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“Women On Scene”: “elas existem, estamos aqui”

“Dar visibilidade à singularidade da voz de mulheres, que, através da criação artística no teatro…

Texto de Flavia Brito

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“Dar visibilidade à singularidade da voz de mulheres, que, através da criação artística no teatro e na performance, projetam o seu modo de viver e de partilha, na reflexão, vivência e transfiguração do mundo”. Este é o propósito da Revista WOS – Women On Scene, que, lançada pela Arte Pública e Produções Acidentais em novembro do último ano, propõe a intervenção e reflexão sobre a contextualização social e política do trabalho criativo das mulheres, através do testemunho das próprias.

Na capa desta primeira edição, encontramos Fernanda Lapa (1943-2020) a fazer de Leni Riefenstahl na peça Marleni – Divas Prussianas, Loiras como Aço, produzida pela Escola de Mulheres, em 2014. No interior, cruzamo-nos com dramaturgas, encenadoras, performers-autoras, também nos domínios plástico e musical. Mulheres autoras, e criadoras, de diferentes gerações e origens, com diferentes percursos e opções artísticas. De Alexandra Diogo a Fernanda Lapa – a quem é dedicado este primeiro número –, passando por Catarina Santana, Julieta Aurora Santos e Sara Barros Leitão, a quem se juntam Isabél Zuaa, Lucinda Loureiro, Madalena Victorino e muitas outras. Ao todo são 36 mulheres do mundo das artes performativas, que, ao longo de 160 páginas, nos seus variados discursos, nos dão a conhecer ideias e identidades, “numa Europa aparentemente equitativa em relação às oportunidades entre homens e mulheres, mas ainda dominada por preconceitos e omissões”. Num exercício de auto-representação, falam sobre o que fazem, e porque o fazem, partilhando também as suas histórias de vida, que inúmeras vezes se misturam com a criação artística.

A estas mulheres, Gisela Cañamero, coordenadora do projeto, pretende que se somem mais, e mais, a cada edição da revista, que se pretende semestral. A partir de Beja, onde há muito se estabeleceu e onde fundou a companhia profissional de teatro Arte Pública, a encenadora, dramaturga e performer, fala-nos desta publicação que surge como complemento do Ciclo WOS, iniciado pela Arte Pública, em 2020, com espetáculos onde a temática ou a presença no feminino é realçada.

Gerador (G.) – Já existia um ciclo Women On Scene. Como é que nasce esta Revista WOS?  E com que ambição?

Gisela Cañamero (G.C.) Primeiro, nasce esta marca Women On Scene, depois de refletir que grande parte do meu trajeto pessoal, enquanto profissional do teatro, se organiza muito em torno de dar vozes às mulheres, sejam personagens, sejam autoras – as vozes silenciadas, como digo – e por, de algum modo, querer dar-lhes visibilidade. Uma visibilidade que é, primeiro, local, porque os trabalhos são muitas vezes feitos em Beja – embora muitos deles tenham, nestes dois últimos anos, percorrido o Baixo Alentejo. Mas todos sabemos como é difícil levá-los daqui da região para as grandes urbes – Lisboa, Porto, Coimbra – ou para outros territórios. Então, a marca WOS vem desta necessidade de dar esta visibilidade. Mas sempre existiu esta vontade de dar voz às mulheres criadoras, portanto, foi algo que foi construído em paralelo: o germinar da ideia de fazer uma publicação convidando outras criadoras a colaborarem com os seus depoimentos, e todo o ciclo Women On Scene, que, na realidade, fazia parte de uma programação que já é normal na Arte Pública – com as criações próprias levadas a cena nestes dois últimos anos, exclusivamente participadas por mulheres: Poderia a Poesia, Ainda Que Pese, A Pastora Leitora, Íris, a Menina que falava o que pensava, Loucas, não como as outras, Adorável Criatura.

