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Sabe bem, sabe a Lisboa – Festa de celebração da #novalisboa no Pigmeu

No dia 2 de Outubro, perto das cinco horas da tarde, chegamos ao Pigmeu –…

Texto de Raquel Rodrigues

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No dia 2 de Outubro, perto das cinco horas da tarde, chegamos ao Pigmeu – De Tudo Um Porco, mas não só. Cá fora, estão os chefes Joaquim Leal, do restaurante Sal Grosso, e Mateus Freire, do Faz Frio, que bebem cerveja enquanto conversam. Somos recebidos por Miguel Peres, o dono da casa, que está a tratar dos últimos preparativos para a festa desta noite, que se insere na Lisbon Food Week, um evento gastronómico a decorrer em Lisboa, entre 26 de Setembro e 4 de Outubro, e que oferece diversas experiências de saber e sabor, desde rotas de restaurantes, almoços e jantares, workshops, conversas e um congresso.

Miguel esclarece que não se trata de um jantar, mas de uma celebração da #novalisboa, deste novo tempo gastronómico vivido na cidade, que parte e passa pela amizade entre os cozinheiros desta geração. Para haver uma festa, tem de haver uma mesa, o primordial objecto que se refaz lugar de encontro, onde a vida se anima e as relações se erguem. A este propósito, José Tolentino Mendonça escreveu: “A mesa é a extensão do corpo. (…) Uma mesa verdadeira não é uma mesa, é mais do que uma mesa, é a fraternidade que somos capazes de construir uns com os outros, é aquilo que colocamos lá. (…) é o lugar onde podemos tocar mais profundamente a vida uns dos outros, nesse gesto arcaico, selvagem e sagrado que é comer, que é colocar uma coisa que está fora dentro do nosso corpo e ela transforma-se no nosso corpo. É uma coisa primitiva, mas, ao mesmo tempo, é o gesto mais radical de uma hospitalidade mais radical.”

A luz da cidade vai desvanecendo. Os cozinheiros e as cozinheiras chegam gradualmente. O anfitrião apresenta-os uns aos outros e dá-lhes a conhecer os cantos à casa e a casa aos novos cantos. Esta noite é uma tentativa de mostrar que “a #novalisboa não é nada, não é um movimento. É uma aragem”, diz Miguel. É um “novo ar” de muitos ares que se movem por todo o país. Uma das características que permitem reconhecê-lo é o sentido de comunidade nutrido pelos restauradores e restauradoras, cozinheiros e cozinheiras. Ao contrário das gerações anteriores, Miguel sente que a lógica da competição deu lugar à entreajuda. Tomás Rocha, do Bicho Mau, partilha que se inspira no trabalho dos seus colegas, alguns dos quais aqui presentes. É essa partilha que possibilita a criação de um espaço comum, onde as diferentes expressões são reconhecidas e acolhidas.

