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Tabagismo: quem são os alvos de uma indústria “perversa” que se reinventou?

O tabagismo é o primeiro fator de risco modificável de mortalidade prematura em Portugal. Apesar dos esforços para combater esta epidemia, o aumento do consumo de cigarros eletrónicos e de tabaco aquecido tem feito soar vários alarmes. Estes novos produtos estão em expansão e são a aposta de uma indústria que, garantem os pneumologistas, quer criar novas dependências, através de um “marketing agressivo” e com premissas enganadoras, virado sobretudo para os mais jovens. Defendem por isso uma legislação mais restrita e o aumento da vigilância sobre as tabaqueiras, uma indústria lucrativa, que é acusada de desenvolver hoje produtos “mais tóxicos” e “mais viciantes”. Mas há quem vá mais longe e fale mesmo em abolir o consumo às novas gerações – para bem da saúde pública, mas também da economia, do bem-estar social e do ambiente.

Texto de Flavia Brito

Ilustração de Frederico Pompeu

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O tabagismo é, ainda hoje, o primeiro fator de risco modificável de mortalidade prematura em Portugal. Apesar dos esforços para combater esta epidemia, o aumento do consumo de cigarros eletrónicos e de tabaco aquecido tem feito soar vários alarmes. Estes novos produtos estão em expansão e são a aposta de uma indústria que, garantem os pneumologistas, quer criar novas dependências, através de um “marketing agressivo” e com premissas enganadoras, virado sobretudo para os mais jovens. Defendem por isso uma legislação mais restrita e o aumento da vigilância sobre as tabaqueiras, uma indústria lucrativa, que é acusada de desenvolver hoje produtos “mais tóxicos” e “mais viciantes". Mas há quem vá mais longe e fale mesmo em abolir o consumo às novas gerações – para bem da saúde pública, mas também da economia, do bem-estar social e do ambiente.

Foi depois das aulas, “em convívio” com amigos, que Tomás fumou pela primeira vez aos 17 anos. Aos 19, tornou-se fumador habitual, mas de tabaco aquecido. "Na minha cabeça, faz menos mal", diz o jovem de 21 anos ao Gerador. Apesar de fumar de duas a três vezes por dia, considera que este não é um vício. "Porque só fumo quando me lembro”, explica. Será mesmo assim?

De acordo com o último Inquérito Nacional de Saúde, em 2019, mais de um milhão e meio de portugueses eram fumadores de tabaco, incluindo tabaco aquecido. Representavam 17 % da população residente em Portugal com 15 ou mais anos, face a 20 % em 2014. Por isso, registava-se uma diminuição em termos gerais na prevalência tabágica no país.

Os objetivos de redução do consumo estão, no entanto, cada vez mais ameaçados pelos novos produtos de tabaco e de nicotina, que se têm disseminado no mercado e que têm conseguido angariar cada vez mais clientes – entre eles, os mais jovens. “Os estudos em meio escolar têm vindo a mostrar que cada vez mais jovens estão a consumir cigarros eletrónicos e tabaco de aquecimento”, revela, ao Gerador, Emília Nunes, diretora do Programa Nacional de Prevenção e Controlo do Tabagismo (PNPCT), da Direção-Geral da Saúde.

Mas quais as razões de os jovens continuarem a fumar quando há tanta informação sobre os malefícios já comprovados do tabaco? Na opinião de Sofia Ravara, coordenadora da Comissão de Trabalho de Tabagismo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), os jovens “não começam a fumar por curiosidade, nem porque gostam de riscos. Começam a fumar o produto como resultado do marketing agressivo, que é especialmente dirigido a eles”.

Estes novos produtos são apresentados pela indústria, como uma alternativa menos prejudicial à saúde para os adultos que, de outra forma, continuariam a fumar. No entanto, diversos estudos – como refere o último Relatório do Programa Nacional para a Prevenção e Controlo do Tabagismo (2020) – “confirmam que estes produtos estão a ser ativamente promovidos junto das gerações mais jovens, com recurso a novas técnicas de marketing, em particular nas redes sociais e em eventos juvenis”.

