendo exatamente a narrativa do salvador branco, porque o Éder, sozinho, com seu potencial, não poderia [chegar lá]. Temos de encontrar aqui qualquer coisa para infantilizar o negro, que é o costume. Esta infantilização é muito recorrente na forma como os corpos negros são tratados, assim como a criminalização, desumanização, entre outras.

A pessoa negra, em Portugal, não tem o direito a ser comum, a ser mediana. Ou é excecional e é apresentada como uma exceção que confirma que não há racismo neste país, ou, então, é escolhida, porque não conseguiu ser excecional. E, depois, quando se tenta criar espaços, a forma que se encontra para tal é sempre dentro de caixinhas.

É sobre estas coisas que devemos refletir. Esta coisa de achar que acontece a toda a gente, não é verdade, e é importante que se reflita sobre isso. Dentro do jornalismo só é possível fazer essa reflexão com tempo, não com este pseudojornalismo que prevalece hoje em dia.

A questão é que o jornalismo está reduzido a produção de conteúdos, na maior parte das situações. É preciso dar coisas. As pessoas querem coisas, não importa o que se dê, é preciso é dar. Estou, obviamente, a generalizar, mas estou a fazê-lo tendo em conta a prática que considero dominante. Não é por acaso que têm surgido uma série de projetos. E ainda vão surgir mais, porque é preciso, porque há trabalho que não é possível fazer numa redação mainstream hoje em dia. E essa consciência é a de que — sendo os projetos mais ou menos identitários — nas redações, não é possível fazer jornalismo, o que [leva a que] comecem a acontecer todos estes movimentos.

G. — Há pouco, falámos sobre as redes sociais e a forma como elas se relacionam com o jornalismo. Quais achas serem as maiores vantagens e os maiores desafios nesta relação?

P. C. — Primeiro, a dinamização de redes sociais, para mim, não devia ser confundida com o exercício do jornalismo. E, desde o início, essas fronteiras não foram estabelecidas. Então, é muito difícil quando começas a trabalhar numa área e não percebes que não podes entregar produtos noticiosos a um mero gestor de redes. Há preocupações que têm que ver com a credibilidade da informação.

Em alguns momentos, quando tens essa urgência de ir para as redes sociais a qualquer custo e de qualquer forma, isso fica comprometido. Portanto, às tantas parece que tens um produto, uma marca, e que, depois, vais para as redes sociais e parece outra marca. Porque não existe essa preocupação, de diferenciar uma coisa da outra.

Qual poderá ser a vantagem das redes sociais? Obviamente, há um efeito multiplicador do alcance das notícias. As redes sociais permitem isso, mas também têm muitos reversos da medalha. Um deles é a toxicidade associada. As caixas de comentários são uma coisa terrível de se acompanhar. Há momentos em que acho que deviam ser encerradas para a eternidade. Mas, lá está, o que sinto é que há muitas notícias que são feitas para as redes sociais. A forma como as notícias são tituladas é para as redes sociais. Esta promiscuidade desvirtuou as práticas [jornalísticas], toda esta conversa que estamos a ter sobre os ritmos de produção, de publicação, para mim, foram impostos pelas redes sociais.

As pessoas não conseguem sequer perceber, fazer uma distinção, entre opinião e notícia, começa por aí. Isto é uma coisa que é evidente a partir da leitura das redes sociais. Porque é que isto acontece? Porque, de facto, não se estabeleceu fronteiras e acho que é preciso que se estabeleça. Hoje em dia, acho que é difícil recuar, porque já se abriu essa porta, e o dano está feito. Podemos tentar controlar danos, mas está feito.

O jornalismo vergou-se a este ritmo das redes e a esta a lógica do comentário, das reações, então ficou muito refém disso. Isso nota-se nos títulos e na precipitação da divulgação de algumas coisas, em que depois tem de se recuar.

Claro que há aqui um universo que é o de produzir conteúdos com o aspeto de notícias, e as pessoas caem nessa cantiga e pensam que aquilo é uma notícia, quando não é (fake news). Existe essa prática e, depois, existe também este lado que é o de produzir uma série de informações, que, não são falsas, porque nós até já ouvimos falar sobre aquilo, mas que, depois, há ali uma manipulação muito subtil, mas que faz toda a diferença na leitura que nós fazemos daquele evento. E as redes sociais estão cheias disto.

E, o que sinto, pelo menos em Portugal, é que isto está a acontecer sem que exista qualquer preocupação de monitorização da parte dos órgãos de comunicação social destes fenómenos. Portanto, o governo já diz que está a trabalhar no sentido de fazer uma monitorização do discurso de ódio nas plataformas online e tudo mais. Nos jornais não vejo essa preocupação. Vejo uma preocupação de polarizar [através de] uma série de notícias que são feitas para as redes sociais. Isso percebe-se claramente, são feitas para as redes sociais para criar reações, para haver algum barulho à volta do assunto. Isto é tudo aquilo que não deve ser o jornalismo.

As redes sociais, claro que era espetacular que fossem aproveitadas para o bem — no sentido de pedagogia, de chegar a mais pessoas, com mensagens que fazem a diferença para a discussão das temáticas —, mas sinto que apenas criam ruído, e, muitas das vezes, com a manipulação de informação, distorção e desinformação.