Há ainda um cuidado transversal, a qualidade do produto, a aproximação ao produtor, o conhecimento do processo de produção, o respeito e o acompanhamento dos ritmos da natureza. Apesar de se viver uma acentuada preocupação com questões éticas, de sustentabilidade, ecologia, consumo consciente, na contemporaneidade, Miguel refere que há colegas que “o fazem naturalmente e de forma impensada desde sempre, não como uma forma ecológica de agir, mas natural de trabalhar” e outros com uma orientação activista. Considera que se insere “no meio”. Desde 2014, quando o desejo de abrir portas no bairro que conhece pelos passos da infância, Campo de Ourique, se concretizou, projectava trabalhar com produtos biológicos. Porém, por razões de preço e de acessibilidade, só o conseguiu em 2017. Hoje, 70 % das matérias-primas alimentares do restaurante são biológicas, e o porco é aproveitado “de ponta a ponta”. A carta é composta por um terço de vegetais e um terço de miudezas, “para combater o desperdício que continua a existir na indústria”, pois tal aproveitamento já não é hábito na cozinha portuguesa, e varia em proporção ao animal e aos vegetais disponíveis na Herdade do Freixo do Meio, seguindo as estações. Em vez de realizar encomendas, compra as colheitas. Os porcos, de raça alentejana, são criados à solta na mesma herdade, que pratica agroecologia desde 1990. A sua carne estufada será um dos petiscos deste jantar. Evaristo, merceeiro da Comida Independente, também procurou responder à lacuna entre o campo e a cidade, através de um movimento “queirosiano”, como designa. Sabe que os produtos nos quais investe dificilmente chegariam a Lisboa pelos circuitos de distribuição. Para além disso, é importante envolver-se com a sua matéria-prima desde a origem, de modo a poder conhecê-la. Segue a viagem da uva ao copo. Defende que, para isso, é essencial criar laços, visitar os produtores. Evaristo dará a provar a sandes de pastrami, uma receita judia de peito da vaca que tem uma cura muito longa, de sete dias, aos quais se somam dois dias de cozedura e um de fumo. Como a ética do estabelecimento também passa pelo respeito da sazonalidade, o recheio deste prato vai variando consoante a disponibilidade do produto. Esta possibilidade de unidade e intimidade com o alimento fez com que Shay Ola, chefe do Queimado, escolhesse deixar Londres e habitar o Bairro Alto, trazendo-lhe o “cheiro a fogo”, porque a alquimia dá-se entre a mão e o carvão. Hoje, emanará do kebab de barriga de porco Szechuan. Estas orientações são também praticadas no Bicho Mau, que nos dá uma sugestão apresentada na semana passada no restaurante. O bicho é o porco mangalitsa, uma raça de origem húngara criada no Fundão por um belga, cuja mortadela é acompanhada com molho de tomate e couve-roxa caramelizada. Joana, do Ela Canela, não deixa o corpo fora desta relação com o ambiente, e a saúde é o desejo presente em cada ingrediente. Não recorre a produtos processados nem a açúcares refinados e procura confeccioná-los logo de início, os leites, as manteigas, os molhos, as infusões. Também aqui é o menu que segue o compasso dos produtos disponíveis semanalmente. Contudo, há uma sobremesa que tem lugar cativo, o Pérola Negra, um bolo vegano de cacau, escrito a giz na ardósia que está em cima do balcão do Pigmeu. Stephanie, cozinheira do Senhor Uva, bar de vinhos orgânicos e restaurante vegetariano, ficou encantada com a frescura e beleza dos produtos locais. Stephanie é canadiana e comenta a escassez de alimentos provocada pelas baixas temperaturas no seu país. Enumera aleatoriamente os ingredientes que descobriu em Portugal, que pulverizam e dão cor ao seu pequeno espaço de trabalho: “o azeite verde de Marvão, de árvores com 100 anos, as nozes, os pistachos, os picles, a curgete, a beringela da menina do mercado, o pêssego, o queijo, as sementes, os ovos, a manteiga, as ervas, as tâmaras, a hortelã do Vasco Pinto”. Através deles, quer que as pessoas “se surpreendam com a possibilidade dos vegetais”. Escolheu surpreender-nos com beringela shiso, beringela cozinhada com vapor, molho tamarindo, tamari, folha de shiso, amendoim, ameixa, kenshi e um pimentão coreano especial.

Estes cozinheiros e cozinheiras de diversas faixas etárias, nacionalidades e cozinhas, partilham o elogio da simplicidade. Mateus Freire, chefe do Faz Frio, trabalhou alguns anos em fine dining, que se caracteriza pela criatividade e minimalismo. Contudo, não quis continuar o seu percurso no conceito e, verificando que a cozinha portuguesa está a desaparecer e descobrindo que o seu sabor é a “simplicidade”, quis agarrar no tacho, no tabuleiro e na travessa. Mateus defende que é importante “não descuidar, não perder as nossas recordações”. Tendo a memória sabores, o chefe procura religar os tempos ao “buscar pratos que as pessoas já não estão habituadas a comer em Lisboa”, conferindo-lhes uma leveza, como o que confeccionará nesta festa, xerém de amêijoas com cachaço de porco preto, um prato que nos traz o Algarve. Também Joaquim Leal, do Sal Grosso, “uma taberna portuguesa antiga, muito rústica”, como apresenta, onde nem a coca-cola entra, tem essa preocupação, a de deixar as raízes na boca: “as pessoas devem fazer aquilo com que têm uma relação pessoal e histórica”. “Quase todas as receitas portuguesas começam assim: uma mão cheia de sal.” As mãos de Joaquim seguem as leituras de Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto. Os pratos principais vêm da experiência incorporada nas aldeias alentejanas que habitou, o rabo de boi, o frango à beira e o bacalhau com migas de broa. Tal como Miguel, diz usar produtos tidos como “de segunda e de terceira”. A cerveja é artesanal e produzida por uma pequena fábrica que pertence ao restaurante. Chama-se “boca suja” porque os taberneiros têm muitos palavrões entre os dentes. A simplicidade permite a revelação do Essencial, cujo chefe é Miguel Lança, que sublinha a importância de evitar o desvio da atenção, que acontece quando há um excesso. António Galapinho, do Prado, quer descomplicar a conversa, reforçando que a alimentação é o hábito mais básico e mais primário. De poucas palavras faz a tosta de cavala fumada, cujo sabor predominante é o fumo e as ervas.