G. – Porque é que são “vozes silenciadas”?

G.C. – Porque sabemos – e repare, a revista é uma prova disso – que, apesar de existirem tantas criadoras, de facto, a visibilidade que elas têm no meio artístico português é muito reduzida, a menos que seja uma intérprete conhecida, imaginemos. Uma atriz de telenovela tem visibilidade, mas se for uma destas criadoras multifacetadas e multitarefeiras, como são todas estas criadoras que dão o seu depoimento… Porque isto é que é verdadeiramente difícil: ser uma criadora em vários aspetos, ou seja, escrever, dirigir, interpretar e, ainda por cima, criar o tempo e a força para divulgar, promover, negociar, e dar visibilidade ao seu trabalho. Porque muitos destes percursos são muito solitários, exigem uma grande força anímica, não apenas na criação, mas também na atenção e no esforço que exigem os processos inerentes à circulação da criação, no “dar a ver” a criação, ou na força e perseverança que montar uma estrutura profissional exigem.

G. – Esse trabalho é, ainda, mais facilitado para os criadores?

G.C. – A visibilidade, tendo em conta o número de criadoras, o número e a qualidade das suas criações, a visibilidade que elas têm no território nacional, é muito inferior à dos criadores homens. E o mundo das artes performativas e, nomeadamente, o mundo dos programadores, que são quem acolhe, quem pode fazer circular os produtos daquelas criações, ainda é um mundo masculino. Mas isto é extensível a toda a sociedade portuguesa, porque quando vamos ver, de facto, no poder local, quem está nas autarquias – e eu falo nas autarquias, porque as autarquias são um ponto-chave para a circulação das criações – nós vemos que os chefes dos departamentos da cultura, os vereadores da cultura, os programadores dos teatros, ainda são maioritariamente homens.

G. – Temos, nesta revista, cerca de 30 criadoras mulheres. Para além de um espaço de testemunho e de partilha dos seus percursos, dos seus trabalhos e das suas conceções, este é também um espaço de ativismo, da maneira como olham para as artes performativas e para as condições em que a criação é feita e como circula em Portugal?

G.C. – São testemunhos de 36 criadoras, de mais quatro intérpretes nos “Caminhos Cruzados” e de mais uma mulher e um homem como programadores culturais.

Há uma coisa muito interessante que me aconteceu à medida que ia recebendo os testemunhos, ou à medida que ia lançando os desafios, que foi o acolhimento, por um lado – e se era suposto ter um bom acolhimento por parte das criadoras mais velhas. A grande surpresa tive-a com o acolhimento e o fazerem-me sentir a grande necessidade de uma intervenção como esta por parte das criadoras mais jovens. Elas são as grandes ativistas, se excetuarmos um ou outro depoimento de pessoas da minha geração. Mas as criadoras mais jovens são muito ativistas em termos dessa luta por uma igualdade que elas sentem ainda não estar conseguida.

G. – Porque é que acha que isso acontece. Porque é que são as criadoras mais jovens a adotar uma postura mais ativista, e não as mais velhas que certamente já lidaram durante mais anos com essa “desigualdade”?

G.C. – Temos uma Fernanda Lapa que diz exatamente: "O sentimento comum era de mal-estar, porque todas nós percebíamos que ficávamos sempre à espera de ser escolhidas e nunca tínhamos a hipótese de escolher.” Mas, de facto, nas criadoras mais jovens há também essa lucidez de compreenderem que as coisas não estão fáceis. As coisas nunca foram fáceis para quem quer viver das artes performativas, teatro, performance. Nunca foram fáceis, nunca foram facilitadas, mas o sentimento perante a injustiça da dificuldade erguida – porque se é uma criadora e não um criador – de se chegar a determinados sítios, a determinados pontos, ou de a luta ser mais difícil, ou mais dificultada, é mostrado nestes testemunhos com muita clareza. 