G. — Achas que cabe ao jornalismo combater o problema da desinformação?

P. C. — Acho que não. Gosto muito de tentar perceber as razões, o que leva as pessoas a acreditar em determinadas [coisas], porque se não existisse tanto lixo noticioso, se houvesse uma forma de fazer, credível e clara para todos, seria muito difícil estas fake news deliberadas — que são produzidas por sites e por interesses que não os órgãos de comunicação – não serem identificadas por todos. Mas como são publicadas tantas coisas escabrosas e inaceitáveis, muitas delas à luz da deontologia e daquelas que são as regras profissionais, a bitola está tão lá em baixo, que, obviamente, facilmente as pessoas acreditam nestas coisas que vão surgindo.

Agora, qual é o papel dos jornalistas? Acho que, se os jornalistas fizerem o seu papel, sem estarem preocupados com essas coisas que vão acontecendo à sua volta, o caminho vai-se fazendo. Não acredito em caminhos de não retorno, acho que é sempre possível recuperar, mas é muito mais difícil. Se é um problema, o que nos compete, enquanto veículos de comunicação, é fazer o melhor trabalho possível, e sempre que percebamos que existem campanhas, em determinado sentido, para manipular a opinião pública, etc., estarmos alerta e vigilantes.

G. — Há pouco também falavas da literacia mediática, em relação ao facto de uma pessoa poder não saber, à partida, distinguir um artigo de opinião de uma notícia. Neste quadro, incluiria também a literacia digital, porque a maior parte das notícias, hoje, chega-nos digitalmente, e nem todas as pessoas sabem identificar a fonte da notícia, ou há quanto tempo é que aquela notícia foi publicada, gerando também desinformação, porque se a notícia era verdadeira há dois anos, lida como atual, hoje, já não o é.

P. C. — Exatamente, estás a trazer um excelente ponto. Essa também é uma dimensão muito relevante do problema. Porque quando estamos neste meio, a primeira coisa que fazemos é ver a data. A maior parte das pessoas, percebo que não vê, porque já aconteceu pessoas partilharem coisas comigo, em privado, e depois vou alertar, “mas olha que isto é de 2014”. Depois, cria-se aqui uma nova realidade a partir daquela notícia, que, entretanto, viralizou. E, sim, é necessário que nós percebamos que existem estas armadilhas.

Não estamos habituados a digerir a informação que recebemos. Da mesma forma que os media têm esta obsessão de serem os primeiros a dar, depois, no nosso espaço de relações, existe também aquelas pessoas que têm a urgência de serem as primeiras a partilhar coisas. É ridículo e nem sempre consigo perceber de onde isto vem... Como é que se vai partilhar algo sem se verificar antes?

G. — Fala-me sobre o Afrolink. O que tentas trazer para esta plataforma? O que tem sido o vosso trabalho diário e o que podemos lá encontrar?

P. C. — Inicialmente, quando criei o Afrolink, estava mais focada em apresentar perfis de uma forma muito resumida, como se fossem telegramas. Depois, a ideia foi testada em grupo fechado, no Facebook, e percebi que a partilha de histórias das pessoas que fazem parte da comunidade tinha um acolhimento muito grande e um efeito de contágio positivo, poderoso. Portanto, identifiquei logo isto, que as pessoas se reviam numa série de lutas, que gostavam de celebrar conquistas daquela pessoa, dar os parabéns e tudo mais, e que isto tinha um efeito construtivo, que eu quero que aconteça a uma escala mais alargada. Existem tantos obstáculos no caminho, que eu quero que as crianças e jovens, sobretudo, percebam que podem ser aquilo que quiserem, e que não comecem, desde idades muito precoces, a entender que o seu lugar é apenas aquele, ou aqueloutro, e que há uma série de ocupações que não são para elas. Partir para a questão das histórias, que são histórias contadas numa perspetiva profissional, de desenvolvimento de projetos, cria esse tal efeito positivo de empoderamento, de “é possível” — isto, para dentro da comunidade.

Para fora da comunidade [a mensagem é]: “atenção, estão a ver como existem perfis diferenciados?” Portanto, não tem mal nenhum trabalhar na restauração, na construção civil, e nas limpezas. É profundamente digno, mas existem muitos perfis de outras pessoas negras a fazer outras coisas e que não têm visibilidade nenhuma. [O objetivo é] trazer essa visibilidade e, nesse caminho, desconstruir estereótipos. Trazer esta desconstrução de que não temos de ser só Oprahs e Obamas, ou então criminosos, para aparecer nas notícias.

Depois, também há um espaço para divulgação de eventos, que normalmente não têm espaço nos media mainstream, porque são eventos afrocentrados, muitos deles, que acontecem nas periferias e que, quando aparecem no mainstream, é em notas de rodapé. E falo de livros, também, de lançamentos de livros.

Tudo isto são temáticas que são excluídas à partida, ou que, não o sendo, são pouco consideradas. O Afrolink é o espaço de acolhimento dessas narrativas diferenciadas e de celebração. Pretendo, a partir daqui, também começar a criar espaço para formar jornalistas, porque essa é a próxima etapa. Justamente para que existam profissionais já preparados ou com alguma experiência que possam ser absorvidos pelas redações mainstream, se for essa a vontade desses profissionais, ou não. Reconhecendo que é muito difícil abrir esse caminho, a partir do momento em que isso esteja feito, pode tornar-se mais fácil, depois, o acesso.

G. — Para terminar, há algum projeto de jornalismo, nacional ou internacional, que gostasses de destacar e que te sirva de referência?

P. C. —A Piauí, que conheci a partir de um amigo, é uma publicação brasileira e a edição em papel é muito boa. É o tipo de publicação na qual me revejo, porque traz temas fora da caixa, com abordagens fora da caixa. Gosto imenso. Em termos daquilo que eu procuro, no papel, a Piauí pode ser um exemplo.

Texto de Andreia Monteiro
Fotografia de Aline Macedo

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