Pelo sabor, partimos de Lisboa para o mundo e a ela regressamos cheios de cheiros e amigos. Podemos espreitar Rabim Pahari, cozinheiro do restaurante mexicano Pistola y Corazón, confeccionando o taco “Volcan Al Pastor”, montando o queijo, os pedaços de porco preto, cobertos de ananás, coentros e cebola, sobre a tostada. A cozinha francesa também é saboreada com a sobremesa do Essencial. Trata-se de um mil-folhas de baunilha com caramelo salgado. Distingue-se pela leveza da massa folhada, conseguida através da utilização de massa folhada invertida e da ligação entre a baunilha e caramelo. Juntamente com Portugal, Itália, Áustria, Alemanha, Hungria, Grécia, Espanha, França, são-nos dadas a beber pela mão de Giulia e Romina do Vino-Vero, garrafeira, bar de vinhos e restaurante. De Veneza para a Graça e da Graça para o Pigmeu, os vinhos naturais são servidos ao copo. Concretizarão o gesto do desejo de que a vida seja boa, expresso no brinde dos amigos.

"Volcan Al Pastor", confeccionado por Rabim Pahari

Giulia, do Vinho Vero, com o aroma a Itália na língua, descreve a sua equipa de trabalho: "Gostamos muito de beber. Bebemos muito e queremos beber ainda mais".

A proximidade é vivida entre os restauradores, os restauradores e os produtores, mas, também, com e entre os clientes. No Essencial, são frequentes os chamados “jantares a quatro mãos”, partilhando-se a preparação do prato com chefes convidados. Na Comida Independente, a mesa de madeira pintada de branco é comprida, convidando à reunião de quem por ali petisca. No Sal Grosso, não há um prato para cada pessoa e juntam-se casais desconhecidos à mesa. “O convívio e a partilha é uma coisa muito portuguesa à mesa”, diz Joaquim. Esta familiaridade também ganha expressão no facto de não haver empregados de mesa e serem os próprios cozinheiros a servir. Dentro de alguns minutos servirá a sua cozinha, sob a forma de escabeche de coelho em pão frito em azeite, que entrará por esta sala dentro e lhe trará o aroma mais intenso do vinagre e da cebola.

As conversas são deixadas a meio. Os cozinheiros e as cozinheiras são chamados para dentro. Miguel Peres faz o briefing. Termina-o, dizendo-lhes: “As pessoas vão querer falar convosco. Deixem-nas espreitar. Estão à vontade, estão em casa.”

De repente, a sala ilumina-se e fica repleta de clientes de todas as idades. Casais, grupos de amigos, famílias, formam uma fila que ultrapassa a porta de entrada. As mesas de madeira são altas e sobre elas vão aparecendo a curiosidade e os petiscos. Inês Pinhão convidou as amigas. Estão na esplanada e provam o kebab de barriga de porco Szechuan, o taco “Volcan Al Pastor” e a tosta de cavala. Inês soube do evento através do congresso que integra a Lisbon Food Week. Embora não trabalhe na área, é a ela que se dedica nos tempos livres. Já Luciano é cozinheiro no restaurante TodoMundo. Embora este ofereça a volta ao mundo em algumas horas, Luciano é especialista em cozinha italiana. Tomou conhecimento do evento através do Instagram e logo quis vir para conhecer novos cozinheiros. Ouve o seu nome e vai recolher o prato ao balcão. Entre as mãos traz o escabeche de coelho e a sandes de porcheta. Como muitas outras pessoas, não conseguiu mesa e vai circulando pelo passeio que traz alegria à rua e se tornou a extensão da casa. A noite vai entrando e as luzes com uma intensidade menor permitem-nos explorar outros sentidos. Os DJ são os CHILL OUT Experiment.

Miguel Peres está no último posto, onde os clientes deixam a senha e recebem o petisco.

Embora satisfeitos, porque nos alimentamos uns dos outros, não terminámos. Ficamos ao serão com um copo de vinho na mão. Que siga a festa.

Texto de Raquel Botelho Rodrigues
Fotografias de Raquel Botelho Rodrigues
O Gerador é parceiro do Pigmeu

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