Apesar de, em Portugal, a publicidade direta e indireta ao tabaco, aos cigarros eletrónicos e ao tabaco aquecido ser proibida, segundo a responsável do PNPCT, não existem estudos que monitorizem de forma consistente e continuada o grau de exposição da população portuguesa a este tipo de publicidade.

A SPP tem vindo, contudo, a alertar para a existência de influencers e bloguistas que são pagos para publicitar os cigarros eletrónicos e o tabaco aquecido. “Acho que nem sequer os bloguistas se apercebem de que são pagos para isso, da perversidade de viciar jovens”, afirma Sofia Ravara. Como explica a também professora da Universidade da Beira Interior (UBI), os mais novos “têm um cérebro extremamente plástico”. E estando esse órgão ainda em desenvolvimento – até por volta dos 24 anos, dizem os cientistas – “a probabilidade de experimentarem [nicotina] e ficarem logo dependentes é enorme”.

De acordo com os resultados do último estudo sobre o consumo de álcool, tabaco, drogas e outros comportamentos aditivos e dependências (ECATD-CAD 2019), 38,4 % dos alunos do ensino público, entre os 13 e os 18 anos, diziam já ter experimentado fumar ou vapear.

Para a médica pneumologista, “esta múltipla experimentação é também muito perigosa”, uma vez que a acumulação de experiências contribuem para o reforço da dependência. “Mesmo que os jovens achem que só estão a experimentar e que depois não há consumo continuado, não é verdade. A probabilidade de passarem a consumo regular é muito alta.”

Cigarros “mais tóxicos” e “mais viciantes”

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), nove em cada 10 fumadores começam antes dos 18 anos. Em 2015, Portugal era o segundo país da União Europeia (UE) onde se começava a fumar mais cedo.

Usar produtos de nicotina, seja cigarros convencionais, eletrónicos ou tabaco aquecido, provoca uma grande dependência. “Sabemos que é muito difícil alguns fumadores deixarem de fumar, para não dizer impossível que todos os fumadores deixem de fumar. Mas é muito mais fácil prevenir o consumo e proteger as camadas mais jovens, que são as populações mais vulneráveis”, sublinha a Ravara, que descreve, perentoriamente, uma indústria “que manipula os cigarros para viciar mais as pessoas, para não perder os clientes e agarrar mais depressa os jovens”.

Os fabricantes, todavia, insistem em apresentar estes novos produtos como a melhor alternativa para aqueles que já se encontram viciados e que não conseguem ou não querem deixar de fumar – uma perspetiva de redução de dados fortemente contestada pelos pneumologistas.

A ideia vendida de que, sendo a pessoa fumadora, esta é a melhor opção a nível de saúde é falsa, garante a especialista. “A indústria fez sempre isso.” Primeiro com os cigarros com filtro, depois os light e os ultralight, enumera. “Hoje em dia, os cigarros são mais tóxicos e mais viciantes.”

“Apesar da diminuição no teor de nicotina, alcatrão e monóxido de carbono dos cigarros modernos em relação aos mais antigos, aumentou a toxicidade, fruto de uma engenharia sofisticada para aumentar a profundidade da inalação, o que aumenta o risco de dependência e toxicidade”, explica Ravara. “Sabe-se hoje que o risco de um fumador adoecer com cancro do pulmão é bastante maior do que nos anos 50, quando os fumadores fumavam mais cigarros, cigarros sem filtros e com mais alcatrão”, esclarece a professora da UBI, que não deixa dúvidas: “Os cigarros continuaram a ser fabricados para as pessoas ficarem viciadas.”

Os malefícios mantêm-se, portanto, independentemente do método ou do produto. Seja com tabaco dito tradicional, tabaco aquecido ou cigarros eletrónicos, os consumidores continuam a inalar nicotina – uma droga psicoativa, fortemente prejudicial à saúde. “A nicotina faz mal aos vasos sanguíneos, portanto, tudo quanto é patologia cardiovascular e cerebrovascular, que são as duas principais causas de morte em todo o mundo desenvolvido, fica tudo na mesma”, explica José Alves, presidente da Fundação Portuguesa do Pulmão. “Na parte respiratória é muito cedo para tomar uma atitude, até porque o efeito do tabaco no cancro do pulmão demora vinte anos a manifestar-se. Nas DPOC [Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica], demora talvez até mais do que isso”, nota o médico.

