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Raul Leal: “a fast fashion traz coisas horríveis para a humanidade.”

A moda define gerações, é espelho de expressões culturais e uma imposição de vontades quando…

Texto de Patrícia Nogueira

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A moda define gerações, é espelho de expressões culturais e uma imposição de vontades quando se procura a mudança na vida da sociedade. Raul Leal é designer de moda e dono de uma irreverência que o levou a esgotar a sua segunda coleção e levá-la a outras partes do mundo, mas sobretudo a olhar para a moda como um motor para a mudança de mentalidades.

“Uma alma velha”, é assim que o designer de moda, Raul Leal, natural de Tavira, se define. O percurso começou ainda em criança, nas danças de salão, quando desenhava os vestidos para si e para o seu par. Sempre foi o “fashion advisor” dos seus amigos “mesmo quando não perguntavam nada”, como se orgulha de contar, e, ao longo do seu caminho na moda, a família tem sido a sua inspiração.  Sempre ligado às artes, fez o ensino secundário em Tavira e decidiu subir até ao Porto para estudar teatro musical. A insatisfação levou-o a descer até ao Algarve e a estudar produção de eventos, mas o bichinho pela moda nunca parou de se manifestar e acabou por tirar um curso na LSD – Lisbon School of Design e especializar-se em Design de Moda. Foi a partir daí que Raul Leal arriscou e se estreou com a primeira coleção na Moda Tavira, a coleção “Azulejos”, mas foi com a segunda coleção, Young Designer, que se deu a conhecer em Portugal e além-fronteiras, esgotando as mais de 200 peças em menos de quatro dias. A paixão pela moda e a motivação para fazer diferente manifesta-se em tudo o que faz — é ele que escolhe os modelos, os sítios, fotografa, faz a edição e ainda o marketing.

Em entrevista ao Gerador, Raul Leal falou-nos sobre o seu percurso, a sua inspiração na história de Portugal e como o fado, as danças de salão, as suas vivências, aqueles que os rodeiam e o que quer mudar no mundo está fortemente bordado em todas as suas criações. Falámos ainda do peso da indústria da moda na sustentabilidade, uma vez que é considerada uma das mais poluentes do mundo e a que ocupa o segundo lugar, depois da agricultura, na utilização de água a nível mundial.  O jovem tavirense falou-nos ainda sobre a falta de oportunidades fora da capital, mas também partilhou como não baixa os braços e quer colocar a moda ao serviço da inclusão. Aquilo que projeta nas suas coleções é um grito para não termos medo de sermos autênticos.

Peças da coleção Primavera/Verão 2021: Rosalia Dress | Very Rich Coat | Matching Purple Suit

Gerador (G.) – Costumas dizer que, em pequeno, com cinco anos, já querias criar a tua própria moda, inclusive, começaste a desenhar vestidos. Tinhas alguém que te inspirava, na altura?

Raul Leal (R.L.) – A minha família, sem dúvida! Nunca fui como os outros designers que têm aquele designer específico como referência. Nunca vi como inspiração alguém que não conhecesse, sempre foram as pessoas próximas de mim, a minha família e as minhas vivências. Os meus primos também têm um papel importante, porque sempre foram fora da caixa, vestiam coisas super diferentes. Mais tarde tive acesso a fotografias e lembro-me de comentar com eles que eles realmente vestiam coisas chocantes para a época.

(G.) –És de uma cidade pequena e, apesar de teres estudado em Lisboa, decidiste voltar para a tua cidade berço e criar a partir de lá. Porque decidiste voltar? Estares longe da capital não limita que o teu trabalho chegue a mais pessoas?

(R.L.) – Tinha a intenção de voltar a Lisboa, mas a pandemia também me fez continuar aqui e acabei por começar a montar o meu atelier na minha casa. No entanto, estar aqui tem as suas vantagens e desvantagens. Aqui tenho mais notoriedade do que teria em Lisboa, onde existem mais vinte ou trinta designers da minha idade. Estar aqui impulsiona o meu trabalho, sou o único em Tavira e dos poucos no Algarve. A parte menos boa são os contactos, porque não consigo aparecer e divulgar o meu trabalho nos eventos. Não consigo ir a desfiles, meetings, showrooms, tudo o que faço agora é por correio. É bom, sim, ser o único por me dar mais destaque, mas não tenho tantas oportunidades.

(G.) – Podes revelar-nos como funciona o teu processo criativo, até ao momento em que o modelo está pronto?

