Visualizem dois seres banais, que, numa pacata noite, são iluminados pela luz da iluminação. É-lhes dada uma missão de muita importância e valioso valor, mudar o mundo através da poesia.
Olá, somos a Maria Beatriz e a Rita Isabel, e hoje trazemos um poema chamado: «As pessoas sérias».
As pessoas sérias
Não brincam no parque,
Falam de todas as matérias,
E não dançam o Baby Shark.
As pessoas que se levam demasiado a sério
Só se riem quando é seguro,
Chamam aos filhos Rogério
E acham usar onomatopeias imaturo.
As pessoas que estão em áreas com saída
Falam português perfeito,
E nunca, nunca na vida,
Cumetem herros urtugraficos.
Derramam o leite para chorar,
Não percebem que a bezerra não morreu,
Usam o privilégio para berrar
Em vez de perceber o que aconteceu.
A ironia não lhes assiste,
«Deus nos livre de fazer figuras»,
«Pôr isto na Internet é mesmo triste»,
«Humor para pessoas imaturas».
A arte é sagrada.
Não se brinca com coisas sérias.
Mas se deixarmos a parvoíce à entrada,
Não tiramos a barriga de misérias.
Porque a vida fica pálida
Se não te ris das coisas mundanas.
Se a estupidez não é válida,
Então vai-te encher de bananas.
***
Vamos agora escrever como Beatriz Neri e Rita Mendes. Somos as atrizes por trás do projeto Página Solta e gostaríamos de usar esta plataforma para partilharmos uma reflexão sobre a estupidez e o seu valor.
Num devaneio das 3 horas da manhã, já bêbedas de sono, refletíamos sobre as complicações da vida, e optámos por resolvê-las como muita gente faz: com frases sem profundidade e conteúdo como «A vida é assim, uns dias faz sol outros faz chuva»; «O tempo passa, as coisas mudam». Estas frases cansadas, ditas vezes sem conta, parecem ainda ser novidade para as ditas «pessoas sérias». Dizem-no como se da descoberta da pólvora se tratasse e perpetuam a ideia de que aquilo que é genérico é o mais valioso. Encontrámos uma simbiose entre esta seriedade e a poesia contemporânea que conhecíamos, e depressa percebemos que ambas víamos um gigante potencial cómico neste género literário: a poesia irónica. Nessa noite, escrevemos três poemas. Na manhã seguinte, decidimos que íamos vestir uma gola alta e partilhá-los na Internet.
Durante a nossa formação em Teatro, deparámo-nos com um género de artista – o que se leva demasiado a sério, critica tudo e não acha piada a nada. Achamos surpreendente a forma como estes nossos colegas, professores e conhecidos se acomodavam com a falta de encanto nas coisas mundanas e simples da arte e da vida. Assumindo que a maioria das pessoas que segue esta área – do teatro e da arte – comprometem a estabilidade na procura daquilo que realmente as preenche, não nos parece lógica a forma como estes artistas vivem em constante desagrado com tudo. Criam pressão na criação artística porque acreditam que a arte tem de ter um grande valor intelectual, tem de ser «séria». Mas, para nós, a estupidez e o riso que ela traz também podem ter esse valor.
A estupidez é uma virtude. E por acreditarmos nisto, pintamos a realidade que vivemos, o nosso dia a dia e a arte que nos rodeia com uma generosa camada de estupidez, dando luz ao ridículo e relativizando a nossa existência – no fundo, comédia de costumes. Pode parecer uma ridicularização absurda, mas é um alerta à urgência de nos sabermos rir de nós próprios.
Por isso, apelamos a todos que leram esta crónica que aceitem o absurdo, abracem o cringe, adotem as «figuras tristes». Não somos menos inteligentes por nos rirmos do «isso foi o que ela disse». Amem, envolvam-se loucamente, apaixonem-se assolapadamente pela estupidez.
Sobre Página Solta
Além de atrizes, Beatriz Neri e Rita Mendes são as criadoras da "A Página Solta", um projeto que, segundo as autoras, "procura consciencializar esta sociedade decrépita, através de palavras que tocam na alma dos que, como nós, querem escapar do dia a dia turbulento”.