Mas, “independentemente desse longo prazo”, refere, “há n casos pneumonites [por hipersensibilidade] provocadas por estas novas formas de inalar nicotina, algumas delas fatais de imediato”. Por isso, conclui: "Os efeitos agudos são muito mais graves ou podem ser muito mais graves. Os crónicos não sabemos."

"Os efeitos agudos são muito mais graves ou podem ser muito mais graves. Os crónicos não sabemos."

José Alves

Começam, porém, a surgir fortes sinais de alerta. Em 2019, nos Estados Unidos da América foram identificados centenas de casos de doenças respiratórias graves, culminando em dezenas de mortes – incluindo jovens – que se suspeitam estarem relacionadas com o uso de cigarros eletrónicos – numa contagem que foi interrompida pela emergência pandémica da covid-19.

No caso do tabaco aquecido, a composição química do aerossol ainda não é completamente conhecida, clarifica Emília Nunes: “A investigação sugere que o aerossol do tabaco aquecido contém a maioria das substâncias nocivas ou potencialmente nocivas à saúde existentes no aerossol do cigarro tradicional, muitas em menor quantidade, mas outras em maior quantidade, bem como algumas substâncias não existentes no fumo do tabaco.”

Adicionalmente, a diretora do PNCPT considera que “a perceção errónea de que estes novos produtos têm menos risco para a saúde poderá contribuir para que muitas pessoas fumadoras desistam de deixar de fumar ou, no caso de serem ex-fumadoras, voltem a consumir.” Muitos consumidores, explica ainda, mudam para estes novos produtos, mas não deixam de consumir produtos de tabaco tradicionais, praticando um consumo concomitante, cujos efeitos são também ainda desconhecidos.

Não obstante, há estudos a mostrar que o consumo dual pode aportar mais riscos para a saúde.

Tornar o tabaco desinteressante

“Hoje em dia, já há bastante evidência de que o consumo de cigarros eletrónicos promove o consumo também dos outros produtos de tabaco”, refere Ravara, segundo quem o consumo dos cigarros eletrónicos já se aproxima do consumo dos cigarros tradicionais no grupo etário dos 13 aos 18 anos.

As coloridas embalagens dos líquidos e sabores destes produtos – que vão desde menta, morango a Red Bull ou chocolate – assemelham-se a embalagens de guloseimas, o que os tornam altamente apelativos para os jovens, considera a médica.

Uma das medidas defendidas pela pneumologista é por isso o plain packaging, ou seja, que todos os maços de tabaco, incluindo dos cigarros eletrónicos, não tenham cores nem design e mostrem fotografias reais e maiores das consequências do consumo de tabaco – atualmente são fictícias e ocupam apenas 65 % da embalagem. “Para o jovem que ainda não começou a fumar, aquelas fotografias têm um impacto do ponto de vista emocional muito negativo.”

Isto já acontece na Austrália, desde 2012, quando uma lei antitabaco pôs fim aos logótipos e às cores atraentes nos maços de tabaco. Todas embalagens foram padronizadas, passaram a ter como como cor dominante o verde-azeitona, com nome da marca em letra pequena e sem qualquer tipo de publicidade – para além das imagens e avisos chocantes.

Uma indústria em reinvenção?

Para Mónica, de 29 anos, fumar tabaco aquecido é uma experiência mais agradável. “Sendo mais pequeno e sendo possível fumar mais pausadamente, do tabaco aquecido consigo tirar mais proveito”, argumenta a jovem. “Também nunca gostei do cheiro nas mãos ou do sabor que fica no final no hálito”, acrescenta. A proibição da venda do tabaco de mentol – em maio de 2020, em toda a União Europeia – contribuiu também para esta mudança. “No tabaco aquecido, ainda é possível ter essa opção.”

O mesmo acontece com os cigarros eletrónicos. Mas, além dos sabores, Sílvia, que fuma regularmente desde os 15 anos, explana que passou a usar cigarros eletrónicos “para tentar reduzir o tabaco dito normal, de maneira a poupar dinheiro”. Atualmente, com 29 anos, faz um consumo concomitante entre ambos.