G. – A revista pretende dar "visibilidade à singularidade da voz das mulheres". O que é que caracteriza a voz das mulheres e de que forma é que, uma mais expressiva voz das mulheres nas artes performativas, pode mudar o mundo?

G.C. – Acho que elas já mudam. E é isso que é dito naquela introdução, ou seja, nas “derivações, transfigurações e ruturas das narrativas contemporâneas”. Essas transfigurações e ruturas, ao serem colocadas em cena, ao serem trabalhadas como ideia, marcam um tempo. Agora a questão é que haja visibilidade, que haja uma justa visibilidade para estas criações. Devo dizer também que a inexistência da justa visibilidade para as criações não é apenas um problema das criadoras mulheres. Penso que todos os criadores se deparam com esta dificuldade, com a ausência de mecanismos. Nós temos muitos criadores, mas as verbas – insuficientes – que são investidas pelo Estado para as criações acabam por não constituir impulso para uma economia da cultura, quando as criações estão condenadas a nascer e morrer quase no mesmo lugar. E, portanto, a circulação das obras, a circulação das criações, é algo que deveria merecer, do Ministério da Cultura, uma atenção particular, porque a obra, como um livro que precisa de ser lido, se não circula de mão em mão, nasce e morre no mesmo sítio. Não pode ser. O tempo, esforço, dinheiro e talentos colocados em cada criação deveriam implicar a sua circulação por todo o território nacional, ser vista, percecionada e discutida pelo maior número de públicos possíveis, para que possa levar à transfiguração, à rutura ideológica e estética, ao levantar de novos questionamentos. A ausência de mecanismos estruturais que favoreçam e estimulem a circulação das obras é um problema que é nacional e que atinge tanto homens como mulheres.

Agora, no que se refere a este projeto, à Women On Scene, aquilo que nos interessou foi mesmo realçar que, "olha”, elas existem, estamos aqui, e por muito que não lhes queiram dar voz ou tempo de antena, ou seja o que for, elas continuam a trabalhar, continuam a “malhar” muitas vezes em ferro frio, mas elas estão aqui. Portanto, elas existem e as obras que elas fazem continuam a existir. Elas continuam a produzir, apesar de todas as dificuldades, porque as mulheres têm esta caraterística de serem muito resilientes, de não desistirem perante o primeiro obstáculo, de continuarem em frente, de acreditarem em si próprias para além de qualquer estímulo externo. Há uma pulsão interna que as faz criar e partilhar, e respondem muito a essa pulsão interna, muitas vezes sacrificando a sua vida pessoal. E as mulheres – pelo menos as mulheres que conheço e que tive oportunidade de conhecer melhor nestes depoimentos – para além da sua capacidade de trabalho, de organização, do seu talento e da sua criatividade, são extremamente corajosas.

Nesta primeira edição da Revista WOS, podemos encontrar textos redigidos por Maria João Brilhante, Alexandra Diogo, Ana Ademar, Ana Rocha, Anabela Mira, Beatriz Baptista, Joana Brito Silva, Mariana Fonseca, Susana Paixão, Carlota Lagido, Carolina Santos, Catarina Santana, Catarina Vieira, Célia Martins, Cláudia Dias, Cristina Carvalhal, Cristina Paiva, Fernanda Lapa, Filipa Francisco, Gisela Cañamero, Isabel Mões, Isabél Zuaa, Julieta Aurora Santos, Lídia Martinez, Lígia Soares, Lucinda Loureiro, Luísa Pinto, Luzia Paramés, Madalena Victorino, Margarida Mestre, Raquel André, Sandra Maya, Sara Barros Leitão, Sara de Castro, Sarah Adamopoulos, Sofia Santos Silva, Telma João Santos, Carmen Jesuíno, Cristina Taquelim, Sara Castanheira, Tânia Sacramento, Natália de Matos e Paulo Pires.

Texto por Flávia Brito
Fotografias da cortesia da Arte Pública

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