(R.L.) – Começa sempre pela ideia. Inspiro-me sempre em várias coisas, na música, nas flores, num momento que esteja a viver, o meu passado nas danças de salão que é muito brilhante e showbizz, no fado, na cultura espanhola. Ao contrário dos designers que começam pelo tecido, eu não começo pelo material, mas sim pela forma. Desenho, para não me esquecer, e passo logo para a máquina de costura, com um pano cru — um tecido usado para não estragar o produto final —, faço tudo com pano cru e só no final é que decido o material no qual a peça vai ser feita. Ensinaram-me o processo ao contrário, mas eu prefiro assim, não me perguntes porquê.

(G.) – És o responsável por todo o processo, inclusive a parte de costurar?

(R.L.) – Quase tudo. Sei costurar o básico, mas normalmente opto por costureiras de Tavira, que não tenham muito trabalho, para lhes dar oportunidade, mas quando são grandes quantidades como as sweats e as camisolas, trabalho com fábricas mais pequenas, acho importante ajudar as pequenas empresas.

Coleção “Azulejos

(G.) – A tua segunda coleção esgotou e exportaste para Espanha, Canadá e Reino Unido. Como aconteceu?

(R.L.) –  Foi uma surpresa! Só tinha lançado a coleção dos Azulejos, na Moda Tavira, no verão de 2018, e não esperava que tanta gente se lembrasse. Decidi, em 2019, lançar uma coleção de verão, mas sem mostrar ao vivo, apenas no Instagram. Como sempre, fui eu que fotografei tudo, escolhi o local, as modelos, fotografei e meti no Instagram. Na altura, convidaram-me para trabalhar numa discoteca, o que me ajudou na publicidade, porque todas as noites eu e os meus amigos usávamos essa roupa na discoteca. A partir do momento em que pus à venda, passaram 24h e vendi 250 peças. Dediquei-me um pouco mais ao marketing.

(G.) – A tua coleção “Azulejos” é uma história algarvia. É importante trazer a moda para o Algarve ou, pelo contrário, já existem projetos a funcionar?

(R.L.) – Normalmente, as associações que existem são as que recebem roupa, de caridade, mas não modificam. Uma das coisas que estou a tentar fazer, em parceria com a Câmara de Tavira, é reativar a Moda Tavira, chamando-lhe Moda Algarve e, a partir daí, criar uma associação que receba peças de roupa doadas, para lhes dar uma nova vida. Pessoas como eu, e costureiras, podemos torná-las mais fashion, para que as pessoas que precisam delas não se sintam excluídas, porque, o que é dado já não está na moda, ou está estragado, e ninguém se preocupa. Mas as crianças e adolescentes quando as levam para a escola, sentem-se inferiorizadas e com vergonha, porque não estão dentro da moda e do que os amigos usam. O projeto também seria para incluir outros designers algarvios, porque não há nada no Algarve. Podem existir outros designers, mas acabam sempre por sair, por isso tento sempre fotografar em locais do Algarve, ou de Tavira, trabalhar com as empresas da zona e puxar os negócios locais, para que eu não tenha de sair, ou, a história vai repetir-se e eu vou ter de sair para mais tarde voltar.

(G.) – Tens muito presente, no teu trabalho, a responsabilidade social. É a tua forma de mostrar que a moda não é só para uma elite e também educar?

(R.L.) – A moda nunca foi para toda a gente. Eu acredito que devemos usar a nossa arte para o melhor que conseguirmos, e eu uso para ensinar e abrir horizontes, no que diz respeito à sexualidade, direitos das mulheres, racismo, e mesmo em Tavira, muita gente não sabe, mas é uma zona muito carenciada e seria injusto dizer que a moda é para toda a gente e não a pensar assim. Por exemplo, há uns tempos participei num projeto com a Irene Rolo, que trabalha com pessoas com deficiência, incapacidades e outros públicos vulneráveis, com a presença do João Valentim, onde vestimos os utentes da instituição, para abanar a população e mostrar que ninguém está fora da moda. Se a sociedade me obriga a andar vestido, então vou fazer o melhor que consigo com isso. A roupa transmite personalidade, mas por vezes a condição económica é injusta, e eu acredito que não tens de ter uma boa condição económica para transmitir ao mundo quem és, na primeira vez que te vêm.

(G.) – Durante a segunda quarentena fizeste algumas peças com restos de tecido. Nas tuas criações, tens a sustentabilidade como fator principal para a criação?

(R.L.) – Por norma, não, mas só porque a sustentabilidade ainda é cara nesta área. Não que não queira usar tecidos de banana, mas sendo uma marca pequena e eu o único a suportar todos os custos, não consigo fazer muito. Por isso, peguei neste projeto e fiz algo mais sustentável, mas com uma mensagem mais específica para o mundo da moda, para quem está lá dentro. Sentimos uma grande pressão para fazer tudo nas normas e, estando num meio, supostamente, tão aberto, estas regras já não deviam existir. O projeto é mais fora da caixa, para que as pessoas se questionem.