Apesar de todas as certezas, mas também incertezas e desconhecimento em torno destes novos dispositivos, estes revelam, em última análise, a capacidade da indústria tabaqueira de se reinventar e adaptar a medidas cada vez mais restritivas. Segundo José Alves, “o interesse da tabaqueira nesses novos produtos é exatamente esse: conseguir que não haja esse controlo e, de uma forma, sub-reptícia, continuar a passar a dependência”.

Ao pedido de entrevista do Gerador, a Tabaqueira – subsidiária da Philip Morris International (PMI) em Portugal e a maior empresa de fabrico e comercialização de tabaco no país – respondeu apenas que “as práticas comerciais e de marketing responsáveis são prioritárias” para a empresa e para o grupo PMI. “Somos muito claros: menores de idade não devem consumir nem ter acesso a produtos que contêm tabaco ou nicotina, incluindo alternativas sem combustão, que se destinam apenas aos fumadores adultos que, de outra forma, continuariam a fumar”, escreveram, não mostrando disponibilidade para mais questões.

Sabemos, no entanto, que este acesso não é, ainda hoje, completamente vedado aos menores de idade. Como nos explica Tomás, há lojas onde o documento de identificação não é solicitado. “Não perguntam, só querem vender.”

Fundada há quase um século, a Tabaqueira tem reorientado o negócio para alternativas aos cigarros convencionais, que, como noticiado, já pesam praticamente um terço das receitas. O facto de 2021 ter sido o melhor ano da história desta companhia revela-nos que, apesar do combate que é travado contra o tabagismo em todo o mundo, esta é ainda uma indústria rentável e de boa saúde.

Em 2018, os seis maiores fabricantes de cigarros do mundo obtiveram mais lucros do que os lucros combinados, por exemplo, das empresas Coca-Cola, Pepsico, Nestlé, Mondelez, Fedex, General Mills, Starbucks, Heineken e Carlsberg – companhias que possuem coletivamente muitas marcas domésticas com apelo global.

De acordo com a OMS, a indústria do tabaco é o vetor da epidemia tabágica. “A OMS é muito clara. Para implementar as medidas é preciso vontade política e é preciso combater a interferência da indústria”, diz Sofia Ravara, destacando também o papel “fundamental” da sociedade civil para que haja a implementação da convenção quadro da OMS para o Controlo do Tabaco – o primeiro tratado internacional negociado sob as orientações da OMS, assinado por Portugal em 2004.

“Em Portugal, a maior parte das políticas públicas sofrem a interferência da indústria e, consequentemente, são adulteradas, mal implementadas e não monitorizadas”, acusa a especialista. “Portugal é dos poucos países, em que mesmo esta nova lei de espaços livres de fumo de tabaco ainda permite exceções, o que é contra os objetivos de uma boa lei de saúde pública.”

Apesar da legislação em vigor não ser isenta de críticas, no que toca não só aos pressupostos, mas também à sua fiscalização, ela é fundamental, reforça José Alves: “a lei que temos, apesar de não ser obrigatória – porque só faz isto quem quer – é uma lei que ajudou. E ajudou mais a lei ela sozinha do que todos os médicos e escolas, palestras e intervenções individuais. Pode ter a certeza absoluta.”

Em território nacional, é ainda permitido fumar em espaços fechados, como restaurantes, bares e discotecas, desde que os locais tenham uma área igual ou superior a cem metros quadrados e pé direito mínimo de três metros – algo que, para Sofia Ravara, já não faz sentido. “Hoje em dia, as pessoas já se começam a queixar muito e a sentirem-se muito incomodadas. Se quero ir almoçar numa esplanada, não tenho que ser obrigada a fumar o cigarro do vizinho do lado”, expõe.

“Em Portugal, a maior parte das políticas públicas sofrem a interferência da indústria e, consequentemente, são adulteradas, mal implementadas e não monitorizadas”

Sofia Ravara

Proibir o consumo em espaços exteriores públicos levará a uma “desnormalização do ato de fumar” ou de usar os cigarros eletrónicos, defende: “Se não virmos as pessoas a fumar, porque cada vez há menos sítios onde as pessoas podem fumar, os jovens não vão querer imitar esse comportamento. Porque os jovens querem sempre imitar o comportamento dos adultos.”

