A casa está diferente e já não cabes nela.
Sabes quantas vezes foste e vieste? As vezes que te deixei voltar depois de me abrires ao meio? Eu também não. Algures, ali a meio, parei de contar. Baixei os braços e a voz. E os sonhos.
Quando voltavas, nem trazias linha e agulha para me ajudar a unir as partes. Não. Vinhas com o kit para me rasgar outra vez.
E eu, tonta, preparava o pequeno-almoço, um tabuleiro bonito com um raminho de alfazema para dar cor e outra graça e deixava que me comesses as papas na cabeça.
De todas as vezes, comias tudo avidamente e mais houvesse e eu, como vivia a dar (-te) tudo de mim, quando acabavas de comer, ficava sem nada. Contentava-me com as migalhas espalhadas aqui e ali, umas no tabuleiro, outras no chão.
Até ao dia em que também eu tive fome. De mim.
Percebi que vivia de mão estendida, mas tu não querias subir a escada. E eu não quero ir ao fundo. Já lá estive, sim, mas não gostei. É escuro, frio, húmido e vazio. E quando cheguei lá abaixo e pensei que estava na parte mais funda, mostraste-me o alçapão que havia por baixo.
Porque, assim como quando somos luz, nem o céu é o limite, quando se vive no escuro e não se quer acender a luz, o caminho para baixo é igualmente infinito.
Nesse dia, depois de abrir e fechar a porta tantas vezes, reparei nos calos que me nasceram nos dedos, como quando escrevemos muito, sabes?
Esse foi o dia em que meti trancas à porta, ali do lado esquerdo do peito.
Abri os estores, pus uns cortinados bonitos clarinhos para deixar entrar o sol, olhei-me ao espelho com olhos de ver. Foi difícil, não minto, levei algum tempo a encontrar-me ali, debaixo de tantas camadas da cebola. Mas cheguei e agora, consigo respirar fundo. E sempre que um raio de sol me entra pela janela adentro, fecho os olhos e agradeço. Afinal, trouxeste-me até aqui.
Por isso, por favor, não voltes, que eu não te deixo entrar. Escusas de tocar. Dei um jeito à casa, os móveis não estão no mesmo lugar e já não cabes aqui.