(G.) – Como é que as tendências se encaixam no consumo sustentável?

(R.L.) – É um grande problema! A fast fashion é inimiga dos designers e de todos os que gostam de moda. Por exemplo, no séc. XVI até ao séc.XX, a moda era para a alta sociedade, infelizmente, mas era possível definir a moda de século para século. Não que andassem na moda durante o dia, mas só algumas pessoas tinham acesso porque tinham muito dinheiro. A partir do século XXI, todas as pessoas têm oportunidade de estar na vanguarda, pela oportunidade que a Internet proporciona. A parte má é que, muitas vezes, um designer desenha uma peça e, passados quinze dias, já tens uma marca de fast fashion a copiar o que fizeste, com duzentos designers contratados. O grave problema é a nossa geração não perceber que isso acontece e preferir a fast fashion, a qualquer coisa que seja criada de raiz. Se eu te pedir cinquenta euros por uma peça não vais dar porque podes comprar a mesma por quinze euros, o que tu não te lembras, quando a compras, é que foi fabricada por mulheres que, muitas vezes, trabalham de borla só para poderem fugir dos maridos durante o dia. Não é novidade para ninguém que a fast fashion traz coisas horríveis para a humanidade, e o problema é que não nos importamos.

(G.) – O que ainda falta fazer no mundo da moda?

(R.L.) – Muita coisa. Temos muitos materiais que ainda não são vestíveis porque ainda não foram explorados. Conseguimos vestir tudo o que é palpável, se quiseres vestir vidro, podes vestir, por exemplo. O que falta fazer vai também ao encontro do vestido de retalhos que fiz. Dentro da moda há sempre barreiras que te impedem de fazer qualquer coisa, porque os diretores têm espectativas e surgem problemas geracionais. Falta autenticidade e individualidade, coragem para dizermos o que queremos dizer. Senti isso na primeira coleção porque sentia que estava restrito ao que o público queria porque eu criava uma coisa e mostrava ao meu círculo mais próximo e quanto mais mostrava, mais eu tinha de diminuir o que tinha criado. Agora, o que eu crio eu mando para o público, a reação deles é a reação deles, eu não estou mais nessa página.

(G.) – Uma das tuas coleções tem o teu nome escrito. Faz parte dessa mensagem que queres transmitir?

(R.L.) – Estava no início da minha carreira, queria que as pessoas soubessem o meu nome. Não minto, eu queria mesmo que as pessoas ouvissem falar de mim e o nome nas costas ajuda muito. Muita gente me perguntou porque é que haveria de usar uma blusa com o meu nome e eu respondia sempre — ‘da mesma maneira que usas uma que diz Channel’.

Coleção com o nome “Raul Leal

(G.) – Se pudesses definir, resumidamente, aquilo que queres comunicar com as tuas criações, o que dirias?

(R.L.) – Irreverência. Não se conforme, o mais importante é seres tu a cem por cento. Defendo muito que estamos numa era do vai ou racha, e acho que a marca Raul Leal deve ser uma referência de irreverência e honestidade. Se não estiveres feliz contigo, e a imagem é algo tão importante hoje em dia, talvez a mensagem de quem és não seja bem transmitida. E se não passares totalmente o que és, não vale a pena.

(G.) – As tuas inspirações continuam a ser as mesmas de quando eras mais novo?

(R.L.) – Sempre! Eu sou obcecado pelo fado, pela história portuguesa, por aquilo que o 25 de Abril representa. Vou buscar muitas revoltas e muitas guerras para mostrar que temos sempre de lutar pelo que queremos, porque imagino quantas pessoas estiveram cá, a lutar, para eu usar um casaco de zebra na rua e a minha cabeça não ser cortada. Gosto de trazer o passado para o presente para lembrar as pessoas de que o passado não foi sempre bonito. Costumo dizer que a minha alma é velha, e o fado está sempre nas minhas peças, não diretamente com a cara da Amália, mas a minha vida tem muito fado e Portugal nos anos 80/90.

(G.) – O que podemos esperar da marca Raul Leal, nos próximos tempos?

(R.L.) –  Podem esperar coleções super diferentes. A marca mudou um pouco de direção e estou com projetos mais singulares. Faço vestidos de gala e a última coleção que lancei tinha duas vertentes, a de passerelle high fashion e outra mais casual, para o dia a dia. Quero que se insira em mais projetos sociais, registar a marca em território estrangeiro e voltar a lançar de novo peças lá para fora. Vou começar a fazer consultoria, quero continuar a apostar nos projetos sociais e conseguir trazer mais sustentabilidade para as minhas criações.

Entrevista por Patrícia Nogueira
Fotografias da cortesia de Raul Leal

Se queres ler mais entrevistas sobre a cultura em Portugal, clica aqui.

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