Segundo a professora da UBI, a permissão de fumar em locais de socialização dos adolescentes e jovens adultos, como discotecas e bares noturnos, duplica a probabilidade de um jovem se tornar fumador regular.

“Isto não é contra os fumadores”, deixa claro. “Os fumadores são vítimas completamente inocentes da indústria. E mesmo um fumador quando quer deixar de fumar, sente-se muito culpabilizado por não conseguir.”

Abolir: um caminho a seguir?

Estender a regulamentação do fumar a locais exteriores públicos, como esplanadas, terraços, piscinas ou instalações de eventos desportivos, é uma das medidas da proposta legislativa submetida à Comissão Europeia (CE), por oito cidadãos da UE, incluindo Sofia Ravara.

Portugal é um dos oito países promotores desta Iniciativa de Cidadania Europeia (ECI, na sigla em inglês), liderada pela organização não-governamental espanhola Nofumadores e a ENSP (European Network for Smoking and Tobacco Prevention), em colaboração com organizações de quinze nacionalidades – entre as quais a SPP.

“É uma proposta legislativa feita pelos cidadãos, que vai ter de ser subscrita por um milhão de cidadãos [da UE] para mostrar que tem apoio e que é isto que os cidadãos querem. Porque os políticos não estão a fazer o seu papel”, explica a médica sobre esta iniciativa que, entre outras ações, pretende abolir progressivamente a venda de tabaco e produtos derivados de nicotina a quem nasceu a partir de janeiro de 2010 na UE.

Veja-se que esta não é uma medida inédita. A Nova Zelândia proibiu a venda de tabaco a qualquer pessoa nascida a partir de janeiro de 2009, e durante toda a sua vida. A medida entrou em vigor este ano – embora não inclua os cigarros eletrónicos – e faz parte de um novo conjunto de leis antitabagismo, naquele que é um dos mais rígidos pacotes legislativos do mundo – apenas o Butão, que proibiu a venda de cigarros em 2010, foi ainda mais rigoroso.

José Alves, porém, diz não gostar da ideia de proibição, “até pela experiência da Lei Seca nos Estados Unidos [da América]” –, que, embora tenha contribuído para a diminuição do consumo de álcool, deu origem a uma enorme indústria de produção clandestina. “Sou daquela geração do 25 de Abril em que achamos que é proibido proibir.” Não obstante, considera que seria uma lei “muito mais eficaz” do que as normas antitabaco em vigor no país, atualmente.

Contrariamente, para Sofia Ravara, esta não é uma medida radical. No que toca a medidas de saúde pública, diz, “quanto mais robustas e eficazes elas são, mais controvérsia trazem”. Como exemplo, lembra as medidas de combate à pandemia, ou a estratégia do reconhecido epidemiologista Ricardo Jorge (1858-1939) para combater a peste bubónica, que dominou a cidade do Porto, em 1899, e que suscitou uma enorme revolta na população contra a comunidade médica.

Limitar o acesso do uso destes produtos aos jovens é, de resto, uma das estratégias-chave da Convenção-Quadro de controlo de tabaco da OMS. “Como tal a medida da Nova Zelândia está alinhada com a estratégia da OMS”, sublinha a professora universitária. “As drogas legais, como o tabaco e o álcool, são as mais consumidas pela população e as que têm um impacto mais negativo na saúde das populações, pela facilidade no acesso, através da comercialização e marketing associado”, nota. “Em contrapartida, o consumo das drogas ilícitas é residual – menos de 2 a 4 % da população. Portanto, proibir a comercialização funciona”, garante.

Se a ECI alcançar a meta de um milhão de cidadãos europeus subscritos – até 15 de janeiro do próximo ano –, a CE, que considerou ter poderes e competências para legislar neste âmbito, será obrigada a avaliar as medidas propostas e a decidir se poderão entrar na engrenagem de negociação das políticas da UE.

