“Não preciso de ouvir a tua voz. Fala-me só da tua dor. Quero saber da tua história e voltar a contar-ta à minha maneira, como que se tornasse minha, de mim mesma. Reescrevendo-te, me reescrevo. Sou autora, autoridade. Sou colonizadora do assunto sobre o qual falo.” , bell hooks (tradução livre)
O som das mulheres no Afeganistão tornou-se silêncio.
Calou-se Zohra, a deusa persa da música.
Paralisaram-se no ar as batutas das primeiras maestras no país e, de repente, ganharam ferrugem os instrumentos da orquestra que carrega o nome da deusa Zohra desde 2015. Esta orquestra é constituída por mulheres jovens que foram as primeiras a estudar música em trinta anos. Apesar das contínuas ameaças e atentados – que o exército dos Estados Unidos não teve interesse em travar – nunca estas mulheres-meninas recearam apontar os seus instrumentos contra a morte dizendo: música.
Voltou o regime Talibã e agora só fora do Afeganistão, que Zohra continuará a tocar a sua história. Será aqui em Portugal que a orquestra e quem por ela trabalha viverão ao lado das suas compatriotas da equipa de futebol feminina que já aqui se encontram. Este gesto que Portugal tomou vai para além da solidariedade, ao assumir uma postura que reconhece a importância das mulheres afegãs na cultura e no desporto. Mulheres que estarão aqui para nos lembrar que são em si uma resistência, a qual ultrapassa a imagem uniforme da mulher vítima, coberta, que tem percorrido ultimamente os media portugueses, como símbolo de um Afeganistão por inteiro. É uma representação que limita a capacidade de perceber a complexidade, a pluralidade e diversidade na vida destas mulheres. Estas imagens que têm sido divulgadas em Portugal foram acompanhadas, muitas vezes, por um discurso de “especialistas repentinas” da situação afegã, apelando à “salvação” das mulheres da sua própria cultura. Mulheres estas em relação às quais se sentem “superiores” e das quais têm “pena”, como se as sociedades ocidentais tivessem já fechado por completo o capítulo da opressão das mulheres e outras identidades sexuais e de género; como se só as mulheres do Sul global tivessem que ser salvas, seguindo exatamente o mesmo caminho das mulheres ocidentais.
Talvez a chegada de uma equipa de futebol e uma orquestra de mulheres afegãs, possa fazer lembrar-nos da total desproporcionalidade, entre outras coisas, do investimento no futebol masculino e feminino. Poderia também apontar para a ausência de uma orquestra portuguesa de pessoas que se identificam como mulheres, necessária para dar mais visibilidade às mulheres no mundo da música.
O artigo “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação?” escrito quase há vinte anos, pela antropóloga feminista Lila Abu-lughod, fala precisamente desta narrativa que abriu o caminho para a intervenção norte-americana, apagando a violência e horror que trouxe à vida das mulheres. Semelhantes aos antigos discursos de feminismo colonial, mulheres como Hillary Clinton e Laura Bush tinham vindo a falar dos direitos das mulheres muçulmanas com a tropa ao lado, utilizando os seus corpos para justificar moralmente as operações militares. Hoje, este discurso também presente em Portugal, recorre à cultura e às práticas religiosas para explicar a dominação Talibã, desviando a atenção sobre assuntos graves, como por exemplo, o papel que os Estados Unidos e Europa tiveram no regresso dos Talibã.
Tão actual é a visão de Abu-Lughod que continuamos a receber petições de mulheres ocidentais pretendendo “ajudar” as mulheres muçulmanas a retirar o véu, mas nunca uma petição defendendo o direito das mulheres palestinianas à segurança contra os bombardeamentos israelitas, pedindo à Europa sanções contra este governo que retira às palestinianas os seus direitos básicos. Não é fácil mobilizar as ondas de solidariedade se não for um caso de homens muçulmanos a oprimir mulheres muçulmanas. Abu-Lughod questiona quantas daquelas que se sentiriam bem a salvar as mulheres afegãs dos Talibã pediriam uma redistribuição da riqueza, tirando do seu próprio bolso algo para que outras mulheres pudessem ter o que deveria ser um direito humano universal.
Inspirado pelo artigo acima mencionado, o título inicial do meu artigo foi “as mulheres afegãs precisam de salvação?” após uma pesquisa encontrei um excelente artigo com este mesmo título de Nasrin Khandoker, inspirado também por Abu-lughod. Este artigo não só critica a retórica do salvamento, ligada à narrativa colonial missionária que assume a superioridade ocidental, mas também critica as vozes que falam da chegada dos Talibã como sendo “libertação do Afeganistão do colonialismo”, como se a colonização das mulheres e de outras minorias sexuais não contasse. Sem dúvida, neste momento crítico, as mulheres afegãs precisam de solidariedade transnacional, uma solidariedade não para com a outra inferior, mas uma solidariedade horizontal de uma luta em comum contra todas as opressões para conquistar toda a liberdade. A liberdade não se divide, conquista-se. Quando perguntamos se Zohra, a deusa da música, precisa de salvação, talvez poderíamos lembrar que mesmo tendo este nome, ela é uma deusa.
-Sobre Shahd Wadi-
Shahd Wadi é Palestiniana, entre outras possibilidades, mas a liberdade é sobretudo palestiniana. Tenta exercer a sua liberdade também no que faz, viajando entre investigação, tradução, escrita, curadoria e consultorias artísticas. Procurou as suas resistências ao escrever a sua dissertação de Doutoramento em Estudos Feministas pela Universidade de Coimbra que serviu de base ao livro “Corpos na trouxa: histórias-artísticas-de-vida de mulheres palestinianas no exílio” (2017). Foi então seleccionada para a plataforma Best Young Researchers. Obteve o grau de mestre na mesma área pela mesma universidade com uma tese intitulada “Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinianas entre duas resistências” (2010). Para os respectivos graus académicos, ambas as teses foram as primeiras no país na área dos Estudos Feministas. Na sua investigação aborda as narrativas artísticas no contexto da ocupação israelita da Palestina e considera as artes um testemunho de vidas. Também da sua.