Com esta crónica venho despedir-me da série Psiquiatria Lenta. Ao longo do último ano tenho advogado por uma psiquiatria e psicologia com valores, uma saúde mental humana, de proximidade, pautada pelo respeito, a escuta, a curiosidade e o interesse. Tenho defendido não apenas o “estudo da alma” (psicologia) ou a “cura da alma” (psiquiatria) mas também o sustento e o alento da alma, ou seja, a relação terapêutica.
Nesta crónica final, venho falar de duas emoções em transformação social. Duas emoções formativas no desenvolvimento de cada um, basilares nas relações afectivas e/ou terapêuticas e essenciais na regulação social dos comportamentos: são elas a culpa e a vergonha.
Nada é mais forte e mais formativo (ou destruidor, embora hoje não me vá focar nesse prisma) do que a interiorização destes dois sentimentos. Regra geral, estas são emoções morais que advêm essencialmente da cultura em que crescemos. É com os nossos pais ou cuidadores, eles próprios agentes morais e de transmissão cultural, que estas regras começam a ser criadas, dando lugar a estruturas internas de autocensura e autorregulação como, por exemplo, o “super-ego” Freudiano.
Da mesma forma, a experiência da vergonha, quando não incutida propositada e repetidamente e em dose moderada, pode contribuir para que os indivíduos não ajam em puro interesse pessoal A vergonha é em sentimento imensamente poderoso, que coloca em nós o olhar do outro.
Enquanto que as sociedades baseadas na culpa, consideradas mais prementes na cultura Ocidental, incutem mudanças de comportamento pela punição e reparação do acto, através da Justiça (terrena ou divina), gerando questões no indivíduo do género, “o meu comportamento é correcto e justo ou incorrecto e injusto?” As sociedade baseadas na vergonha, mais prementes nas culturas Orientais, mantêm o controle pela ameaça do ostracismo, e pela cultura da honra e do orgulho. Uma possível questão individual resultante deste tipo de cultura, poderá ser “como é as pessoas irão olhar para mim se eu fizer X”?
O poder da vergonha, neste sentido, baseia-se não só no problema da acção/reparação mas também em todo o ser, a pessoa é invadida por um sentimento de estar errada, em todo o seu ser e em toda a sua aparência. É como se um grande olho reprovador nos descobrisse e nos dissesse que somos más pessoas.
Poderia também falar, embora um ano de crónicas não chegasse para a importância deste tema, dos aspectos negativos, destruidores e enlouquecedores da culpa e da vergonha. Contudo, nesta última crónica da série Psiquiatria Lenta, decidi focar-me nos aspectos pró sociais e reguladores destas emoções, bem como no perigo da sua erradicação ou, lembrando Zygmunt Bauman e José Saramago, na sua liquidificação e consequente cegueira moral.
No mundo globalizado em que vivemos, é mais difícil definir qual a base moral das sociedades. Para além de globalizado, o mundo actual é profundamente individualizado. Embora haja virtude na ideia de construção de seres livres e autênticos, libertos das culpas e vergonhas do seu desenvolvimento, esta ideia parece não só ilusória, como contraditória e até perigosa.
Bauman introduz o conceito de adiaforização para falar da perda de sensibilidade e da cegueira moral no que ele chama de modernidade liquida. Com instrumentos como a televisão e a internet, a sensação é de vivermos numa multidão a tempo inteiro, rodeados por um poder anónimo que, consequentemente, não nos identifica nem nos envergonha. A sensação é de que as coisas acontecem aos outros e não a nós.
Na seu livro sobre a cegueira moral, Bauman conceptualiza a “revolta dos ricos” com base nos estudos de Thierry Pech e Philippe Steiner, e como este enriquecimento obsceno das últimas décadas minou as fundações da solidariedade social, da responsabilidade comunitária e da justiça. Diz Bauman que “a vergonha e a condenação social associadas à ganância, à rapacidade e ao consumo ostentoso foram eliminadas e foram recicladas em objectos de admiração pública e de culto às celebridades”.
Esta cegueira moral parece feita, então, de “cegos que veem, cegos que vendo, não veem” (José Saramago).
Num mundo em que o trauma é constante, reciclado entre pandemias, guerras, injustiças e outras atrocidades, é urgente repensar as sociedades e o papel da cultura. Como é que as sociedades globalizadas e individualistas podem aprender, por exemplo, com algumas filosofias orientais e africanas? Ocorre-me a ética Ubundu e os conceitos de reciprocidade, respeito mutuo e trabalho para o bem comum.
A Psiquiatria Lenta é uma contracultura sem ser uma anti-cultura. É uma forma de estar que não contrapõe os valores actuais mas que os questiona constantemente, procurando equilíbrios e pontes de diálogo e, assim, actuar na Psiquiatria, nas relações entre os indivíduos, mas também no bem estar comum, nas comunidades e na cultura em geral.
Até breve!
*Texto escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico
- Sobre João G. Pereira -
João G. Pereira é psicólogo, doutorado em Psicoterapia pela Middlesex University e psicoterapeuta registado no United Kingdom Council for Psychotherapy. Iniciou a sua vida profissional em Lisboa e Barcelona tendo-se fixado, posteriormente, no Reino Unido, onde viveu e trabalhou durante 10 anos, maioritariamente em departamentos de psiquiatria do sistema nacional de saúde (NHS). A sua desilusão com o sistema psiquiátrico tradicional levou-o a estudar sistemas mais relacionais e humanistas, tendo acabado por juntar-se à Fundação Romão de Sousa e ao seu projecto “Casa de Alba”, que dirige desde 2013. Desenvolveu o sistema de Comunidades Terapêuticas Democráticas em Portugal e esteve na origem do movimento “Open Dialogue” português, inspirado pelas suas visitas à Lapónia Finlandesa, Norte da Noruega e Nova Iorque. Também em Portugal foi Professor Auxiliar Convidado na Universidade de Évora e colaborou em estudos Pos-Doc de Filosofia Psiquiátrica na Universidade Nova. Tem interesse particular no desenvolvimento da relação terapêutica e na intersecção entre a psicanálise relacional, a filosofia e as neurociências afectivas, em particular na área da mentalização, que levou à sua acreditação no British Psychoanalytic Council. É actualmente Presidente da International Network of Democratic Therapeutic Communities, supervisor e professor de psicoterapia no Metanoia Institute em Londres. É autor de vários artigos em jornais científicos, tendo co-autorado e editado os livros “Schizophrenia and Common Sense” da Springer-Nature e “The Neurobiology-Psychotherapy-Pharmacology Intervention Triangle” da Vernon Press.