A proposta “Europa Sem Tabaco” quer alcançar a primeira geração sem tabaco nem nicotina até 2030, mas também criar uma rede de praias e parques sem tabaco e beatas, e eliminar toda a publicidade – especialmente a “encoberta” – a todos os produtos de tabaco, bem como a presença em produções audiovisuais e nas redes sociais, entre outras medidas que têm como objetivo primordial reduzir o consumo tabágico na comunidade europeia, uma meta que põem, inerentemente, em causa a sobrevivência da indústria tabaqueira.

Mas os “interesses económicos em jogo” são muitos, lamenta a especialista, relembrando que estes não só vão contra a saúde pública, como também “arruínam a economia” e o bem-estar socioeconómico da população. “É muito chocante ver que a sociedade é tão complacente com a indústria que acaba por desculpabilizar a [sua] perversidade e a destruição da indústria. No fundo, haver esta controvérsia em relação às medidas de saúde pública.” Quando a liberdade individual choca com a saúde pública ou a proteção da população, garante, “a legislação portuguesa é muito clara, ganha a saúde pública”.

Ilustração de Frederico Pompeu

Um problema de saúde pública

Tomás e Mónica acreditam que conseguiriam deixar de fumar, se assim o desejassem. Sílvia já tentou fazê-lo, há alguns anos, tendo conseguido parar apenas durante um curto espaço de tempo. Para já, esse não é um objetivo. “É um vício. É mais forte do que eu de momento”, afirma.

A cessação tabágica é um dos objetivos das estratégias de combate a esta epidemia. No entanto, muitos dos fumadores adultos só conseguem deixar de fumar quando efetivamente adoecem. 

Para além da terapêutica ser “caríssima” e não ser completamente comparticipada, a maioria dos fumadores que consegue deixar de o fazer, garantem os especialistas, fazem-no graças às políticas públicas antitabágicas e ao preço do tabaco. “Mesmo em países como a Dinamarca e a Inglaterra [que têm os serviços de cessação tabágica na comunidade gratuitos], só 2 a 3 % dos fumadores é que deixam de fumar usando estes serviços”, refere Ravara.

“Sabemos que, em Portugal, ainda existem salas para fumadores. Há institutos públicos que têm essas salas. Até mesmo nos hospitais ainda se fuma lá dentro, porque depois não existe a fiscalização que deveria haver”, denuncia.

Defende por isso o aumento dos preços, políticas smoke free, campanhas de sensibilização, “não só para os riscos de fumar, mas também para os programas de tratamento”, e a criação de linhas telefónicas locais gratuitas que aconselhem, encaminhem e acompanhem os fumadores no processo de cessação tabágica. “Portugal já teve uma linha, que era a linha SOS Deixar de Fumar, e que era promovida pelo Instituto Nacional de Cardiologia Preventiva, do professor [Fernando de] Pádua”, conta. “Só que teve uma existência infelizmente curta por razões de financiamento”, lamenta, sublinhando o papel fundamental, que a linha SNS 24 tem desenvolvido no Sistema Nacional de Saúde. “Cada vez mais as novas tecnologias e as tecnologias de informação vão ser o pilar dos cuidados de saúde. Era muito importante que houvesse uma linha especializada.”

Apesar dos avanços já alcançados, o tabagismo continua a ser um grave problema de saúde pública em Portugal, constituindo o primeiro fator de risco modificável de mortalidade prematura no país.

O consumo de tabaco é uma das principais causas evitáveis de doenças não transmissíveis, com destaque para as doenças respiratórias crónicas, cancro em diferentes localizações, doenças cerebrocardiovasculares e diabetes mellitus tipo 2. Estas patologias, explica Emília Nunes, geram “um pesado fardo em termos de sofrimento humano, perda de produtividade e sobrecarga económica para os cidadãos, as famílias, o sistema de saúde e toda a sociedade.”

De acordo com a professora, não existem estudos recentes sobre os custos diretos ou indiretos do tabagismo para o Serviço Nacional de Saúde. No entanto, o último relatório do PNPCT refere que “segundo alguns estudos, cerca de 15 % da despesa agregada em saúde em países de alto rendimento é atribuível ao tabaco”.

