Dezoito meses após o início da pandemia em Portugal, chega agora o tão aguardado momento: a reconquista da normalidade. Se o verão nos brindou com raios de sol, dias longos e eventos culturais por todo o país, o outono avizinha-se ainda mais soalheiro, com um maior número de espetáculos em agenda e com as salas de espetáculos a funcionarem com lotação completa. Nos bastidores, há a vontade de voltar, de reerguer este setor tão afetado. Mas permanece a dúvida: vamos voltar a criar e consumir cultura como antes de 2020?
Em julho, entrei pela primeira vez num estúdio de dança desde o início da Covid-19. Após mais de um ano a dançar através de um ecrã, o espaço e a luz do estúdio pareceram-me infinitos. Tudo então se alinhava para a retoma dos espetáculos ao vivo. Em outubro, irei finalmente entrar num teatro, pela porta dos artistas, desarrumar o camarim e assistir aos ensaios desde a plateia e rompimentos. Vou sentir o calor dos projetores por todo o corpo e a textura do linóleo nos meus pés. Estarei de volta, mas não sou a mesma. Tal como nenhum de nós é. Voltar ao palco não é um apenas um retorno - é o ato de renascer.
Nos longos dias de confinamento, foram muitos os artistas que se reinventaram e redesenharam um futuro que passa mais do que nunca pelo digital. Os espetáculos em streaming permitiram democratizar o acesso à cultura ao chegarem a um maior número de pessoas, mesmo com a perda de uma parte essencial: experienciar ao vivo a fisicalidade do movimento. Hoje, podemos assistir a uma performance que está a acontecer noutro país, num fuso horário diferente. O nosso leque de oferta é maior do que era antes da pandemia. E são muitos os coreógrafos e produtores que encontraram no streaming uma nova forma de chegar ao público que se encontra longe e que não viria ao teatro. Se falamos cada vez mais num modelo híbrido de trabalho no pós-pandemia, também nas artes performativas sentimos que este veio para ficar; a pandemia abriu a possibilidade de escolha, não só para espectadores mas igualmente para criadores.
Deste longo período de isolamento e restrições sociais, foram inúmeras as lições e fontes de inspiração que irão definir o que vem a seguir. O sentido de comunidade e união do setor esteve bem presente - talvez como nunca. Movimentos como “Unidos pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal” surgiram em pleno caos pandémico para relembrar que os artistas são agentes essenciais da sociedade portuguesa. De como um país sem cultura perde a sua identidade. Se levarmos para os palcos uma grande lição sobre os últimos dezoito meses, é a de que a dança, as artes e a cultura são fulcrais para todos nós. Que a sustentabilidade do setor é ainda mais urgente, e que é da comunidade artística que parte a força para lutar por uma cultura menos precária, mais apoiada e menos fechada em nichos. Não podemos subir mais ao palco sozinhos depois da pandemia. Subimos em coletivo, em nome de todos os que trabalham para criar cultura.
A fisicalidade na dança é também agora mais valiosa do que nunca. Se antes já o sabíamos, temos agora todas as certezas. O poder transformador desta prática, tanto para quem assiste como para quem pratica, ajudou muitos a navegarem pelas incertezas do confinamento de uma forma mais ativa e calma. A dança manteve firmes muitos de nós nos períodos mais críticos, em que voltar ao corpo era a solução para silenciar as más notícias que vinham do exterior. A dança faz-se de corpos, de pessoas e para pessoas. Esta conexão, embora restringida, nunca desapareceu. A resiliência de coreógrafos, professores e bailarinos provou que a dança está sempre disposta a adaptar-se a novas necessidades, sem perder o seu valor, para continuar a dar aos outros o seu bem mais precioso: a pura vivência do movimento.
Quando voltar a pisar um palco, não me vou esquecer dos desafios e aprendizagens que o último ano trouxe. Não me vou esquecer das novas possibilidades que foram surgindo. Não me vou esquecer da flexibilidade em mudar, da vontade de continuar a dançar, mesmo entre quatro paredes. Não me vou esquecer das pessoas com quem dancei digitalmente, espalhadas por mais de dez países. Não me vou esquecer do que é preciso ser feito para termos uma cultura mais próspera. Não me vou esquecer da ausência de contacto físico. Não me vou esquecer de que não sou mais a mesma. Que vejo a dança de forma diferente. Que danço de forma diferente. Não me vou esquecer do que todos nós celebramos: o estarmos finalmente de volta. A cultura não é a mesma - está mais forte do que nunca.
-Sobre Inês Carvalho-
Inês é bailarina e professora, gestora de comunicação cultural e escreve regularmente sobre o que mais gosta: dança. A mente inquieta levou-a a criar a agência de comunicação Diagonal Dance. O corpo inquieto levou-a a dividir o seu tempo entre Portugal e o Reino Unido.