Datas históricas são oportunidades de reflexão sobre as razões e os meios como são constituídos os valores e as identidades sociais. A invocação de uma data traz, subjacente, indícios de como escolhemos, lidamos e valorizamos determinados passados. No diálogo entre Portugal e Brasil, este mês é marcado por uma efeméride que nos permite estabelecer paralelos, questionar negligências e esquecimentos ou identificar deturpações sobre a História. É uma data oportuna ainda para pensarmos especificamente sobre a História ensinada em contexto escolar.
O 22 de Abril de 1500 refere-se à chegada dos portugueses em um território já milenarmente ocupado por povos não europeus. Descobrimento, achamento, encontro, chegada, conquista, ocupação, invasão… Qual palavra você utiliza? E por que esta palavra e não outra? A efeméride pode ser um convite para pensarmos sobre a historicidade dos termos e suas implicações políticas, sociais e educativas. Afinal, palavras não são neutras e definem visões de mundo. Como sabemos, geram consequências para a compreensão do acontecimento e para os valores que serão promovidos ou silenciados, influenciam na formulação de processos educativos e mesmo na criação e implementação de políticas públicas, quer voltadas a incentivar a cidadania ou a marginalizar setores e camadas sociais.
Para seguir nessa reflexão, vamos a um exemplo concreto. Em um manual escolar de Estudo do Meio do 4.º Ano de escolaridade, em circulação no ano de 2023, o Brasil aparece pela primeira vez em apenas três linhas de texto. Depois do anúncio da chegada dos portugueses à Índia por mar, pela expedição de Vasco da Gama, em 1498, outro navegador é apresentado: Em 1500, “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil". Uma afirmação repetida por gerações escolares. Sob a lógica dessa "descoberta", inicia-se a exploração do pau-brasil, depois do açúcar, tabaco, cacau, algodão e minérios e pedras preciosas, segundo o manual escolar.
Na profusão de conteúdos, onde “factos e datas relevantes da História de Portugal” são priorizados nas diretrizes de Estudo do Meio, desde “os primeiros povos” ao 25 de Abril de 1974 (a ser apresentado em menos da metade do ano letivo), o marco do 22 de Abril de 1500 ganhou destaque. A relevância é conhecida e não deixa de ser familiar ao imaginário infantil, seja nos monumentos, museus, histórias familiares ou mesmo nas ruas, dada a “redescoberta” de Portugal por um número crescente de brasileiros, a maior comunidade estrangeira residente no país na atualidade. Mas, de fato, quando Cabral chegou, o território não era o Brasil. E já foi chamado de Pindorama, Ilha “Terra de Vera Cruz”, Terra de Santa Cruz, Terra Papagalli, Mundus Novos, América, Terra do Brasil, Índia Ocidental, Brazil…
A utilização do termo “Descobrimento” remete-nos diretamente à empresa colonial, à exploração dos territórios que foram posteriormente colonizados e, sobretudo, omite o fato de que a história daquele território já estava a decorrer. Afinal, era um território povoado. O uso dessa nomenclatura configura, portanto, uma incorreção decorrente da perspectiva eurocêntrica.
Importante lembrar que, entre 1954 e 1961, durante o Estado Novo português, o termo “indígena” foi usado para designar os habitantes da Guiné, Angola e Moçambique considerados “não assimilados” à cultura portuguesa e, na prática, “não cidadãos”. Além das incorreções e imprecisões conceituais que circundam o uso de determinados termos na atualidade (“tribo”, “índio”, “bárbaro”, “silvícola”, “autóctone”, “selvagem”, “incivilizado”…), assumir a perspectiva eurocêntrica omite a ação, a história e a cultura dos diferentes povos que viviam e habitam, até os dias de hoje, territórios colonizados.
E o que sabem as crianças portuguesas sobre os indígenas que habitavam e habitam o Brasil? Há referências na educação portuguesa sobre a cultura indígena, sua influência na história do Brasil e na história de Portugal? Não é difícil perceber um desconhecimento e uma invisibilidade desses povos originários. Manter uma perspectiva colonizadora no ensino perpetua o desconhecimento da diversidade e reforça estereótipos como o da abordagem folclórica ou exótica dessas culturas.
A reflexão sobre a nomenclatura utilizada é um caminho considerável para o início de um rompimento com a estigmatização, assim como é parte do processo de pensamento crítico, tão importante aprendizagem. Mas não basta, é preciso refletir e criar experiências de conhecimento sobre essas culturas, dialogar e dar voz aos seus representantes, criar caminhos para as reparações históricas, garantir sua existência e cidadania.
“Na verdade não somos índios. Somos Nhandeva (guarani), Kaiapó, Terena, Tukano, Tupiniquim, Krenak, Pataxó, Xetá e muitas nacionalidades mais. Essa palavra não tem tradução em nenhuma das nações indígenas, é fruto de um erro sociodemográfico”, explica-nos o escritor Olívio Jekupé, na apresentação do seu livro A invasão (Urutau, 2022).
E agora, como nomear o que houve no 22 de Abril de 1500?
Para continuar…
Davi Kopenawa e Bruce Albert. A Queda do Céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
- Sobre Débora Dias e Gisella Serrano -
Débora Dias é Graduada em Comunicação Social - Jornalismo, Doutora em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra (UC), investigadora integrada do CHAM - Centro de Humanidades (FCSH NOVA) e colaboradora do Centro de Estudos Interdisciplinares (Ceis20-UC). É também editora de reportagem do Gerador.
Gisella Serrano é Graduada em História, Doutora e pós-doutora em História e Culturas políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pós-doutoranda em Estudos de Cultura na Universidade de Lisboa (UL) e investigadora do CEComp - Centro de Estudos Comparatistas da UL. Autora de obras didáticas e pára didáticas. As autoras integram a Rede Internacional de História das Pedagogias, Patrimónios Culturais e Materiais Didáticos em Língua Portuguesa.