Estima-se que todos os anos morram mais de 13 mil pessoas por doenças associadas ao tabaco em Portugal – o que equivale a 11,7 % do total de óbitos. Destas mortes contam-se “cerca de 6000 por cancro associado ao tabaco, 3500 por doenças e infeções respiratórias e mais de 3000 por doenças cerebrocardiovasculares”, discrimina a diretora do PNPCT. Parte dos óbitos acontece também como resultado da exposição ao fumo ambiental – mais de 1770, apontam as estatísticas.

Estima-se que todos os anos morram mais de 13 mil pessoas por doenças associadas ao tabaco em Portugal – o que equivale a 11,7% do total de óbitos.

“Ao longo do tempo, continuamos a descobrir novas doenças causadas pelo tabaco, porque fumar é uma doença sistémica, ou seja, é uma porta de entrada a tóxicos para todo o organismo”, alerta a médica Ravara.

Fumar diminui a imunidade, aumentando o risco de infeções respiratórias e de morte por tuberculose, contribui para a cegueira, por degenerescência macular e diminui a fertilidade – sendo que, fazê-lo durante a gravidez, é lesivo para o desenvolvimento fetal e agrava o risco de complicações perinatais.

Mas os malefícios continuam além da dimensão estrita da saúde. O consumo tabágico agrava também a pobreza, compromete o acesso das famílias mais pobres a bens alimentares e outros bens de primeira necessidade, e contribui para agravar o gradiente social em saúde. Além disso, aumenta o absentismo no trabalho e diminui a produtividade económica.

Este manancial de problemas leva a especialista a garantir que o dinheiro que o Estado recolhe dos impostos – 1 427,4 milhões de euros em 2019 – não chega para pagar os custos diretos e indiretos de saúde.

Importa, no entanto, referir que, para a OMS, o aumento da carga fiscal é a intervenção mais eficaz na redução do consumo, sendo esta uma medida também defendida por muitos pneumologistas em Portugal.

Uma questão também ambiental

O tabaco está longe de representar apenas um problema de saúde pública. Esta indústria causa também danos ambientais consideráveis, sendo mesmo considerada uma das mais poluidoras no planeta.

As beatas são, desde logo, o principal plástico existente no resíduo urbano. Estima-se que 4,5 biliões de beatas sejam descartadas anualmente, acabando no mar ou nos leitos dos rios. Já os filtros de tabaco, feitos de acetato de celulose, são também o plástico em maior número nos oceanos, existindo em maior quantidade do que as garrafas, os sacos ou as palhinhas de plástico.

Esses filtros acabam por se dissipar em microplásticos e entram na cadeia alimentar. “Acabamos por ingerir esses tóxicos quando bebemos água todos os dias e na nossa alimentação”, comenta Sofia Ravara, esclarecendo que a água fica “completamente contaminada” com os produtos “tóxicos” e “radioativos” que se encontram no tabaco. Segundo a OMS, cada beata pode poluir até 100 litros de água.

Estes números foram apresentados em maio do ano passado, a propósito do Dia Mundial Sem Tabaco, no relatório “Tabaco, veneno para o nosso planeta”, da OMS, que analisa a pegada ambiental do setor como um todo, desde o cultivo das plantas até ao fabrico dos produtos do tabaco, passando pelo consumo e desperdício.

O documento indica que a indústria tabaqueira, responsável pela perda de 600 milhões de árvores, usa 200 mil hectares de terra e 22 biliões de toneladas de água por ano, emitindo cerca de 84 milhões de toneladas de CO2.

O cultivo do tabaco é assim responsável por cerca de 5 % do desmatamento mundial, contribui para o esgotamento das reservas de água e para a emissão global dos gases com efeito de estufa – o equivalente a um quinto da pegada de carbono das viagens aéreas, durante o processamento e transportes dos produtos.

Mas há mais dados preocupantes. Quase um quarto dos produtores de tabaco sofre da doença do tabaco verde, uma forma de envenenamento por nicotina através da pele. Em contacto constante com as folhas do tabaco, esses agricultores consomem o equivalente à nicotina contida em 50 cigarros por dia.

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