Em Março foi inaugurada no MAAT a exposição Interferências, que se comprometia com a afirmação de diferentes expressões da cultura urbana, “explorando itinerários narrativos da cidade através de um diálogo que privilegia o museu enquanto espaço crítico, lugar de encontro entre várias comunidades e sensibilidades”. Sob curadoria de Alexandre Farto, António Brito Guterres e Carla Cardoso, cumpriu o seu propósito de trazer para um espaço cultural mainstream artistas periféricos, seja de exposição ou geografia. Ao completar-se o percurso, percebe-se que, apesar da contemporaneidade dos trabalhos da maioria dos intervenientes, estes poderiam ter tido lugar em espaços do género há 20 anos. Não tiveram.
A manutenção das condições que levaram os criadores destes territórios a escolher o seu objecto artístico é o motivo da minha afirmação. Ainda assim, pela sua evidência, não é a questão que quero levantar. Os intervenientes assumiram o atraso da mesma, tanto através da retrospectiva nas suas peças como no ciclo de conversas que aconteceu no âmbito da exposição. Num desses debates, em que participei, falei da exclusão que espaços como o MAAT praticaram e continuam a praticar ainda hoje.
Na plateia estava o director do museu, João Pinharanda, que não hesitou em concordar. No entanto, noutra conversa no mesmo dia, uma interveniente insinuou que os artistas destes territórios é que se auto-excluem. O desconforto foi tão grande que um dos artistas que participou na exposição saiu da sala. Isto levou-me a questionar a preparação, ou a falta dela, dos dirigentes culturais para a necessária reparação dos danos causados pelas instituições culturais. Saberão das suas responsabilidades ao disponibilizarem os espaços que dirigem? Têm de garantir que esse compromisso não é contaminado com intervenções contraproducentes, como no exemplo supracitado. Ao trabalho de reparação terá de ser aliada a coerência do discurso.
Apesar de o debate sobre reparações estar em cima da mesa, sobretudo no que diz respeito aos museus - incluindo questões importantes como a restituição de artefactos usurpados durante o colonialismo -, esse não deve ser o único caminho. Que dizer sobre outros veículos de cultura como a música, a televisão, o cinema e o teatro? No caso do primeiro, talvez seja o mais democrático, com o acesso generalizado através de plataformas de streaming. Mas tendo em conta que falar sobre reparações é falar sobre fazer-se justiça, é preciso lembrar os que não tiveram espaço na sua altura.
Se hoje vemos em festivais artistas de rap crioulo, há 20 anos estes só apareciam nos media como objecto de discriminação. É preciso reconhecer a importância deste género no registo daquilo que é a experiência afrodescendente em Portugal. Se hoje muitos conseguem viver da música, podemos imaginar quantas outras carreiras não teriam sido cumpridas se não tivessem sido alvo de escrutínios e preconceitos. No teatro, Aurora Negra, O Riso Dos Necrófagos e Cosmos são alguns dos espectáculos que têm reclamado esse espaço da negritude em palco e nas programações, onde ainda há muito por fazer. Na televisão e no cinema a carência é ainda maior.
Por mais que algumas instituições culturais trabalhem no sentido de reparar os danos do passado, a narrativa dominante na esfera pública contribui para que outras entidades não sintam urgência em fazê-lo e que o público em geral não esteja preparado para esse confronto. No entanto, é premente que se normalize a conversa sobre colonialismo, racismo, políticas de habitação, desigualdade de género e de classe, porque todas estas formas de opressão usaram-se da cultura em algum momento.
-Sobre Airton Cesar Monteiro-
Airton Cesar Monteiro é imigrante cabo-verdiano, licenciado em Relações Internacionais (não praticante) e agitador social por convicção. Colabora para o site Comunidade e Cultura.