Existem, em Portugal, restaurantes muito bons.
Há também restaurantes menos bons, mas que estão na moda, e, depois, ainda há os que passam de moda e fazem uma peregrinação espiritual para depois regressarem ao convívio dos clientes e amigos.
Em cada casa de comer aberta ao público, existe uma estrutura que é a grande responsável pelo êxito da aventura gastronómica que ali se pratica. E sem prejuízo de toda a orquestra que tem de trabalhar em conjunto para que o resultado seja memorável, faz mister dar valor ao maestro daquela «banda», o cozinheiro, que, em alguns locais mais sublinhados pela crítica, se confunde com o gerente-proprietário.
Nem todos os cozinheiros-gerentes que se aventuram por esta indústria têm a mesma sorte. Alguns brilham inicialmente para depois esse brilho se extinguir sem que se perceba muito bem porquê. Serão as vicissitudes da economia ensombrada pelas crises, o efeito da moda e dos influencers, nem sempre conhecedores das matérias, mas que – em virtude do livre acesso à crítica virtual – podem transformar palpites pouco informados e algo mesquinhos em ondas de opinião pública, muitas vezes injustas.
Nesta fase da crónica, convém lembrar que, na gastronomia da restauração nacional, sempre houve «mestres».
Nenhum tão grande como o mestre João Ribeiro, luminária do Hotel Aviz e cozinheiro de Calouste Gulbenkian. Na opinião de Maria de Lurdes Modesto e de José Quitério, o maior artífice dos fornos e fogões que este país viu nascer. Da cozinha, este grande mestre sabia tudo e tudo ensinava, com uma humildade que causava espanto a quantos o viam.
Depois destas considerações iniciais, passamos ao tema central: prestar homenagem a um restaurante que há cinquenta anos, desde 1973, continua de forma recorrente a ser um farol de alta qualidade para bem receber os clientes, desde a matéria-prima à confeção, passando pelo acolhimento e serviço na sala.
Na antiga vila de Cascais, cujo primeiro foral foi dado por D. Afonso Henriques em 1154, não se consegue, decerto, datar com precisão o início da pesca artesanal ao longo da recortada costa marítima, que, para oriente e ocidente, do Bugio às escarpas do Cabo Raso, era empreendida pelos habitantes locais em pequenos barcos de fundo achatado.
Foi, provavelmente, esta indústria tradicional que, nos tempos mais modernos, criou a fama e o proveito de ser Cascais localidade de bom peixe e bom marisco. Atualmente, sabe-se que a maioria do pescado não é capturado nas redondezas. Contudo, ainda é possível obter junto de alguns pescadores espécies indígenas, destacando os mais entendidos o linguado mariscado cor-de-rosa, o robalo, o sargo e os percebes da Roca, a lagosta da pedra, o lavagante azul e as bruxas e gambas de Cascais, entre outros.
Com tais antecedentes, não se estranha o aparecimento de muitos restaurantes contíguos à lota da vila, cuja especialidade culinária assentava, sobretudo, nos produtos do mar. Muitos infelizmente já encerraram, outros adaptaram-se e mudaram de estratégia.
Um deles, contudo, há 50 anos que se mantém como nasceu, para alegria dos clientes fiéis que o frequentam desde o início (ou quase).
No dia 2 de agosto de 1973, abria em Cascais, junto à então «lota dos pescadores», o restaurante Beira Mar. Usava o espaço de uma antiga taberna que ali existia há vários anos.
António Mendonça e a esposa, Lurdes Santos, fizeram ao longo destes anos uma casa notável, por onde passava quem era quem em Portugal e no mundo.
Não vão ver nas paredes nenhuma fotografia a ilustrar estas visitas. No Beira Mar, o respeito pela privacidade do cliente é fundamental.
Contudo, ali foram, e continuam a ir, reis e príncipes, pelo menos três secretários-gerais da ONU, presidentes da República e o mais que quiserem, sem esquecer atrizes e atores de Hollywood e os grandes patrões da Fórmula 1, na altura em que o Autódromo do Estoril recebia aquela competição. Por exemplo, a McLaren alugava o restaurante sempre que vinha a Portugal.
O segredo sempre foi a qualidade do peixe e do marisco, a forma cuidada com que na cozinha se enaltece aquele material, e a simpatia com que é recebida qualquer pessoa, mesmo que na mesa ao lado estivesse algum senhor das arábias, com bolsos colados ao chão do peso dos petrodólares.
Na procura por dar aos clientes o melhor que era possível encontrar, o Beira Mar apenas comprava robalos de pesca artesanal. Estávamos na altura em que o famoso Loup de Mer estava na moda e era pedido consistentemente por turistas nacionais e internacionais. Os famosos «filetes de pescada com arroz de berbigão» eram já considerados um prato emblemático da mesma casa.
Fala-se de pesca artesanal, com linhas e anzol. Acho que menos distúrbios fizeram à população de robalos os pescadores artesanais em toda a sua vida de mar, do que um arrastão numa semana e meia de trabalho.
Um dia, no Beira Mar, conseguimos espantar (o que não era fácil) o saudoso David Lopes Ramos, grande crítico gastronómico, ao apresentarmos estes peixes da faina daquela madrugada, ainda vivos, aos saltos no grande balde que tinha vindo diretamente do barco.
Noutra ocasião, mandei vir quatro grandes salmonetes encapotados para mim e para um convidado, um senhor importante, diretor-geral de uma grande empresa francesa de visita à filial em Portugal e que tinha algum preconceito quanto à nossa gastronomia. Para ele, depois da francesa e da chinesa, já não existiam «gastronomias». À sua frente, retirei os fígados dos salmonetes, temperei levemente com duas ou três gotas de sumo de limão e barrei várias torradas quentinhas com o resultado. Ainda me lembro do brilhozinho nos olhos do gaulês… Teve a grande revelação que merecia, em vez de ser na estrada de Damasco foi no Beira Mar.
Ali, gastei parte do meu primeiro ordenado. Tinha ganhado o concurso para assistente universitário, e, com 22 anos, já dava aulas. Para celebrar fui lá almoçar em outubro de 1977.
E nunca mais deixei de ir. Sou amigo dos donos, do filho e das filhas, das netas e dos netos. O meu filho foi praticamente lá criado.
Nesta efeméride de 50 anos de excelência, deixo um grande abraço de amizade ao pessoal da cozinha e da sala, lembrando, com saudade, os que já partiram, e outro igual à gerência da atualidade, grande cozinheiro, que, por acordo familiar, em boa hora decidiu honrar a pesada e nobre tradição.
- Sobre Manuel Luar -
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.